sexta-feira, 31 de outubro de 2014

GRACE OF MONACO (2014) de Olivier Dahan



 De um ponto de vista pessoal, tenho de admitir que, dos vários subgéneros que caracterizam a produção cinematográfica internacional, o filme biográfico é talvez o que mais abomino. Cheio de fórmulas e estruturas quase idênticas e uma usualmente colossal falta de originalidade. Digo isto para que se perceba que talvez me falte uma certa imparcialidade objetiva aquando do visionamento de um filme como este.

 Apesar disto, confesso que, aquando de ouvir a premissa inicial deste filme, fiquei um pouco esperançoso. O filme foca-se num espaço de tempo relativamente limitado, o que acho sempre preferível a uma estrutura que tente representar toda a vida de um indivíduo. Para além desse factoide, o filme seria sobre uma das mais célebres e belas estrelas da era dourada de Hollywood, Grace Kelly, tornada princesa Grace do Mónaco. O filme sobre a grande musa de Hitchcock, ir-se-ia focar em parte na negociação falhada para a entrada de Kelly no filme Marnie de Hitchcock, sendo que o próprio realizador seria uma das personagens no filme. E para além de tudo isto, quem protagonizaria a estrela seria uma das minhas favoritas pessoais, a brilhante Nicole Kidman.

 Estavam então os dados lançados, não para um sucesso, mas possivelmente para uma boa peça de entretenimento historicista. Quão enganado eu estava.

 Apresentado já um pouco do enredo do filme, acho pertinente referir que para além dos elementos referidos acima, um dos principais focos do filme é no conflito político que se verificou entre o Mónaco e o Governo Francês de Charles de Gaulle em 1962, algo que terá, segundo o filme, culminado numa Gala em honra da Cruz Vermelha, organizada pela princesa do Mónaco. O filme utiliza estes conturbados eventos para, em parte, explorar os problemas conjugais entre Grace e Rainier do Mónaco e a condição da princesa como mulher e representante de uma monarquia europeia face à sua educação americana.

 Se faço o filme parecer complexo e como, talvez, um interessante estudo sobre uma figura pública, por favor não me entendam mal. O filme pode ter muitas ideias mas nunca as desenvolve de um modo de todo funcional. Assemelha-se mais a um falhado melodrama que um estudo de personagem, e não um melodrama subversivo na linha de Douglas Sirk. Os elementos políticos nunca são particularmente bem explorados, acompanhados por uma banda-sonora demasiado enfática e forçada, e estranhamente aborrecidos e letárgicos.

 Aborrecido e letárgico, é aliás uma boa descrição do filme, que nem do ponto de vista técnico consegue alcançar qualquer tipo de virtuosismo dinâmico. Existe um constante uso de câmara em movimento que parece estar mais interessada em criar tensão, do que em explorar psicologias ou definir espaço, o que não teria nenhum problema, se resultasse. Nunca existe grande tensão no filme, sendo que o culminar do conflito político na Gala da Cruz Vermelha e num discurso de Grace, mesmo que verdadeiros, nunca parecem plausíveis.

 O resto do visual do filme é adequado, mas, de novo, nada de particular interesse. O filme, por vezes, assemelha-se a um bonito anúncio de perfumes. Uma estética agradável mas vazia, para a qual o irritante adjetivo “bonito” é mesmo o mais apropriado descritivo.

 Não que muito mais eu esperasse do nome de Olivier Dahan, que apesar de ter levado a magnífica Marion Cotillard a um Oscar, pouco mostrou nesse filme que evidenciasse qualquer tipo de competência na realização de filmes biográficos. Veja-se por exemplo o seu uso de visuais que, pelo menos a meus olhos, tentam homenagear os filmes de Hitchcock, como o uso de fogo-de-artifício visto de uma janela aberta durante uma discussão do casal (To Catch a Thief) ou o seu uso de green screen numa odiosa cena em que Grace conduz vertiginosamente através de uma estrada do Mónaco, quase que antecedendo o acidente que levou à sua morte, e que lembra o uso de rear projection na obra do realizador britânico.

