sábado, 25 de outubro de 2014

GONE GIRL (2014) de David Fincher



 Talvez, antes de escrever o que quer que seja, fosse melhor dizer já que não li a tão celebrada obra de onde foi adaptado o filme mais recente de David Fincher. Para mim, isso não me faz grande diferença. Sempre fui e sou um defensor de que a literatura e o cinema são duas artes distintas, comparar as duas é um exercício fútil. Ou pelo menos sempre me pareceu assim.

 Comparar um livro com um filme dizendo que o livro era muito mais completo e desenvolvia muito mais a história e as personagens provoca-me sempre uma certa reação de irritação. O facto é que temos aqui linguagens distintas. Uma feita à base da palavra e com um tempo ilimitado e maleável, outra que é feita à base do som e da imagem em movimento e que tem sempre um tempo limitado, por muito extenso que este nos possa parecer.

 Isto talvez também esteja relacionado com o meu interesse no que diz respeito à singular arte que é o cinema e que é muito mais focado no lado visual e sonoro do que no texto à volta do qual muitos filmes insistem em ser construídos.

 Mas porque é que insisto em fazer esta exposição do meu modo de pensar cinema? E a sua relação com a literatura e o texto?

 Porque, para ser sincero, o momento que para mim mais me marcou neste filme, e que funcionou na minha mente como a pedra da roseta para toda a obra, é fortemente ligado ao texto que, neste momento específico, se torna o protagonista do filme.

 Este momento quase que marca o meio do filme e está presente numa sequência, que funciona como uma reviravolta de enredo e perspetiva. Antes de ser mais específico, acho que é bom avisar que quem for amedrontado pela palavra spoilers é melhor não avançar.

 Nesta sequência, é revelado que a trama do desaparecimento de Amy Dunne (Rosamund Pike) que abre o filme e que tem destruído progressivamente a vida do seu, aparentemente inocente marido, Nick (Ben Affleck), ao colocá-lo como o principal suspeito da morte hipotética da mulher, foi completamente orquestrado até ao mais ridiculamente ínfimo pormenor pela mesma.

 Para quem tiver uma presença regular em redes sociais ou em blogues que falem de cinema, esta revelação não será uma grande surpresa (não foi para mim), mas o modo como é explorada em alguns minutos pelo realizador e pelo texto é de particular fascinação. 

 Ao longo do filme, temos visto flashbacks da suposta vida como casal de Amy e Nick, desde o seu literalmente açucarado primeiro encontro, uma cena que parece a uma primeira vista demasiado escrita e longe do que qualquer ser humano diria, à progressiva implosão da sua relação, algo que parece ser principalmente culpa de Nick.

 Estes flashbacks são maravilhosamente fotografados por Jeff Cronenweth e têm uma edição que, muitas vezes, parece manifestar de uma maneira quase expressionista o estado mental do casal. Numa cena de discussão que resulta numa ação violenta da parte de Nick, os momentos que se seguem à violência são marcados por rápidos fade to black sem som, por exemplo. A banda-sonora é extremamente carregada e por vezes parece ser contraditória, insistindo num ambiente romântico que o texto não parece indicar. Para além de tudo isto, os flashbacks são sempre acompanhados pela voz de Amy, sendo que o que vemos são representações de excertos do seu diário.

 Em suma, são cenas que apesar da sua condição como aparentes retratos da realidade de um casal, transpiram de uma calculada concretização, algo que não é incomum na obra de Fincher, mas que aqui parece particularmente flagrante.

 Mas, se estas cenas parecem, pecar por um trabalho sobrecarregado do realizador e de uma artificialidade calculada, é porque são apenas criações fictícias de Amy. São partes do seu esquema, ou mais especificamente partes de um diário incriminatório deixado estrategicamente de modo a ser encontrado pela polícia e por o toque final na condenação do seu marido. Isto é-nos revelado ao mesmo tempo que, pela primeira vez, ouvimos a voz real de Amy, fora desse diário de falsidades.

 O que víamos até então eram cenas realizadas pela própria Amy. Ao longo do filme, esta assombrosa mulher parece funcionar quase como uma realizadora dentro do filme, um reflexo do perfecionismo quase obsessivo de Fincher. Em Amy, Fincher terá possivelmente encontrado o seu protagonista ideal. Ela é fria, inteligente, calculista, perfecionista e inegavelmente formidável. Por muito deploráveis que as suas ações sejam, Amy é sempre apresentada como uma figura superior, alguém que se mostra acima de todos os outros no filme e até da própria audiência. É impossível não a admirar, não nos apaixonarmos por esta loira gélida que parece transplantada de um filme perdido de Alfred Hitchcock.

 Numa cena, próxima do final do filme, Amy parece falar com o marido como se este fosse um actor antes de entrar em cena, e, para além disso, há que lembrar que ambos os membros do casal são retratados como escritores. Criadores de histórias, de mundos, de perspetivas, de ficções.
Mas não foi apenas este conceito da Amy-realizadora que se manifestou para mim nesta sequência extremamente expositiva e dependente do texto maravilhosamente dito em voz-off por Pike. Vejamos portanto, o momento de que falava no início deste texto.

