segunda-feira, 4 de julho de 2016

XIAO CHENG ZHI CHUN (1948) de Mu Fei



A história em volta da distribuição, preservação e redenção crítica e popular de Primavera numa Pequena Cidade é tão ou mais celebrada que o filme em questão e, não será erróneo dizer que provavelmente haverá mais cinéfilos a conhecer estas circunstâncias do que realmente tenham visto o filme. Ou pelo menos é-o assim no Ocidente. Na China, seu país de origem este filme foi recebido inicialmente com imensa hostilidade e censura, sendo quase que apagado de existência pelas autoridades que viam a sua introspeção romântica e apolítica como uma mostra de perigosos valores burgueses. Com o avançar do tempo, esta gema, cuja existência é um pequeno milagre do cinema sedeado em Shanghai, foi praticamente esquecido. No entanto, com a redescoberta do negativo, que muitos julgavam perdido e um remake em 2002, houve uma imensa reavaliação do seu valor. Tão drástica foi esta mudança que o filme passou de uma obra ora odiada ou esquecida ao filme que foi eleito, por voto popular, como o melhor filme na história do cinema chinês. Como é que isto é possível? E será que o filme merece tal honra?

Não tenho suficientes conhecimentos sobre o cinema chinês e as maquinações por detrás da preservação de obras proibidas por regimes ditatoriais comunistas para poder responder com certeza a qualquer uma dessas perguntas. Mas, se este é o melhor filme chinês de sempre, é fácil perceber porquê, sendo este um dos mais belos retratos de amor reprimido, de paixão nunca consumada no cinema internacional. Eu chamaria a esta obra o ponto de evolução que está entre Brief Encounter, o comovente drama de guerra e adultério de David Lean, e In the Mood for Love, a máxima obra-prima de Wong Kar-Wai sobre um amor semelhante entre duas pessoas casadas com outros que não as suas verdadeiros amados.


Faço estas comparações pois, tal como esses filmes, Primavera numa Pequena Cidade centra-se em torno de uma mulher casada, seu desespero interior e seu desejo por um homem, que não o seu marido e que nunca é consumado num glorioso momento de cinema romântico. Aqui, seu nome é Yuwen, e ela vive numa pequena cidade reduzida a ruínas com o flagelo da 2ª Guerra Mundial, cuja muralha desfeita é o último símbolo da prosperidade passada. Aí, numa propriedade meio destruída o seu marido, Lao Huang que é um homem mais velho, neurótico e afundado numa sufocante mágoa; sua jovem e energética cunhada e o servo da família. Nunca vemos a cidade, nem as pessoas de fora do núcleo familiar, a não ser um visitante, Zhang Zichen, um médico e antigo amigo de Lao Huang que, inesperadamente, também é um antigo conhecido da protagonista, sendo mesmo um antigo apaixonado dela. Como seria de esperar com este cenário estabelecido, o romance entre os dois rapidamente volta arder silenciosamente e o desejo de sair de uma vida de desespero abate-se sobre todo o elenco de personagens.

Assim que o filme começa, Mu Fei revela como é um absoluto mestre do cinema narrativo, introduzindo as diferentes figuras e estabelecendo seus principais conflitos e relações assim como o espaço físico e psicológico em pouco mais de dez minutos. É claro que devido valor tem de ser dado ao uso de voz-off, um enorme auxílio nesta eficiência dramática. A voz em questão é a de Yuwen, mas tendo em conta como a narração parece ser feita de uma perspetiva futura e de como muitas vezes se torna omnisciente no seu alcance e conhecimento, é quase possível considerar esta a sexta personagem do filme. Eu diria mesmo que a narração é um dos elementos mais claramente modernistas do filme, fugindo ao tipo de voz-off dos noir de Hollywood ao usar a personagem feminina e explorar com ela a interioridade de uma mulher profundamente deprimida e perdida numa vida esvaziada de sentido ou futuro.


Esse vazio é o ponto fulcral do filme e sua representação de um mundo no rescaldo de uma grande guerra. Estas pessoas viram o seu futuro ser reduzido a cinzas diante dos seus olhos e não sabem o que fazer a não ser recordar o que já não é, olhar melancolicamente ruínas e falar de momentos de felicidade e juventude meio esquecida. É por isso que todas as personagens parecem magicamente atraídas para a muralha da cidade antiga, e é por essa mesma razão que apenas a jovem que nunca viveu senão em guerra ou miséria posterior, consegue ser feliz. Ela, afinal, não tem razão para chorar por um mundo que nunca conheceu nem por um futuro que nunca imaginou para si mesma. Quando o médico aparece ele é uma manifestação humana desse mesmo conflito, sendo a felicidade passada e inalcançável em forma física. Paradoxalmente, ao trazer o romance, ele também se torna na faísca da esperança, por muito frágil que essa dita esperança possa ser.