 Também a sua exploração de Grace como atriz e princesa é bastante desajeitada, basta olharmos a sequência de makeover em que Grace chega a usar cartões com emoções escritas para treinar as suas expressões faciais enquanto princesa. Um visual que é repetido no final do filme, uma péssima escolha, nem que seja pelo seu relativo ridículo e pelo modo como tenta forçosamente ser inspirador e trágico.

 Gostaria, antes de encerrar este texto, de fazer uma pequena reflexão acerca do uso de estrelas de cinema para interpretarem outras figuras famosas. Isto é algo que me provoca constante debate mental, sendo particularmente forte quando vejo uma estrela de cinema interpretar outra estrela de cinema.

 Não é que Kidman seja uma má atriz, decerto que não se trata disso, mas penso que foi uma má escolha para este papel. Como Grace, Kidman nunca parece tentar capturar os trejeitos e modos de falar afetados de Kelly, sendo que isto seria louvável se resultasse, o que não acontece. Basta vermos uma cena como aquela em que Grace ensaia o texto de Marnie frente a um espelho e onde Kidman nem sequer se assemelha superficialmente a Grace num filme que constantemente insiste na imagem pública de Grace.

 Faz sentido um filme com este foco na imagem de Grace conhecida pelo público em geral, não suceder de todo na concretização dessa imagem? Faz sentido utilizar-se Kidman, quando durante o filme apenas conseguimos ver Kidman a interpretar uma princesa e nunca a imagem de Grace Kelly? E este é um filme obcecado com a imagem exterior, como se pode verificar no uso constante de espelhos e de reflexos, como que a forçosamente reduzir esta complexa mulher numa beleza vazia.

 O resto dos atores do filme sofrem do mesmo problema, mas não ao nível de Kidman. Vejam-se Tim Roth, Derek Jacobi, Parker Posey e Frank Langella, que povoam o filme de faces conhecidas e distrativas. Será esta distração algo positivo, tendo em conta o aborrecimento geral que permeia o desenvolver do filme?

 Não sei o que responder.

 Presumo que para enormes fãs fanáticos de Kelly ou Kidman, o filme possa esconder alguns leves prazeres, pelo menos em cenas como o longo discurso de Kelly na Gala da Cruz Vermelha em que o realizador soube fixar a câmara na face de Kidman de tal modo que quase nos esquecemos que por detrás dessa bela imagem de olhos azuis brilhantes de lágrimas e carisma de estrela de cinema, se esconde um filme que nunca se consegue elevar acima da mediocridade.


terça-feira, 28 de outubro de 2014

LA TERRA TREMA (1948) de Luchino Visconti



 Por vezes interrogo-me se, aquando de uma reflexão sobre uma obra, deveríamos pensar nela como uma obra individual, a ser avaliada pelos seus méritos e defeitos, ou se deveríamos sempre tentar contextualizá-la, tanto na obra do seu autor assim como no tempo e corrente a que possivelmente pertencerá. Será que devemos olhar um filme como uma obra singular sem ter em atenção o seu contexto? Será isso justo? Mas será justo valorizar algo apenas pela sua importância e contexto, sem ter qualquer atenção à qualidade relativa da obra?

 Normalmente, acabo sempre por ver uma obra em contexto, mas, por vezes, penso que deveria tentar evitar isso, de modo a friamente conceber uma visão objetiva. Digo tudo isto para esclarecer logo à partida que, aquando do meu primeiro visionamento desta supra suma obra do cinema italiano do pós-guerra, eu estava cheio de dados históricos, ideias pré-concebidas e expetativas em relação ao filme.

