sexta-feira, 28 de novembro de 2014

BOYHOOD (2014) de Richard Linklater



 Será possível, quando deparado com um projeto tão ambicioso como esta mais recente obra de Richard Linklater, um crítico, ou mesmo um cinéfilo comum, separarem o produto final que vêem diante de si do conhecimento que têm da ambiciosa construção desse mesmo produto? Como é possível neste caso separar a realidade do filme final, da história e do conceito que acompanharam a sua longa filmagem? Será necessária, ou mesmo adequada, essa separação? Não será praticamente impossível ter uma opinião sobre este filme sem considerar a imensa ambição do seu realizador?

 Para quem não saiba, e francamente não sei quem é que já ouviu falar deste filme, sem ter conhecimento da proeza de Linklater. O filme foi filmado ao longo de mais de uma década, usando o mesmo elenco, incluindo membros deste que eram ainda crianças no início das filmagens. Nomeadamente, o filme acompanha de modo bastante íntimo e efetivo, o crescimento do seu jovem protagonista interpretado por Ellar Coltrane. Tal criação é de uma imensa ambição, tanto em termos de produção efetiva do filme durante um tão longo espaço de tempo, como em termos de ritmo e desenvolvimento narrativo de um tão extenso retrato do crescimento de uma criança aos primeiros anos da idade adulta, aqui quase marcado com a entrada na faculdade e a saída da casa dos pais, ou da mãe neste caso.

 Apesar desse lado em que o filme retrata intimamente o crescimento de um rapaz, devo dizer que, tendo em conta o filme final e seu desenvolvimento narrativo, o título de Boyhood é bastante infeliz. É um título que cria uma imensidão de expetativas e que parece pertencer a um filme mais generalista e universal, e ao mesmo tempo mais redutivo do que a obra que temos diante de nós.

 Talvez “A Family” ou o inicial “The Twelve-Year Project” tivessem sido títulos mais apropriados, pois apesar do inegável foco do filme no rapaz, no seu centro existe uma exploração bastante cuidada da vida de, pelo menos, três dos membros da família relativamente disfuncional no âmago do filme. Há que dizer que a jovem irmã do protagonista interpretada por Lorelei Linklater, a filha do próprio realizador, não é , nem de longe, tão desenvolvida ou explorada como as outras figuras presentes no filme, o que terá tido origem numa falta de interesse da própria atriz aquando de meados do projeto.

 Como já disse, o filme retrata a vida de Mason Evans Jr. Durante doze anos de existência, focando-se também, de modo bastante substancial, na sua relação com a sua mãe, Olivia (Patricia Arquette), com quem vive e o seu pai, Mason Evans, Sr. (Ethan Hawke), que durante o filme, apesar de carinhoso e caloroso, é uma figura de uma certa ausência e quase distância. Observamos dois desastrosos casamentos da sua mãe, um deles caindo mesmo numa relação abusiva e numa apressada fuga, assim como o aparentemente bem-sucedido segundo casamento do pai. Observamos Olivia passar de precariedade económica e desemprego a uma professora do ensino superior. O filme termina com a entrada de Mason na faculdade, depois de uma separação da namorada de liceu (Zoe Graham), cuja relação ocupa um lugar de relevo no filme, abrindo-se assim, no final do filme, um novo capítulo na vida do protagonista, um novo capítulo que não seguimos, terminando o filme com um passeio durante o dia da chegada de Mason aos seus dormitórios.

 Uma das coisas que tenho já de dizer é que este é um filme que, apesar do seu ambicioso processo de filmagens, mostra no seu modo de retratar a vida das suas figuras, uma grande modéstia e um caráter de calmo observador, não forçando à vida desta família um ritmo dramático ou mesmo dramaturgicamente funcional, sendo que tenho de apontar este filme como um dos melhores retratos do ritmo errático, que muitas vezes marca o passar dos anos nas nossas vidas. É um filme, cujo enorme impacto, pelo menos para mim, não proveio de uma assombração técnica ou ideológica com cenas específicas, mas sim com a observação acumulativa de doze anos de vidas fictícias, que, aquando do fim das quase três horas do filme, deixam no espectador um impacto arrasador.