A sua entrada no filme e na cidade é um choque tanto para as personagens como para a mise-en-scène. Mas poderíamos mesmo dizer que todas as entradas em cena são um choque para a mise-en-scène pois o realizador tudo faz em seu poder para isolar a família central. Como já foi mencionado, nunca vemos a cidade titular nem as outras pessoas que nela vivem, e até a narração, apesar de futura, apenas consegue olhar o passado ou o imediato presente, chegando mesmo a simplesmente descrever as ações ilustradas na imagem como nas Óperas de Pequim. Até o som é um cúmplice deste isolamento humano, ao mergulhar o filme em silêncios anti naturalistas e deliberadamente esconder sons que são descritos no diálogo. Por exemplo, numa cena noturna, as personagens falam de uma sirene que acabaram de ouvir e descrevem a recordação que têm dos alarmes de bombardeamentos aéreos durante os anos de guerra, mas a audiência nunca experiencia tal ruído, como se o próprio som do mundo exterior fosse proibido ou apenas ouvido como um eco traumático de memórias da guerra.


Continuando com esta exploração do isolamento e da formalidade na direção de Mu Fei, tenho de expressar a minha adoração pelo seu trabalho de câmara e uso generoso de discretos planos sequência. Imaginem que alguém pegava na serenidade espacial e arquitetónica dos dramas domésticos de Yasujiro Ozu e os fundia com os movimentos coreografados e baléticos das câmaras de Renoir ou Ophüls e poderão ter alguma ideia do modo como Primavera numa Pequena Cidade se apresenta. Os movimentos são delicados e, por vezes, constantes e ininterruptos, mas nunca chamam atenção para si mesmos, parecendo ditados pelos limites do espaço e sua geometria.

Essa técnica é de particular excelência quando é aplicada aos jogos de olhares e presenças que marca todo o filme. O perfeito exemplo disso é o primeiro jantar do médico na casa familiar, uma cena capturada num único plano que começa numa composição aparentemente simples. Vemos Yuwen virada para nós a preparar algo, no fundo meio desfocados estão sua cunhada a cantar e sua audiência, Zhang Zichen, que está vidrado a olhar para as costas de Yuwen com um sorriso na cara. Parece inicialmente que esta vai ser a cena toda, mas então a protagonista move-se e a câmara acompanha-a revelando seu marido, posicionado de tal modo que está virado para o médico e a olhar a sua observação de Yuwen. Ao longo de toda a cena a câmara vai circulando neste esquema, estudando o modo como as personagens se entreolham e mudam as suas posições, sendo que, a certo ponto, a própria jovem cantora chama atenção ao médico para que este lhe preste atenção. Apenas no fim do longo plano, é que o sorriso sai da cara dele, quando, depois de estar sentada virada para ele, Yuwen se levanta e deixa o espaço vazio, ao mesmo tempo que seu marido e cunhada alegremente tentam conversar com o visitante, obviamente entristecido com a ausência de sua velha amada.


É fácil imaginar autores contemporâneos como o já referido Wong kar-Wai ou Todd Haynes a serem fortemente influenciados por esta simples e delicada maneira de criar teias de interações com pequenos movimentos e olhares, tão perfeitamente calibrados que um simples toque de mãos se torna num evento de intensidade vulcânica. E, tal como no cinema desses dois mestres atuais, tal sucesso íntimo e dramático só é possível devido ao elenco que consegue cumprir as exigências de uma observação profundamente gentil e não forçosa. De destacar aqui está a atriz Wei Wei, que consegue pegar na figura altamente verbosa de Yuwen e nela encontrar uma caracterização profundamente interior e construída em volta de minuciosas mudanças de postura e andar, de posições dos olhos e reticentes movimentos de uma mão que trai a verdade do que lhe vai no coração.