 Talvez fosse apropriado, portanto, esclarecer um pouco desse contexto que acima referi. Esta obra pertence à filmografia daquele que será, de um ponto de vista estritamente pessoal, o mais fascinante dos realizadores italianos que marcaram o cinema do seu pais nas décadas que se seguiram ao final da segunda Guerra Mundial. Confesso que, se me obrigassem a fazer uma lista dos meus realizadores prediletos, o nome de Luchino Visconti estaria decerto aí.

 É uma obra que é, usualmente, tida como um ponto de deserção entre Visconti e os seus colegas no movimento neorrealista, sendo que esta separação seria principalmente notória em relação à obra de Rossellini, por exemplo. Foi um projeto que terá começado a sua existência como uma encomenda do partido comunista italiano a Visconti, um ávido apoiante da causa comunista apesar das suas origens aristocráticas. Inicialmente teria sido concebido como parte de uma trilogia documental que refletisse sobre o proletariado italiano. O filme, aliás, ainda apresenta como subtítulo “Episodio del mar”, visto que seguidamente seriam feitos episódios sobre mineiros e agricultores, assim como um pequeno acrescento sobre os trabalhadores urbanos.

 Esse idílico e megalómano projeto acabaria por nunca se concretizar, e o documentário sobre a vida dos pescadores de Sicília, ir-se-ia acabar por converter numa ficcionalização neorrealista das suas vidas, em parte feita em torno de uma adaptação do romance I Malavoglia, que o realizador já tentara anteriormente passar a celulóide

 Este último ponto é de particular interesse, quando temos em mente que, após a sua criação daquele que é considerado como o primeiro filme neorrealista Ossessione, Visconti terá tentado variadas vezes começar projetos cinematográficos, só para os ter sistematicamente bloqueados pelo regime. Sendo assim, o conde de Lonato Pozzolo ter-se-á virado para a produção teatral nos seis anos que separam estas suas duas obras. Este trabalho no teatro terá sido de imensa importância no desenvolvimento da linguagem visual e técnica do jovem realizador, mas disso falarei mais à frente.

 Como podem verificar pela muito vaga contextualização que fiz acima, este é um filme com bastante história por detrás da sua mera existência, e ainda nem sequer referi nenhum dos elementos técnicos e formais que o marcam como tão importante obra na história do cinema italiano. Tudo isto construído à volta de um relativamente simples enredo que acompanha a história de uma família de pescadores. Um dos elementos mais jovens da família, Ntoni (Antonio Arcidiacono), um jovem idealista que terá já visto o mundo exterior à sua pequena vila aquando do serviço militar, tenta mudar a sua miserável existência revoltando-se contra os compradores de peixe, os patrões, que lhes compram o produto a um minúsculo preço. A família, unida sob o sonho de uma melhor existência, hipoteca a casa e tenta montar um sistema em que serão os pescadores a vender o seu próprio produto. Após um breve momento de calma e relativa felicidade esperançosa, as forças sociais, económicas e até naturais, abatem-se sobre a família, e no restante tempo do filme, observamos a crescente miséria sofrida pelos nossos protagonistas.

 Logo pelo enredo conseguimos perceber a forte componente social que Visconti pretendia explorar nesta sua obra. Apesar de muitas vezes montar as suas obras como uma reflexão de tempos passados, há que lembrar que Visconti se tratava de um indivíduo extremamente político. Os seus filmes poderiam não chegar ao nível de grito de fúria social que Pasolini terá alcançado em anos seguintes, mas não será por isso que não se encontra neles fortes mensagens políticas e de cariz social. Isto nunca terá sido tão visível e francamente, tão óbvio como nesta obra, em que, se a própria história já não fosse suficiente, temos um constante narrador em voz-off que vai comentando o filme e que praticamente guia a audiência de modo a melhor obter uma reação de ultraje social.

 É este voz-off, aliás, que, aquando de uma reação inicial e talvez precipitada, considerei como o elemento mais infeliz desta obra. Percebia as suas intenções e o modo como torna o filme e as suas mensagens e reflexões bastante acessíveis, mas não consigo parar de o considerar como um lugar-comum e fácil, até manipulador. Achei-o um elemento um tanto ou quanto desnecessário.