 Quando falo da modéstia formal do filme, não pretendo criticar negativamente o trabalho de Linklater, que julgo ser dos mais prodigiosos observadores do ser humano comum no panorama do cinema americano contemporâneo. A simplicidade do filme coloca afincadamente a atenção do espectador no desenrolar das vidas nelas retratadas, que nunca parecem retratadas por Linklater de forma demasiado sentimentalista, mas que também nunca caem numa frieza distante. O filme consegue manter esse equilíbrio de uma intimidade calorosa e não sentimentalista. Para além disso, presumo que o estilo simples do filme, tenha permitido um maior disfarce e controle do seu aspeto final, cujas filmagens se expandem por mais de uma década de avanços técnicos.

 Não é que este tipo de retratos do crescimento já não existam na história do cinema, mas não me consigo lembrar de nenhum que comprima em si doze anos de vida ficcionada, e que acompanhe de tal modo o crescimento dos seus atores. Aliás, o crescimento de Coltrane é um dos aspetos mais curiosos e até mais erráticos do filme, sendo que é bem visível, na sua prestação, a evolução como ator de Coltrane, desde o casual naturalismo inocente do rapaz de seis anos, ao ator mais preocupado e mais adulto que vemos nos momentos finais do filme, passando pelos primeiros anos da adolescência em que se parece verificar uma falta de conforto com a câmara e com o próprio comportamento corporal do ator. Parece alguém que se começa aperceber da sua condição de ator filmado. Compreendo que isso possa ser um aspeto negativo para muitos, mas para mim, manifestou-se como um retrato duplamente interessante da maturação de um indivíduo. O modo desajeitado da interpretação nesses anos que marcam o meio do filme, parece apropriado aos anos retratados nessa mesma parte. O filme alcança assim uma estranha e, diria eu, praticamente única, u simbiose entre ator e personagem sob o olhar de uma câmara.

 Mas se Coltrane mostra uma desajeitada, mas incrivelmente fascinante evolução na sua interpretação de Mason, Hawke e Arquette são simplesmente sublimes na sua evolutiva e imensamente segura interpretação dos pais do protagonista. Arquette em particular, parece ser limitada pela estrutura do filme que vai mostrando partes dos anos que retrata, estando sempre a recorrer a uma imensidão de saltos temporais. Mas essa limitação é por Arquette maravilhosamente usada, criando um complexo retrato, por vezes contraditório, mas sempre reminiscente da vida real. Veja-se a sua fragmentada evolução de uma mulher jovem, solteira, com dois filhos e um péssimo gosto em homens, à professora universitária, cansada, madura, com três casamentos falhados e apercebendo-se da solidão que, possivelmente, a espera com a ausência dos dois filhos. Os seus momentos finais são particularmente exemplares, e lembram ao espetador o passar dos anos e quanto já passámos com a família. Este tipo de identificação alcançada pelo filme será uma das razões que consegue de modo tão particular estabelecer uma intimidade com a audiência e com a família que retrata. Não que Hawke também não seja notável aqui. Ele que já é bastante reconhecível de outros filmes de Linklater, também é bastante beneficiado pelas suas entradas e partidas ao longo do filme, uma presença ora ausente ora essencial e presente, Hawke consegue, de modo bastante mais linear e diferente de Arquette, estabelecer a evolução contínua de Mason Sr., desde um pai despreocupado e até irresponsável, a um pai de família que trocou o seu carro desportivo por uma minivan.