Tais descrições de delicadeza emocional poderão muito bem estar a pintar uma imagem de um filme melodramática e romântico à moda de Hollywood e isso não podia estar mais longe da verdade. Para se comprovar isso, basta vermos o final, um perfeito balanço entre melancolia trágica, incerteza e a luz de uma frágil esperança. A última imagem que vemos é a do casal de marido e mulher, acabados de superar um evento trágico, a oferecerem seu apoio um ao outro enquanto observam a partida de um amigo. A câmara coloca-os junto à muralha e no canto inferior esquerdo do ecrã, sendo eles apenas silhuetas e a composição quase totalmente consumida pelo céu cheio de luz e farrapos de nuvens em formas indefinidas. Essa indefinição é o futuro que está finalmente a mostrar a sua cara, a esperança por um futuro que não é apenas a recordação doentia do passado e seu luto. Estranhamente, numa final mostra de reticência dramática, Primavera numa Pequena Cidade consegue ser esmagador na sua emoção e luminosa humanidade, garantindo o seu lugar como um dos melhores e mais comoventes filmes na história do cinema chinês e do cinema mundial. 


domingo, 3 de julho de 2016

THE MUSIC MAN (1962) de Morton DaCosta



Quando falamos de adaptações de musicais ou cinema, ou mesmo quando falamos de qualquer tipo de texto teatral a ser transposto para o grande ecrã, há que fazer uma clara distinção entre dois tipos de abordagem. De um lado, temos os filmes ao estilo de Cabaret e Sweeney Todd que, para bem e mal, completamente reinventam a sua narrativa para um novo meio de expressão. Mas também temos aquelas adaptações que se ficam pela simples captura da encenação teatral com a câmara e a escala necessariamente mais opulente de uma produção cinematográfica. A primeira versão cinematográfica de The Music Man, estreada em 1962, é um perfeito exemplo desse segundo grupo de filmes.

Isso pode parecer um prelúdio para uma crítica vulcanicamente negativa, mas esse não é o caso aqui. Em parte, esta longa-metragem de Morton DaCosta deve o seu relativo sucesso ao génio presente no seu material de origem. É certo que isto pode ser uma opinião mais ou menos rara, mas The Music Man é um maravilhoso trabalho de comédia musical para o palco. O seu uso de trocadilhos de palavras, sofisticados ritmos verbais e teia de elegantes melodias perfeitamente combinadas entre si resulta num dos melhores livros e bandas-sonoras para musicais americanos do meio do século XX, e tudo isso está presente no filme.


Também presente nesta produção está a máxima raison d’être para a existência deste específico musical, a titânica prestação de Robert Preston. Na verdade, a única justificação que o filme necessitava para existir era essa mesma prestação que antes de chegar ao cânone cinematográfico já havia sido aclamada nos palcos da Broadway e galardoada com um Tony. Esta encarnação de Harold Hill, um vendedor ambulante que ludibria as pequenas cidades do interior dos EUA e convence a sua população a financiar bandas juvenis, é um soberbo trabalho de vibrante energia performativa, assim como um dos maiores triunfos nos cânones da comédia musical.

Veja-se a eletrizante rendição de “Trouble”, número em que Hill despoleta a histeria coletiva na comunidade ao realçar a decadência virulenta que está para vir devido à recente chegada de uma mesa de pool a River CIty, para se verificar a genialidade de Preston, sua ensandecida mistura da energia de um sermão religioso com o oleoso oportunismo manipulador de um fervoroso vendedor em ação.

Para além de Preston, o restante elenco não chega a nenhum nível de estratosférico génio, mas são, na sua maioria, imensamente eficazes nas suas prestações. A energia cómica de Buddy Hackett, por exemplo, é um maravilhoso complemento ao trabalho de Preston, sendo que a responsabilidade do sucesso de muitos dos números mais teatrais e exuberantes fica exclusivamente nas capazes mãos de Hackett e não do protagonista. Paul Ford e Hermione Gingold, deuses do slapstick cantado, mostram aqui o seu virtuosismo cómico como o presidente da câmara e sua mulher obcecada com as novas tendências da dança moderna do início do século XX. Shirley Jones e sua voz angélica dão vida a Marian, a bibliotecária da cidade e principal interesse romântico do filme, e podem não transmitir grande interioridade, mas a sua pureza virginal com um toque de saudável sagacidade é o perfeito contraponto para a energia híper verbosa de Robert Preston.


Mas é evidente que nem tudo é perfeito. Primeiro, temos o guião cuja estrutura resulta num filme demasiado longo e cheio de dispensáveis enredos secundários que, sem a necessidade técnica de mudanças de cenário e figurinos nos bastidores, não têm razão de existir. E em segundo, temos o maior e mais pernicioso problema desta produção, o trabalho de Morton DaCosta cujos triunfos de encenação teatral nunca se traduziram em satisfatórios sucessos do cinema.