 Mas, como se pode verificar pelo meu uso do passado, a minha opinião sofreu alterações. Creio que, ao contrário da maioria da obra neorrealista, este filme se apresenta como algo mais grandioso que a vida comum de uma miserável Itália. Veja-se o modo como Visconti filma o filme e especialmente a relação entre a figura humana e a paisagem natural que se parece impor sobre os seres que nela habitam.

 Uma imagem como a mãe e as duas irmãs de Ntoni, a esperarem os homens de família nos rochedos junto ao mar durante uma tempestade, parece quase pertencer a uma tragédia grega, ou até a uma epopeia. Os vultos negros rasgam a brancura da espuma e da violência natural, quais Perséfone esperando Ulisses. Este foi apenas um exemplo de várias poderosas imagens que permeiam o filme.

 Este caráter operático e quase mitificante, parece estar de acordo com o tipo de história a que um narrador parece pertencer, quase que gravando nas linhas do tempo, através da palavra, a história do herói trágico que tudo perdeu na busca da justiça. Aqui o realizador parece quase fazer-se Homero ao narrar a história desta família, como que elevando os protagonistas a estatutos de heróis e mártires na mente da audiência.

 Penso que nesse aspeto se vê uma grande maturação no estilo de Visconti que, de modo bastante revolucionário para a industria cinematográfica italiana, decidiu filmar o seu filme com som direto, obtendo assim uma violenta paisagem sonora, cheia de sons marítimos e ventanias furiosas que assolam a pequena vila de Aci Trezza, quase castigando os humanos que se predispõem a sobreviver neste ambiente.

 Para além do ruído do ambiente, há que mencionar que o diálogo do filme não é falado em italiano mas sim no dialeto que as próprias pessoas que habitavam a vila onde o filme se passa e onde foi filmado. Esta população terá. Aliás, composto o elenco do filme. Um elenco de não-atores portanto. Verifica-se aqui uma procura por uma crueza, um verismo que, apesar de parecerem contraditórios, convivem lado-a-lado com o interesse formal e operático de Visconti, assim como com a forte mensagem política, muitas vezes expressa em imagens.

 Acerca deste último ponto gostaria de referir dois momentos de particularmente óbvio interesse social e político presente na realização do filme. O batismo dos novos barcos de pesca, mostrado com toda a pompa e circunstância. Imagens desapropriadas à miséria que foi explorada no resto do filme e em que a figura de uma velha aristocrata se encontra, sentada à sombra e comendo avidamente e de óculos de sol. Uma figura de quase grotesco face à miséria dos pescadores à sua volta. Outro será, nas cenas finais quando Ntoni pede um emprego nos barcos dos comerciantes, num momento de derrota e resignação, e em que por cima da face do mais velho e trocista comerciante, se vê uma citação de Mussolini. Visconti não poderia ser mais claro sem cair em discursos políticos.

 E é esta modulação e mestria entre os vários aspetos, interesses e impulsos artísticos que, para mim, fazem deste filme uma obra essencial na filmografia deste autor. É um filme que se parece elevar acima de muitos outros neorrealistas, uma obra que se eleva acima da importância que o seu contexto histórico lhe atribui logo à partida. Apesar de explorar temas semelhantes na sua obra-prima de 1960, Visconti alcançou com este filme os píncaros do movimento que havia ajudado a criar em 1942 e que viria a marcar de modo inescapável o panorama cinematográfico italiano.


sábado, 25 de outubro de 2014

GONE GIRL (2014) de David Fincher



 Talvez, antes de escrever o que quer que seja, fosse melhor dizer já que não li a tão celebrada obra de onde foi adaptado o filme mais recente de David Fincher. Para mim, isso não me faz grande diferença. Sempre fui e sou um defensor de que a literatura e o cinema são duas artes distintas, comparar as duas é um exercício fútil. Ou pelo menos sempre me pareceu assim.