 Eu referia-me a uma parte desta sequência em que vemos Amy a conduzir o seu carro de fuga na estrada e a ouvimos dizer o célebre (pelo menos é assim que me parece pelo que tenho lido online) “Cool Girl speech”. Não vou aqui citar o que é dito. Incentivo quem quer que esteja a ler isto a procurar o excerto do texto de Gillian Flynn.

 O texto é acompanhado de imagens de mulheres que passam em carros e que parecem representar, quase que de modo caricaturado, os alvos desta dissecação de Amy sobre as mulheres e sobre o modo como os homens as veem e as idealizam de modo irreal. De repente, o mundo do filme parece tornar-se num mundo em que os seres humanos são apenas objetos de estudo. Arquétipos e estereótipos a serem estudados e cruelmente dissecados para nossa reflexão e entretenimento. E não se iluda quem pensa que são apenas estas figuras femininas passageiras que são assim dissecadas pelo filme.

 Tal como estas mulheres, Amy funciona, em grande parte do filme, como uma imagem criada por outros, uma imagem irreal mas idealizada, uma artificialidade em grande parte criada e facilitada pela própria Amy. Amy não dirigiu apenas o filme e o seu marido, mas sim ela própria também. Ela fez de si mesmo a cool que o marido esperava dela, foi tornada na Amazing Amy (personagem fictícia de uma série de livros dentro do filme) pelos pais, e até na velha Amy pelo sinistro Desi Collings (Neil Patrick Harris).

 Ela também se torna, talvez inadvertidamente, alvo da sua própria crítica.

 Mas, tal como já disse, este é um mundo de objetos de estudo, e por muito formidável que Amy seja, ela também é apenas mais um sapo a ser dissecado numa aula de biologia. Pode ser o sapo do professor, a criatura em que o estudo mais assenta, mas não é o único animal a ser cortado para estudo.

 Se outras obras de Fincher dissecaram a identidade masculina (Fight Club, Se7en) ou o mito do bilionário moderno (The Social Network), Gone Girl parece focado em questões de género, na natureza do casal e do casamento.

 Isto pode parecer um pouco estranho ou até uma perspetiva bastante presunçosa da minha parte, sobre o que parece ser um thriller cujos prazeres derivam principalmente da complexidade barroquista do seu enredo. Mas não acho que o filme se trate de um simples policial, apesar do que os trailers e a maior parte do material promocional parecem indicar.

 É certo que o filme usa como base o policial, o thriller que se desenvolve à volta de um misterioso crime, mas as suas intenções não são baseados tanto em suspense mas mais em reflexão das ideias que o filme parece atirar à audiência sobre o casal protagonista e o mundo em que se inserem. Um mundo e um casal que estão longe de serem uma representação fidedigna da nossa realidade.

 Se a imagem do casal idealizado, romântico e sacarino é atacada pelas próprias personagens dentro do filme, há que ter também em atenção que essas mesmas personagens não representam seres humanos naturalistas, mas sim uma visão sociopática e indubitavelmente cruel do casal moderno. O filme pode criticar um extremo irreal mas não quer dizer que ele mesmo não represente outro extremo irreal.

 Esta irrealidade é o que faz com que não me preocupe tanto com a lógica do filme, ou com os estereótipos em que o filme se parece  desenvolver sobre, e que têm despertado a ira justificada de vários críticos e teóricos que tentam analisar o filme através de uma visão feminista. Não se trata de uma representação da realidade. Assemelha-se mais a uma desconstrução pós-moderna da ideia do casamento e do thriller policial.

 Tanto o homem como a mulher dentro do casal não saem ilesos da crítica e análise do filme. Amy parece mais monstruosa num sentido quase sobre-humano, mas Nick também não deixa de ser também ele uma monstruosa e desdenhosa figura da metade masculina deste casal. Talvez a diferença entre eles seja mesmo a superioridade assombrosa de Amy que no fim do filme parece ser quem mais tirou partido dos eventos do filme; parece quase recompensada pelas suas manipulações. A sua superioridade é em parte devida ao texto e à forma como Fincher a filma, mas há que salientar a prestação da maravilhosa Rosamund Pike.

 Pike é uma actriz que já admiro há alguns anos, desde que ela me chamou a atenção pela primeira vez em An Education. Não que não tenha mostrado o seu potencial noutros filmes como Pride & Prejudice, Made in Dagenham e The World’s End, só para mencionar alguns. O que salta logo à vista, para quem tenha visto estes filmes, é que, em todos eles, Pike tem um papel secundário, por vezes até o que é chamado de thankless role. No filme de que falamos, a situação é astronomicamente diferente. Aqui Pike está no centro do filme. Mesmo quando não está presente a sua presença é sentida. Nas mãos de Pike, Amy é uma figura de infindável fascínio, por vezes (flashbacks) parece bastante fria, distante e até um pouco artificial, noutros momentos parece encontrar em si uma fúria gélida e silenciosa que apenas se manifesta na sua plenitude no voz-off que permeia o filme.