Um dos principais elementos problemáticos do seu trabalho é uma encenação que privilegia a perspetiva frontal de uma audiência num teatro, assim como o uso de planos gerais de modo constante. Isto não é ajudado por uma fotografia imensamente desinspirada e que tem a triste tendência para iluminar em demasia os cenários, que nunca parecem algo mais real que cenários de estúdio, e lhes retira toda a profundidade.

Visualmente, os elementos de maior apreço são, sem dúvida, a coreografia germinada nos palcos da Broadway e aqui re-imaginada para uma câmara sem grandes ambições pictóricas e os figurinos, cujos toques de estilização estão em surpreendente harmonia com os pastéis esbatidos da sua reprodução histórica. O píncaro de ambos estes aspetos é “Shipoopi”, o grande showstopper de The Music Man, em que, mesmo assim, a direção trai o frenesim energético que a letra e a música sugerem.


Por muito desinspirada, enfaticamente ilustrativa ou cronicamente literal que seja a direção, há que admirar a já mencionada e sublime tradução dos números musicais originados em palco. A complexidade sinfónica, rítmica e verbal das canções é de particular louvor, começando, pois claro, pelo genial número de abertura em que a repetição mecânica de falas e uso de ritmos anti naturalistas e anti melódicos resulta num grupo de enfurecidos vendedores ambulantes a cantarem o som de uma locomotiva em movimento. Isto repete-se pelo filme, cujos maiores triunfos, que também incluem “Trouble”, quase todos os momentos de coro e os duetos de Shirley Jones, são sempre um resultado da obsessiva fidelidade do filme às suas origens teatrais.


No final, The Music Man revela-se como um jogo de maravilhosas contradições cinematográficos. A sua teatralidade limita o seu apelo e tem o triste efeito de tornar o filme numa espécie de cadáver embalsamado de um espetáculo da Broadway, mas também permite que toda a produção mantenha e apresente de modo descomplicado os maiores triunfos musicais e performativos do musical em si. Para uma audiência contemporânea, este será certamente um filme capaz de testar muitas generosas paciências, mas para grandes fãs de musicais, teatrais e cinematográficos, há que aceitar que para podermos ver os seus maravilhosos triunfos como a supernova de inspiração de Robert Preston, temos de aguentar uma desinspirada encenação, quase anti cinemática.


sábado, 2 de julho de 2016

SAYAT NOVA (1969) de Sergei Paradjanov


A Cor da Romã Sayat Nova


É muito fácil acusar um filme de ser um objeto pretensioso. Uma obra apenas valiosa para pessoas com ideias de se mostrarem intelectuais e portadoras de gostos sofisticados. Basta olharmos para inúmeras paródias que se estendem desde os Monty Python até aos últimos episódios de Saturday Night Live para ver como muitos veem o cinema de autor como um absurdo de manias estilísticas vácuas ou montanhas de inescrutáveis símbolos, verdadeiros puzzles feitos para deliberadamente confundir uma audiência comum e para deliciar aqueles que os conseguirem, por meios de rebuscados academismos, decifrá-los. Confesso que existirão poucas críticas a que eu dê menos valor em cinema do que pretensioso, mas mesmo eu já vi filmes cuja melhor descrição é mesmo essa infeliz expressão. E já admirei e gostei de filmes a que eu mesmo chamaria de pretensiosos, filmes que se regozijam na pressuposta e arrogante superioridade intelectual de seus cineastas e fãs.

Falo desse cliché da crítica cinematográfica, tanto a nível erudito como coloquial, pois é a principal fragilidade apontada por quem viu e detestou aquele que é, para mim, um dos mais singulares e importantes filmes na história do cinema, A Cor da Romã ou Sayat Nova de Sergei Paradjanov. E eu posso até aceitar que muitos vejam este exercício cinematográfico como um monumental soporífero, mas penso que chamá-lo de pretensioso ou “artsy-fartsy” é um absoluto crime, para além de ser uma imerecida calúnia.

A Cor da Romã Sayat Nova

Sim, este é um filme que se poderia chamar de um poema filmado, onde praticamente não há diálogo, e o pouco que há provém de textos de um trovador arménio do séc. XVIII. Um filme onde todas as imagens são, no mínimo, crípticas, estando recheadas de simbologia e executadas com um fervor formalista que transcende o que normalmente chamaríamos de avant-garde e entra num patamar exclusivo de virtuosa experimentação cinematográfica. Uma obra tão anti naturalista e anti narrativa que praticamente propõe um novo tipo de discurso artístico pela sua mera existência. No entanto, não é, de todo, uma obra pretensiosa.