 Comparar um livro com um filme dizendo que o livro era muito mais completo e desenvolvia muito mais a história e as personagens provoca-me sempre uma certa reação de irritação. O facto é que temos aqui linguagens distintas. Uma feita à base da palavra e com um tempo ilimitado e maleável, outra que é feita à base do som e da imagem em movimento e que tem sempre um tempo limitado, por muito extenso que este nos possa parecer.

 Isto talvez também esteja relacionado com o meu interesse no que diz respeito à singular arte que é o cinema e que é muito mais focado no lado visual e sonoro do que no texto à volta do qual muitos filmes insistem em ser construídos.

 Mas porque é que insisto em fazer esta exposição do meu modo de pensar cinema? E a sua relação com a literatura e o texto?

 Porque, para ser sincero, o momento que para mim mais me marcou neste filme, e que funcionou na minha mente como a pedra da roseta para toda a obra, é fortemente ligado ao texto que, neste momento específico, se torna o protagonista do filme.

 Este momento quase que marca o meio do filme e está presente numa sequência, que funciona como uma reviravolta de enredo e perspetiva. Antes de ser mais específico, acho que é bom avisar que quem for amedrontado pela palavra spoilers é melhor não avançar.

 Nesta sequência, é revelado que a trama do desaparecimento de Amy Dunne (Rosamund Pike) que abre o filme e que tem destruído progressivamente a vida do seu, aparentemente inocente marido, Nick (Ben Affleck), ao colocá-lo como o principal suspeito da morte hipotética da mulher, foi completamente orquestrado até ao mais ridiculamente ínfimo pormenor pela mesma.

 Para quem tiver uma presença regular em redes sociais ou em blogues que falem de cinema, esta revelação não será uma grande surpresa (não foi para mim), mas o modo como é explorada em alguns minutos pelo realizador e pelo texto é de particular fascinação. 

 Ao longo do filme, temos visto flashbacks da suposta vida como casal de Amy e Nick, desde o seu literalmente açucarado primeiro encontro, uma cena que parece a uma primeira vista demasiado escrita e longe do que qualquer ser humano diria, à progressiva implosão da sua relação, algo que parece ser principalmente culpa de Nick.

 Estes flashbacks são maravilhosamente fotografados por Jeff Cronenweth e têm uma edição que, muitas vezes, parece manifestar de uma maneira quase expressionista o estado mental do casal. Numa cena de discussão que resulta numa ação violenta da parte de Nick, os momentos que se seguem à violência são marcados por rápidos fade to black sem som, por exemplo. A banda-sonora é extremamente carregada e por vezes parece ser contraditória, insistindo num ambiente romântico que o texto não parece indicar. Para além de tudo isto, os flashbacks são sempre acompanhados pela voz de Amy, sendo que o que vemos são representações de excertos do seu diário.

 Em suma, são cenas que apesar da sua condição como aparentes retratos da realidade de um casal, transpiram de uma calculada concretização, algo que não é incomum na obra de Fincher, mas que aqui parece particularmente flagrante.

 Mas, se estas cenas parecem, pecar por um trabalho sobrecarregado do realizador e de uma artificialidade calculada, é porque são apenas criações fictícias de Amy. São partes do seu esquema, ou mais especificamente partes de um diário incriminatório deixado estrategicamente de modo a ser encontrado pela polícia e por o toque final na condenação do seu marido. Isto é-nos revelado ao mesmo tempo que, pela primeira vez, ouvimos a voz real de Amy, fora desse diário de falsidades.

 O que víamos até então eram cenas realizadas pela própria Amy. Ao longo do filme, esta assombrosa mulher parece funcionar quase como uma realizadora dentro do filme, um reflexo do perfecionismo quase obsessivo de Fincher. Em Amy, Fincher terá possivelmente encontrado o seu protagonista ideal. Ela é fria, inteligente, calculista, perfecionista e inegavelmente formidável. Por muito deploráveis que as suas ações sejam, Amy é sempre apresentada como uma figura superior, alguém que se mostra acima de todos os outros no filme e até da própria audiência. É impossível não a admirar, não nos apaixonarmos por esta loira gélida que parece transplantada de um filme perdido de Alfred Hitchcock.