 Mas é nos momentos finais do filme, depois do regresso a casa de Amy após uma infernal estadia na casa de um antigo namorado, que Pike realmente brilha. É aqui que a figura da realizadora mais se manifesta. Todas as peças dadas por Pike ao longo do filme parecem encaixar nos momentos finais. Não é que tenhamos de repente uma janela aberta à psicologia complexa da personagem, pelo contrário, no final já sabemos o potencial destrutivo de Amy, e já a vimos em ação, mas não é por isso que estamos completamente elucidados em relação a esta figura de proporções quase sobre-humanas.

 Basta vermos as imagens que iniciam e encerram o filme para percebermos o génio de Pike neste papel. Amy está deitada em cima de Nick enquanto ele lhe mexe no cabelo, vemos apenas o topo da sua cabeça, de repente ela olha para a câmara como se tivesse ouvido algo e assim fica, olhando a câmara, olhando Nick, olhando a audiência. Não tenho a certeza absoluta, mas penso que, apesar de quase idênticos, estes são takes diferentes (será algo a confirmar num segundo visionamento). No início do filme vemos uma enigmática imagem. Algo belo mas vazio, algo quer nos desperta o interesse, um enigma humano a resolver, quase que nos queremos aproximar daqueles olhos. No final a reação é bem diferente. Já não vemos no olhar uma beleza vazia, uma imagem distante, mas uma mulher que não compreendemos na totalidade, uma ameaça, uma deusa que nos pode destruir ou fazer triunfar, uma figura misteriosa mas da qual quase que nos queremos afastar como se ela nos pudesse alcançar com o seu olhar.

 O resto do elenco tem níveis de sucesso diferentes, se bem que ninguém chega aos píncaros de Pike. Carrie Coon é a que mais se destaca no papel da irmã gémea de Nick. Um pico de humanidade plausível no meio da frieza estilizada do resto do filme. Ela serve quase como um suporte da audiência, um barómetro moral das atrocidades cometidas. Apenas Ben Affleck e Neil Patrick Harris me incomodaram e me pareceram fracassos na sua interpretação dos seus papéis.

 Nick Dunne deveria ser alguém que vemos sofrer durante grande parte do filme. Vemo-lo ser humilhado e acusado de matar a mulher sempre com uma crescente fúria. Ele parece representar um homem comum e arquétipo na sua reação aos acontecimentos do enredo. Mas depois de uma cena em que dá uma entrevista na televisão, deveríamos começar a ver em Nick um igual a Amy. Desprovido, talvez, do seu aparente sadismo e perfecionismo psicótico, mas um igual. Esta potencial igualdade é fulcral para o sucesso do final do filme. Para mim Affleck nunca conseguiu transmitir isso.

 Nas mãos de Affleck, Nick nunca ganha a complexidade sugerida pelo texto. Enquanto Pike parece estar em harmonia com a falsidade dos flashbacks nada se altera em Affleck. Isto pode ter sido uma escolha do realizador ou do ator, mas não resulta, pelo menos para este membro da audiência.

 O caso de Harris é diferente. A sua personagem, e na verdade toda a parte do filme que se revolve em torno de Desi Collings, nunca resulta para mim. Se o resto do filme se eleva acima da base do thriller policial, esta parte do filme não o faz e parece apenas reforçar ideias já desenvolvidas de modo mais subtil e eficaz anteriormente no filme. Harris nunca eleva o seu papel e fica assim reduzido a um monstro bidimensional, patético e bastante implausível mesmo dentro da realidade estilizada do filme.

 O filme está longe de ser perfeito. Tal como The Girl with the Dragon Tatoo sofre de uma estrutura cheia de solavancos e quebras de ritmo. Algumas resultam como a mudança de perspetiva de Nick para Amy, outras nem tanto como o interlúdio na casa de Collings. Os cerca de 15 minutos finais em particular, parecem transplantados de outro filme, apesar de admitir serem a minha secção favorita do filme a seguir aos momentos já discutidos acima. Tal como no filme anterior parece haver vários momentos de final, que nunca acabam por ser o final.

 Presumo que parte destes problemas estruturais possam ter a sua génese numa demasiada fidelidade ao material literário. O mesmo aconteceu com The Girl with the Dragon Tattoo, cuja estrutura pode funcionar em livro, mas que, em filme, é incrivelmente deselegante e bastante contraditória em termos de tom. Mas, tal como fiz questão de referir acima, eu não li a obra de Gillian Flynn, logo não tenho conhecimento da estrutura que o enredo toma no livro.

 Mas o filme, problemas estruturais e de atuação à parte, é uma obra que causa reflexão e discussão. Uma desconstrução de um género bem dominado por este realizador e que nos oferece a mais carnuda interpretação de Rosamund Pike, a quem o filme é praticamente dado de mão beijada pelo seu realizador.






Sem comentários:

Enviar um comentário