Isto porque o realizador Sergei Paradjanov não podia ser mais claro nas suas intenções, começando o filme com um texto em que o autor esclarece que o que o espetador vai ver não é um docudrama comum, mas sim uma tentativa de trazer as emoções e sensações dos poemas de Sayat Nova, o já referido poeta arménio, para o cinema. Este não é um filme que está em constante procura por confundir a audiência e requer um painel académico para dele retirar sentido. Pelo contrário, é um filme que não propõe uma única questão intelectual ao seu espetador, apenas lhe oferece uma singular experiência sensorial. Mesmo para quem estiver mais confuso ao ver estes tableaux vivants meio surreais, o realizador tem a generosidade de colocar texto antes de cada sequência ou capítulo, indicando mesmo que momentos são sonhos e seu conteúdo.

A Cor da Romã Sayat Nova

É certo que A Cor da Romã praticamente exige que olhemos para a sua grandiosidade com montanhas de conhecimento anterior, mas, mesmo para quem nada saiba sobre Sayat Nova ou sobre a cultura da Arménia, esta é uma preciosidade. Eu diria mesmo que o seu mais próximo parente cinematográfico não são filmes como os restantes produtos das vanguardas europeias dos anos 60, mas sim os filmes mais bombásticos e pirotécnicos de Hollywood. Tal como nessas criações populistas, ver a mais bela obra de Paradjanov é ser-se exposto ao cinema na sua forma mais básica e simples. Estamos a ver o filme para sermos emocionados, expostos a imagens espetaculares e impossíveis de ver na nossa realidade, e, em suma, sermos simplesmente maravilhados.

O que este filme precisa é de uma audiência generosa que esteja disposta a ver para além da sua abjeta recusa de classicismos e convenções e esteja disposta a ver A Cor da Romã como o esplendor de imagem, ritmo e som que é. De certa forma, este é um dos melhores exemplos de um cinema puro, um cinema apoiado somente nesses jogo imagético, sonoro e temporal e em praticamente mais nada. Aliás, é exatamente devido a essa pureza que eu estou para aqui a encher esta análise com considerações sobre crítica cinematográfica na sua generalidade, porque, no final, tentar explicar, dissecar ou analisar A Cor da Romã é um exercício em futilidade. Afinal, se alguém conseguisse expressar em texto o que Paradjanov aqui alcança, isso sim, seria uma prova do pretensiosismo e falta de valor do filme. Posso, no entanto, tentar explorar algumas das escolhas formais desse mestre do cinema soviético que, devido à sua homossexualidade e revolucionária recusa dos padrões de realismo social impostos pelas autoridades do regime, acabou por ser preso e banido de realizar filmes.

A Cor da Romã Sayat Nova

As imagens que ele constrói aqui são o que poderíamos obter se alguém conseguisse dar vida a uma iluminura medieval. Os cenários e figurinos ajudam muito a este encontro entre pintura e cinema, mas há que louvar a fotografia também. Com o seu uso de luz branca frontal e composições estáticas e definidas pela geometria dessa mesma arte antiga, Paradjanov retira profundidade à imagem, salienta suas cores e constrói um sólido discurso visual que raramente é quebrado ao longo de A Cor da Romã.

O som, por sua vez retira qualquer espécie de literalidade física que as imagens possam conjurar. É óbvio que todos os ruídos ouvidos no filme foram criados em pós-produção tal como é óbvio que Paradjanov tinha muito pouco interesse em usar a sonoplastia como mero instrumento ilustrativo. Se a imagem é uma pintura medieval, o som é um espetáculo de abstração modernista, usando excessos anti naturalistas para revelar as dimensões mais poéticas das imagens. Por exemplo, num funeral, vemos músicos a tocar, mas o som que ouvimos é canto coral meio distorcido, noutra ocasião vemos água a escorrer e a formar pequenas cascatas ao longo de um castelo, mas o que ouvimos é algo estranho que tanto parece água como algo mais irreal e indefinido.

A Cor da Romã Sayat Nova

Finalmente, temos o tempo e o ritmo ou, por outras palavras, a montagem. É aqui que, para mim, Paradjanov realmente se afirma como uma das poucas vozes na história do cinema que realmente propôs uma linguagem revolucionária e inovadora. Ele usa inúmera repetições, saltos rítmicos entre imagens semelhantes, mudanças bruscas que salientam a teatralidade da posição dos corpos codificados em cena, e quebra qualquer linha de lógica espacial ou temporal. O modo como imagens intrinsecamente viscerais como sangue, água ou nuvens de vapor são emparelhadas com cuidadas recriações pictóricas é de particular destaque, especialmente perto do fim do filme, onde as relações e imagem e som se vão tornando peculiarmente primitivas, puxando pela emoção da audiência e seu espanto de um modo inesperado para este tipo de exploração estética.