 Numa cena, próxima do final do filme, Amy parece falar com o marido como se este fosse um actor antes de entrar em cena, e, para além disso, há que lembrar que ambos os membros do casal são retratados como escritores. Criadores de histórias, de mundos, de perspetivas, de ficções.
Mas não foi apenas este conceito da Amy-realizadora que se manifestou para mim nesta sequência extremamente expositiva e dependente do texto maravilhosamente dito em voz-off por Pike. Vejamos portanto, o momento de que falava no início deste texto.

 Eu referia-me a uma parte desta sequência em que vemos Amy a conduzir o seu carro de fuga na estrada e a ouvimos dizer o célebre (pelo menos é assim que me parece pelo que tenho lido online) “Cool Girl speech”. Não vou aqui citar o que é dito. Incentivo quem quer que esteja a ler isto a procurar o excerto do texto de Gillian Flynn.

 O texto é acompanhado de imagens de mulheres que passam em carros e que parecem representar, quase que de modo caricaturado, os alvos desta dissecação de Amy sobre as mulheres e sobre o modo como os homens as veem e as idealizam de modo irreal. De repente, o mundo do filme parece tornar-se num mundo em que os seres humanos são apenas objetos de estudo. Arquétipos e estereótipos a serem estudados e cruelmente dissecados para nossa reflexão e entretenimento. E não se iluda quem pensa que são apenas estas figuras femininas passageiras que são assim dissecadas pelo filme.

 Tal como estas mulheres, Amy funciona, em grande parte do filme, como uma imagem criada por outros, uma imagem irreal mas idealizada, uma artificialidade em grande parte criada e facilitada pela própria Amy. Amy não dirigiu apenas o filme e o seu marido, mas sim ela própria também. Ela fez de si mesmo a cool que o marido esperava dela, foi tornada na Amazing Amy (personagem fictícia de uma série de livros dentro do filme) pelos pais, e até na velha Amy pelo sinistro Desi Collings (Neil Patrick Harris).

 Ela também se torna, talvez inadvertidamente, alvo da sua própria crítica.

 Mas, tal como já disse, este é um mundo de objetos de estudo, e por muito formidável que Amy seja, ela também é apenas mais um sapo a ser dissecado numa aula de biologia. Pode ser o sapo do professor, a criatura em que o estudo mais assenta, mas não é o único animal a ser cortado para estudo.

 Se outras obras de Fincher dissecaram a identidade masculina (Fight Club, Se7en) ou o mito do bilionário moderno (The Social Network), Gone Girl parece focado em questões de género, na natureza do casal e do casamento.

 Isto pode parecer um pouco estranho ou até uma perspetiva bastante presunçosa da minha parte, sobre o que parece ser um thriller cujos prazeres derivam principalmente da complexidade barroquista do seu enredo. Mas não acho que o filme se trate de um simples policial, apesar do que os trailers e a maior parte do material promocional parecem indicar.

 É certo que o filme usa como base o policial, o thriller que se desenvolve à volta de um misterioso crime, mas as suas intenções não são baseados tanto em suspense mas mais em reflexão das ideias que o filme parece atirar à audiência sobre o casal protagonista e o mundo em que se inserem. Um mundo e um casal que estão longe de serem uma representação fidedigna da nossa realidade.

 Se a imagem do casal idealizado, romântico e sacarino é atacada pelas próprias personagens dentro do filme, há que ter também em atenção que essas mesmas personagens não representam seres humanos naturalistas, mas sim uma visão sociopática e indubitavelmente cruel do casal moderno. O filme pode criticar um extremo irreal mas não quer dizer que ele mesmo não represente outro extremo irreal.