 O resto do elenco tem variáveis níveis de sucesso, sendo que o seu trabalho é sempre dificultado pela estrutura do filme que parece estar continuamente a apresentar figuras novas, algumas pessoas que permanecem e outras que se vão perdendo ao longo dos anos. Talvez o único membro do elenco que eu diria, é bastante prejudicado pela estrutura do filme, seria Marco Perella como o padrasto e marido abusivo que marca o primeiro casamento de Olivia dentro do filme. A sua evolução até chegar aos níveis de abuso e alcoolismo vistos nas suas últimas aparições, é bastante abrupto e parece um pouco redutivo, tendo em conta o modo como os outros humanos nos vão aparecendo no filme. O modo como vamos conhecendo Mason, é particularmente interessante, vamos percebendo a pessoa que ele é, através do seu crescimento e da nossa prolongada observação, quase lembrando o modo como vamos conhecendo Adèle em La Vie d’Adéle do ano passado.

 Um aspeto que gostaria ainda de referir é o modo como Linklater prende o filme aos anos em que foi feito. Enquanto muitos criadores iriam procurar uma intemporalidade, o realizador parece querer procurar uma enorme especificidade temporal. Vejam-se as escolhas de músicas, muitas delas escolhas que eram inescapáveis nos anos em que o filme foi filmado. Veja-se o uso de eventos políticos específicos como a primeira campanha presidencial de Barack Obama. O próprio uso do lançamento do sexto livro da saga de Harry Potter, ou as discussões sobre o último filme das Star Wars, prende o filme temporalmente, e, a partir dessa enorme especificidade, penso que consegue alcançar um realismo e universalidade que de outro modo poderiam não se verificar.

 Admito que é difícil falar deste filme. Grande parte do seu impacto vem do simples facto de o vermos, de o experienciarmos e também do modo como, apesar da sua simplicidade e especificidade, o filme consegue lembrar-nos de momentos na nossa vida, Penso que para cada pessoa, a experiência será bastante distinta. O filme está cheio de momentos tremendamente prodigiosos no seu caráter de observação e penso que mesmo que não apreciemos a intimidade e simplicidade do filme, a ambição do realizador será suficiente para fazer desta obra, algo a não perder, algo a recordar e algo para refletir sobre. Para mim, esta foi uma maravilhosa criação de Linklater que se tem vindo a tornar um dos meus favoritos autores contemporâneos, e no final do filme, o impacto da observação de uma vida, foi tremendo. Talvez isso também provenha da minha proximidade com a própria idade de Mason, mas penso que todos, mesmo quem odeie o filme, conseguirá encontrar algum momento no filme que lhes lembre a sua própria realidade.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

DEUX JOURS UNE NUIT (2014) d. Jean-Pierre & Luc Dardenne



 A nova fracassada aposta de Marion Cotillard ao prémio de Melhor Atriz em Cannes… Sei que não deveria começar este tipo de texto com uma referência à fome de prémios, mas tenho de dizer que, com o passar dos anos, a contínua falta de reconhecimento em Cannes ao trabalho desta atriz está a começar até a mim me deixar levemente irritado, por muito que aprove a performance da vencedora.

 Bem, agora que comecei de modo tão pouco apropriado, e tão pouco relacionado com a qualidade do filme, acho melhor referir algo como facto de que não sou, e duvido que alguma vez seja, um grande fã do trabalho destes dois irmãos belgas, que tanto sucesso têm tido internacionalmente. A obra dos Dardenne é usualmente caracterizada por uma grande procura pelo naturalismo, muitas vezes à custa de qualquer interesse visual. Os seus filmes são focados num estudo humano, focados no trabalho de ator e este filme não difere em nada do que acabei de referir.

 Em Deux Jours Une Nuit, os irmãos Dardenne trabalham pela primeira vez com alguém a que se pode dar o título de estrela, a luminosa Cotillard. O seu foco no trabalho de ator ainda se intensifica mais neste filme, pelo que presumo que os mais negativos detratores do filme o apontariam como apenas um exercício da atriz sem grande estilo ou técnicos acrescentados à película. Tais acusações estão parcialmente certas, tenho de admitir, mas não de um ponto de vista negativo.