No final, A Cor da Romã é uma obra de sublime importância e um dos mais curiosos paradoxos na história do cinema. Por um lado, este é o derradeiro exemplo de um filme avant-garde, por outro é uma obra de magnânima simplicidade e anti pretensiosismo. Na mesma medida que é um dos melhores filmes a traduzir linguagens da pintura para o grande ecrã, é também uma obra de puro cinema, onde tais imagens são apenas uma parte da sua inovação. E, para além de tudo isto, é um filme que tão facilmente é adorado, como é odiado, muitas vezes por quem insiste em passar a sua duração a tentar encontrar explicações. Por vezes, o melhor que temos a fazer quando vemos obras assim é simplesmente parar de pensar, desligar o cérebro por 80 minutos e apreciar o espetáculo que, neste caso, Sergei Paradjanov nos ofereceu.


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Hit Me With Your Best Shot, TO CATCH A THIEF (1955)

Este post foi escrito para a série Hit Me With Your Best Shot do blogue The Film Experience de NathanielR, sendo que é aqui apresentado em inglês, ao invés do que é usual neste blogue.




To Catch a Thief is sort of the perfect summer movie. It’s a breezy trifle of a story, spiced up by some electrifying star power in the form of Cary Grant and Grace Kelly, beautifully directed by one of the great masters of mainstream Hollywood cinema and dressed by the most stylish and insanely brilliant costume designer the Golden Age of the Studio system ever produced.

Kelly, Grant, Alfred Hitchcock and Edith Head are the sort of names that, when combined, necessarily result in something insurmountably watchable. It’s true this may be one of Hitchcock’s most inconsequential and least daring pictures, but who cares when we can gaze at gorgeous movie stars sexing it up in the French Riviera under the umbrella of a silly little delight of a plot about jewel thieves?




If I could choose a transition rather than a single shot I would undoubtedly pick something from the famous firework sequence. It’s one of the silliest and steamiest scenes in all of Hitchcock’s oeuvre, a director whose work is filled to the brim of similar moments where one can practically see him spit in the faces of Hollywood’s sanitized morality by injecting as much sexual subtext as he can. Here, his cinematic innuendos reach explosive levels as he intercuts Kelly’s forceful seduction of Grant’s retired jewel thief with colorful fireworks which are presented in an increasingly abstract manner, until they resemble little more than an orgasmic and messy explosion of light and color.

At least I can point out to my runner-up shot as representative of this entire scene’s greatness. 


Runner-Up


Here, Kelly’s character is trying to appeal to the thief’s desire for jewelry and illicit adventure. It’s a moment where this glamourous figure stops being the cold image of an entitled rich woman seeking cheap thrills and actually starts to seem deranged in her plight. Wonderful, powerful, glamorous and surprisingly seductive but a bit deranged nonetheless. Reflecting this, Hitchcock covers her head in shadow, turning her into a faceless gorgeous body adorned by the luxurious trappings of a Hollywood starlet. Her necklace, made of fake stones, glitters as the focal point of the shot showing off the object what she believes to be the key to win this game of passion.

Another great reason to name that particular image as my runner-up shot is the way in which the lighting and framing highlight the mastery of the costuming. This is the second chiffon evening gown Kelly has worn in the film. The first one, a blue work of perfect cinematic couture, showed off the actress’s icy persona and was conspicuously worn without a single piece of jewelry, not even some modest diamonds or pearls adorning her ears. Now, the silhouette, material and technique are basically the same, but there’s no ice blue to distract the eye from Kelly’s figure, no spaghetti straps cutting through the line of her shoulders and delicate collarbone, and, most importantly, there’s that unescapably showy necklace. It’s such a deliberate, studied look that we can almost call it a costume inside the world and narrative of the film, but Head doesn’t get caught up in such intellectualizations. After all, her job is to create the perfect unreachable appearance of a Hollywood movie queen and she does it, creating another breathtaking pinnacle of Studio Age glamour.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Hit Me With Your Best Shot, STAR WARS: THE FORCE AWAKENS (2015)

Este post foi escrito para a série Hit Me With Your Best Shot do blogue The Film Experience de NathanielR, sendo que é aqui apresentado em inglês, ao invés do que é usual neste blogue.