 Esta irrealidade é o que faz com que não me preocupe tanto com a lógica do filme, ou com os estereótipos em que o filme se parece  desenvolver sobre, e que têm despertado a ira justificada de vários críticos e teóricos que tentam analisar o filme através de uma visão feminista. Não se trata de uma representação da realidade. Assemelha-se mais a uma desconstrução pós-moderna da ideia do casamento e do thriller policial.

 Tanto o homem como a mulher dentro do casal não saem ilesos da crítica e análise do filme. Amy parece mais monstruosa num sentido quase sobre-humano, mas Nick também não deixa de ser também ele uma monstruosa e desdenhosa figura da metade masculina deste casal. Talvez a diferença entre eles seja mesmo a superioridade assombrosa de Amy que no fim do filme parece ser quem mais tirou partido dos eventos do filme; parece quase recompensada pelas suas manipulações. A sua superioridade é em parte devida ao texto e à forma como Fincher a filma, mas há que salientar a prestação da maravilhosa Rosamund Pike.

 Pike é uma actriz que já admiro há alguns anos, desde que ela me chamou a atenção pela primeira vez em An Education. Não que não tenha mostrado o seu potencial noutros filmes como Pride & Prejudice, Made in Dagenham e The World’s End, só para mencionar alguns. O que salta logo à vista, para quem tenha visto estes filmes, é que, em todos eles, Pike tem um papel secundário, por vezes até o que é chamado de thankless role. No filme de que falamos, a situação é astronomicamente diferente. Aqui Pike está no centro do filme. Mesmo quando não está presente a sua presença é sentida. Nas mãos de Pike, Amy é uma figura de infindável fascínio, por vezes (flashbacks) parece bastante fria, distante e até um pouco artificial, noutros momentos parece encontrar em si uma fúria gélida e silenciosa que apenas se manifesta na sua plenitude no voz-off que permeia o filme.

 Mas é nos momentos finais do filme, depois do regresso a casa de Amy após uma infernal estadia na casa de um antigo namorado, que Pike realmente brilha. É aqui que a figura da realizadora mais se manifesta. Todas as peças dadas por Pike ao longo do filme parecem encaixar nos momentos finais. Não é que tenhamos de repente uma janela aberta à psicologia complexa da personagem, pelo contrário, no final já sabemos o potencial destrutivo de Amy, e já a vimos em ação, mas não é por isso que estamos completamente elucidados em relação a esta figura de proporções quase sobre-humanas.

 Basta vermos as imagens que iniciam e encerram o filme para percebermos o génio de Pike neste papel. Amy está deitada em cima de Nick enquanto ele lhe mexe no cabelo, vemos apenas o topo da sua cabeça, de repente ela olha para a câmara como se tivesse ouvido algo e assim fica, olhando a câmara, olhando Nick, olhando a audiência. Não tenho a certeza absoluta, mas penso que, apesar de quase idênticos, estes são takes diferentes (será algo a confirmar num segundo visionamento). No início do filme vemos uma enigmática imagem. Algo belo mas vazio, algo quer nos desperta o interesse, um enigma humano a resolver, quase que nos queremos aproximar daqueles olhos. No final a reação é bem diferente. Já não vemos no olhar uma beleza vazia, uma imagem distante, mas uma mulher que não compreendemos na totalidade, uma ameaça, uma deusa que nos pode destruir ou fazer triunfar, uma figura misteriosa mas da qual quase que nos queremos afastar como se ela nos pudesse alcançar com o seu olhar.

 O resto do elenco tem níveis de sucesso diferentes, se bem que ninguém chega aos píncaros de Pike. Carrie Coon é a que mais se destaca no papel da irmã gémea de Nick. Um pico de humanidade plausível no meio da frieza estilizada do resto do filme. Ela serve quase como um suporte da audiência, um barómetro moral das atrocidades cometidas. Apenas Ben Affleck e Neil Patrick Harris me incomodaram e me pareceram fracassos na sua interpretação dos seus papéis.