 O filme é inequivocamente construído em torno da interpretação da sua atriz principal, e é desenvolvido a partir de uma engenhosa estrutura que permite a Cotillard mostrar várias facetas e possíveis reações da sua personagem face ao mesmo tipo de conversa, várias vezes no espaço de tempo do filme.

 Esta estrutura engenhosa de que falo, é intrinsecamente ligada ao guião da autoria dos Dardenne. Nele, a protagonista, Sandra, é informada que, depois de uma votação em que os seus colegas teriam de escolher entre perder os seus bónus ou Sandra perder o emprego, irá perder a sua posição numa fábrica de painéis solares. É-nos rapidamente informado que Sandra terá sofrido de uma depressão, cujas marcas ainda são bastante sentidas no seu comportamento, e que a votação terá sido injusta, pelo facto de terem sido ditas certas informações enganadoras acerca da possibilidade de outra pessoa ser despedida. Sendo assim é decidido que será feita nova votação. Frente a isto, a nossa protagonista, quase que sob coerção do marido e de uma amiga do trabalho, visita os seus colegas durante dois dias e uma noite, tentando convencê-los individualmente a votarem a seu favor.

 Talvez tenha gasto demasiado espaço nesta descrição do enredo, mas penso ser fulcral para a apreciação do filme. Este é um intrínseco e bastante franco retrato do nosso mundo atual e da situação económica europeia. Vemos aqui uma confrontação entre empatia para com outro ser humano e uma quantia de dinheiro, que no nosso clima económico, se revela necessária e indispensável em muitos dos casos visitados. Não se trata apenas de uma dicotomia simplista entre humanidade básica e egoísmo, e por isso tenho de elogiar bastante os Dardenne, que, a partir das várias repetições, conseguem maravilhosamente dissecar esta questão assim como explorar a humanidade inerente nas suas várias personagens, exploradas a partir de compridas cenas de diálogo, em que, apesar do seu estatuto de estrela e protagonista, Cotillard muitas vezes quase que recua para o background a partir do seu relativo silêncio e linguagem corporal.

 Um filme assim construído iria ser um enorme fracasso se a performance no seu âmago não funcionasse, ou pecasse pelo artificialismo óbvio, algo que está bem longe da realidade da interpretação de Cotillard. Se não fossem os píncaros a que a atriz tem chegado nos últimos anos de trabalho poder-se-ia chamar a este filme o grande triunfo, a joia a coroar a carreira desta atriz francesa.

 Ao longo do filme, Cotillard parece quase negar qualquer tipo de superioridade moral ou heroísmo, ela é uma figura bem distante da inspiradora Erin Brokovich de Julia Roberts. Muitas vezes parece que Sandra vai ser completamente paralisada pelo seu medo e pelo desespero, veja-se a sua linguagem incorporal, o modo como se encolhe perante os seus interlocutores mais agressivos. O seu andar cansado, o seu sorriso inescapável quando, a meio do filme um rasgo de boa sorte parece revelar-se no meio da miséria, são tudo elementos que tornam este um trabalho inesquecível desta atriz.

 E os irmãos Dardenne parecem compreender isso mesmo. Por vezes parecem fixar a câmara apenas para observar a atriz existir como a personagem, vejamos portanto uma cena em que Sandra anda de autocarro. Nada acontece, apenas vemos Cotillard beber água e olhar pela janela. Uma presença cansada e vivida, que teme a sua próxima confrontação. Em suma, é um trabalho que justificaria a existência do filme mesmo que os realizadores nada mais fizessem com o material.

 E é bem apontar que, apesar de sofrer de uma simplicidade e displicência visual típica do circuito do cinema independente com pretensões de naturalismo, este filme mostra, de algum modo, uma certa preocupação com a composição e a apresentação da imagem. Exemplo disso mesmo são as confrontações de Sandra com os seus colegas, em que Cotillard parece sempre separada do outro ator por linhas no espaço. Quer sejam esquinas, vedações, paredes de cores diferentes, entre outros, há sempre uma separação de Sandra, sempre uma isolação da protagonista.