This week’s Hit Me With Your Best Shot takes Star Wars: The Force Awakens as its object of study and I must confess this was an assignment I was dreading. This is a film everyone has written about in the past six months, either to praise it, analyze it, deconstruct it, and decry it as a senseless failure of cinema or a new blockbuster masterpiece. Even I have written extensively about it, with a review, several articles about its costumes and, of course, my coverage of its Oscar nominations. In summary, I do believe have nothing new to say about this particular work, and for that I beg the reader’s patience and forgiveness.

In the words of the great Meryl Streep upon being anointed a three time Oscar winner, “whatever”.


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Hit Me With Your Best Shot, LA REINE MARGOT (1994)

Este post foi escrito para a série Hit Me With Your Best Shot do blogue The Film Experience de NathanielR, sendo que é aqui apresentado em inglês, ao invés do que é usual neste blogue.




Let’s talk about costume design and painting, shall we?

One of my favorite Oscar oddities is the strange propensity of the Costume branch to give out nominations to films completely off the Oscar radar. When this nomination is graced upon a foreign language film my joy is redoubled, and one of the prime examples for such an occurrence is this week’s Hit Me With Your Best Shot subject, Patrice Chéreau’s La Reine Margot, a dramatization of Alexandre Dumas’ homonymous novel about the St. Bartholomew’s Day Massacre of 1572, where thousands of Huguenots where murdered by Catholics in a wave of mob violence.

I mention the costumes for they were a point of confusion for me the first time I watched the film, many years ago. In that time, I already knew of the massacre and was fascinated by its historical significance, and was obviously eager to watch such a high profile film about it. I was also already greatly interested in costume design and fashion history, and, by consequence, when faced with Chéreau’s film and Moidele Bickel’s costumes I was astonished to see the complete disregard for any sort of historical reality. With its mixture of pseudo Renaissance styles plus a heavy dose of baroque-ish elements, the entire thing is closer to fantasy than period.




Costume wise, history flavored fantasy

You must understand that, when I started to get interested in such things, I was quite limited in my points of view. If a film was ostensibly about history, I expected a level of accuracy and recreation, only in a more loose and fictional narrative would I accept the stylizations that, for example, featured in the world of geniuses like Eiko Ishioka. Though I still believed in such ridiculous binary ideas of historical fidelity in costume design, I was immensely fascinated with Bickel’s work and the strange atmosphere it conjured.





As I previously mentioned, the costumes of La Reine Margot freely mix elements of both Baroque, Renaissance and even fantasy fashion, creating a strange hybrid where, curiously, simplicity and symbolic color are the main elements of visual impact. On a simplistic way, one can justify such choices by pointing out how this film is actually based in a romantic reimagining of the historical events, and it’s therefore expected that the design give it a sexy contemporary feeling. The genius in Bickel’s work though, isn’t in the way she catered her designs and, by consequence, the film’s aesthetic to modern sensibilities, but rather created something that is closer to a Baroque, Catholic Counter Reform style.


A dawn lit, cinematographic Caravaggio

To understand what I’m trying to say, think not of the opulent 17th century churches with altars covered in elaborate golden constructions where the horror of the empty had the consequence of everything being filled with excruciating and dramatic details. Instead, try to picture the paintings of such masters as Caravaggio, Gentileschi and de la Tour, where the carnal, the violent and the shadowy darkness were presented hand-in-hand with Catholic spirituality. Images of striking lighting contrasts, where the sacred seemed to exist in constant communion with the profane, almost feeding from it to gain obscene power and influence.


A dark and ominously bloody version of the catholic imagetic of the Virgin Mary

That same relationship of sacred and profane imagery permeates through La Reine Margot and its costumes, which are, along with the cinematography and the barren set design, inexorably responsible for turning this film in what seems like a Baroque painterly nightmare. A sexy nightmare at that, for there are few period films that so efficiently inject a searing carnality into their narrative proceedings, or that so violently create visual and thematic connections between desire and death. A hedonistic procession through a palace corridor is later reinterpreted as a desperate run for survival through a building filled, not with steamy sexual activity, but huddles of naked corpses. A woman dresses in rich, but simple, bright colored clothing walks through the streets of Paris in search of a lover in one scene, while later, she follows the same path, but in her way stand not potential objects of pleasure, but the remains of monstrous carnage and her costume has changed from rich blue to a dark, sanguine red.