 Nick Dunne deveria ser alguém que vemos sofrer durante grande parte do filme. Vemo-lo ser humilhado e acusado de matar a mulher sempre com uma crescente fúria. Ele parece representar um homem comum e arquétipo na sua reação aos acontecimentos do enredo. Mas depois de uma cena em que dá uma entrevista na televisão, deveríamos começar a ver em Nick um igual a Amy. Desprovido, talvez, do seu aparente sadismo e perfecionismo psicótico, mas um igual. Esta potencial igualdade é fulcral para o sucesso do final do filme. Para mim Affleck nunca conseguiu transmitir isso.

 Nas mãos de Affleck, Nick nunca ganha a complexidade sugerida pelo texto. Enquanto Pike parece estar em harmonia com a falsidade dos flashbacks nada se altera em Affleck. Isto pode ter sido uma escolha do realizador ou do ator, mas não resulta, pelo menos para este membro da audiência.

 O caso de Harris é diferente. A sua personagem, e na verdade toda a parte do filme que se revolve em torno de Desi Collings, nunca resulta para mim. Se o resto do filme se eleva acima da base do thriller policial, esta parte do filme não o faz e parece apenas reforçar ideias já desenvolvidas de modo mais subtil e eficaz anteriormente no filme. Harris nunca eleva o seu papel e fica assim reduzido a um monstro bidimensional, patético e bastante implausível mesmo dentro da realidade estilizada do filme.

 O filme está longe de ser perfeito. Tal como The Girl with the Dragon Tatoo sofre de uma estrutura cheia de solavancos e quebras de ritmo. Algumas resultam como a mudança de perspetiva de Nick para Amy, outras nem tanto como o interlúdio na casa de Collings. Os cerca de 15 minutos finais em particular, parecem transplantados de outro filme, apesar de admitir serem a minha secção favorita do filme a seguir aos momentos já discutidos acima. Tal como no filme anterior parece haver vários momentos de final, que nunca acabam por ser o final.

 Presumo que parte destes problemas estruturais possam ter a sua génese numa demasiada fidelidade ao material literário. O mesmo aconteceu com The Girl with the Dragon Tattoo, cuja estrutura pode funcionar em livro, mas que, em filme, é incrivelmente deselegante e bastante contraditória em termos de tom. Mas, tal como fiz questão de referir acima, eu não li a obra de Gillian Flynn, logo não tenho conhecimento da estrutura que o enredo toma no livro.

 Mas o filme, problemas estruturais e de atuação à parte, é uma obra que causa reflexão e discussão. Uma desconstrução de um género bem dominado por este realizador e que nos oferece a mais carnuda interpretação de Rosamund Pike, a quem o filme é praticamente dado de mão beijada pelo seu realizador.






Introdução


 Com este blog tenho como mero objetivo, publicar alguns dos meus pensamentos em relação aos filmes que vejo. 

 A maior parte dos textos aqui presentes serão feitos a partir das minhas variadas notas sobre cinema, que tenho indo tirando há já algum tempo sobre os filmes que vejo. De certo modo, será quase uma 
versão mais trabalhada de um diário pessoal sobre cinema.

 Planeio escrever textos sobre filmes recentes e antigos, que estão agora no cinema ou DVD e filmes que, por vezes, vejo em festivais ou mesmo na Cinemateca... Por isso não esperem um grande seguimento racional nos textos aqui publicados, são, volto a dizer, mais um diário dos meus pensamentos sobre alguns filmes. 

 Espero que o que aqui escrevo interesse a alguém.


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O primeiro texto que aqui vou colocar será um pouco maior do que a maioria dos textos que se seguirão e é sobre um filme recente, ao contrário do que se poderá verificar no futuro. Espero que não se amedrontem com o tamanho do texto e que, talvez, até possam encontrar na minha analise algo interessante. Pois bem, que comece o blog.