Such costume evolutions are central to the visual discourse of La Reine Margot, whose clothing is the epitome of such ideas I’ve expressed about viscerally and sacred beauty. Unencumbered by the limitations of historical recreation, Bickel created a wardrobe where the cotton damasks are almost constantly infused with either perspiration or blood. Through her designs you can both get the idea of a painting come to life and the sensorial reality of such a world, with its sweltering heat and uncomfortable court rituals. Just by looking at these moving tableaux you can practically smell the sweat, blood and cum.






I’m afraid I might have got a little bit lost in my argumentation, so maybe it’s time to stop with my futile explanations and just present my best shot.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Hit Me With Your Best Shot, THRONE OF BLOOD (1957)


Este post foi escrito para a série Hit Me With Your Best Shot do blogue The Film Experience de NathanielR, sendo que é aqui apresentado em inglês, ao invés do que é usual neste blogue.



I’m sorry if this post is shorter than usual but I really don’t have the time to take any more screencaps or examine the film further. I didn’t even have time to fully rewatch Throne of Blood, but, thankfully, this is one of the film’s I suggested to Nathaniel in one of the posts where our grandmaster of film blogging asked for suggestions. One of the many reasons I suggested it was the fact I already knew which shot I’d choose.

As someone with a degree in Theatre, my heart has a special place dedicated to William Shakespeare, with Macbeth in a position of utmost reverence. For its brevity, its atmospheric verse and its difficult, and often complexly confusing, characterizations, I have always loved the damned thing. One of the main focuses of my adoration is Lady Macbeth, one of the Bard’s most celebrated characters, as well as one of his most controversial ones. Many interpretations of her have been brought to both stage and screen (and perhaps other mediums), and Shakespeare’s original intentions have been endlessly scrutinized, subverted and reinterpreted in academic texts, so much so that it’s very easy to let Lady Macbeth turn into something of an abstraction. Sometimes, she’s more idea than person, more conceptual experiment than an actual human presence.

This can be both used to a film’s advantage or not. For example, Kurzel and Cotillard’s recent interpretation is one that grounds the character into a very viscerally human sense of interior desolation, while Judi Dench’s TV version is an example of someone completely dominating the Shakespearean text and managing to present her as both concept and woman. Still, having all of this into account, my favorite take on the character, and on the play as a whole, has always been and, I suspect, it will always be Akira Kurosawa’s Throne of Blood. With that said, here’s my choice for best shot:
 
 


Best Shot


While he strips his film’s screenplay of Anglo-Saxon linguistic lyricism, Kurosawa injects into the tragedy of Macbeth an incredible sensorial expressiveness of poetic dimensions by placing it in mystic version of feudal japan. This is one of Shakespeare’s plays where the author most exacerbates and refers to the lighting conditions, the sounds of nature, or the weather that rages on the outside of the interior settings, so it makes sense that the great Japanese master would take this opportunity and run with it And run with it he did, with glorious consequences.

In this shot, Lady Asaji is seen going into the shadows, and latter returning with a vase of wine, with which she will drug the guards that stand in the way her husband’s homicidal mission. In this very moment, this master of suggestion and matrimonial puppeteering is becoming an active accomplice of the evils she’s been germinating in her husband’s mind. This is no longer a game of theoretic intentions, but one of murderous deeds, and she looks amazing while doing so, like specter of doom coming from hell itself.
 
 
Runner-up

She is the one that opens the door from which the darkness comes as you can see in the previous shot. The shadows of deadly ambition are almost magically summoned by her will, and then, after bringing them into her fold, she immerses herself in them, she glides purposefully into their dark oblivion. Almost immediately after her pale figure has been wholly consumed, she appears again. Once more she glides, elegantly positioned right at the center of the shot, for she may be bringing chaos into this world, but she does it from a standpoint of unnatural order and demonic certainty, with her eyes almost piercing the audience with their intensity directed at the camera.

Still, I would be lying if I said I only picked this shot for its visual splendor. Actually, more than the immersion and subsequent emergence from the shadows, what completely seared this moment into my mind, since the first time I watched the film many years ago, was its sound. Along the film, Lady Asaji’s presence is always announced by the sound of her many silks brushing against each other, her movements bringing with them a serene storm of subtle, but menacing little sounds. As she comes out of the darkness, the frame is filled with her whiteness once more, and with the vitality of her movement, but in Isuzu Yamada’s perfect poise and expression and in the menacing sound, such image cannot be taken as anything but an ominous nightmare coming in our direction.

I know it’s not the most complex view of this iconic character, it might actually be one of its most simplistically evil, but it sure is memorable and it has haunted me since the day I first laid eyes (and ears) on it. It might have actually been this moment that turned me into a devotee of Japanese cinema. How can I not love it then, I ask you?