 É, mesmo assim, um filme simples, Simples mas eficaz e graças à sua protagonista bastante marcante. Uma obra de cinema humanista, algo que é bastante reforçado no final, que quase funciona como um apelo dos Dardenne à empatia humana no mundo moderno onde vivemos e onde um emprego e a perda deste podem destruir as nossas vidas e levar-nos à miséria. Tenho de dizer que, por vezes, quando penso no final, tenho a impressão de que talvez tenha sido um puco forçado, mas, de novo, Cotillard faz com que funcione. Só no final vemos um verdadeiro ressentimento e fúria no comportamento da protagonista, ultrajada pela posição em que foi colocada pelos seus superiores, algo que não é atirado à cara dos espetadores mas que está presente nas leves escolhas da atriz. Só assim é que o final consegue funcionar sem recorrer a lamechices, sem puxar a lágrima e sem forçar a sua mensagem em demasia à sua audiência.


sábado, 22 de novembro de 2014

AMOUR FOU (2014) de Jessica Hausner



 Este filme, que terá sido coroado como o melhor filme em competição na edição deste ano do festival de cinema de Lisboa e Estoril, é-nos apresentado como uma comédia, como uma reflexão sobre o amor e mais especificamente sobre o período romântico na História europeia, com uma perspetiva bastante germânica e até satírica. Uma dissecação quase académica destes temas.

 E será mesmo nesse academismo que eu encontraria os grandes problemas do filme. Um filme que nos expõe a solenemente ridícula história de um casal sobre o qual se abate um trágico destino romântico. Falo de Henriette (Birte Schnoeink), uma jovem aristocrata, um aparente ideal da beleza e simplicidade feminina da época, e Heinrich von Kleister (Christian Friedel), um autor romântico com bizarras e extremas noções de romantismo. Estas duas figuras são imediatamente ligadas na abertura do filme quando observamos Henriette relatar o seu gosto por um poema romântico escrito por Heinrich, ao seu bastante mais velho e inofensivamente paternalista marido, Fredrich (Stephan Grossmann), revelando logo os interesses literários do filme.

 Acompanhamos as duas figuras ao longo de um pacto desajeitado de se suicidarem num pseudo ato de romantismo. Heinrich, na verdade, recorre a Henriette depois de ser rejeitado por uma prima, pela qual ele parece estar apaixonado, e Henriette apenas parece recorrer a Heinrich quando pensa, devido aos ridiculamente ineficazes conhecimentos médicos da época, que vai morrer brevemente de qualquer modo. O casal é assim levado ao suicídio, não por ideias românticos, mas para num caso encher um pressuposto vazio e falta de propósito na vida, Heinrich chega a dizer que sofre devido à vida, mas não devido à morte, e noutro caso por uma inicial tentativa de controlar as condições da própria morte, quando a vida se parece revelar vazia. O romance parece aqui revelado quase como uma fútil e vazia ficção criada para se encher esse pressuposto vazio, para se ter um propósito falso na vida, ou neste caso na morte.

 Pelo meio temos também uma exploração de uma aversão europeia a ideias com origem na Revolução em França. Uma rigidez social de uma aristocracia já nessa época, obtusa e fossilizada nos seus costumes arcaicos. Exploramos o ridículo das vidas destes seres, que apesar de serem representados por humanos, pouco se assemelham a tal, estando mais próximos de metáforas ou de símbolos utilizados numa dissertação literária.

 E chegamos de novo a um dos meus grandes problemas com o filme, o facto de parecer flagrantemente óbvio na sua crítica e na sua análise. O filme parece sempre uma dissecação sem vida de um movimento literário e idealista, mais do que um filme. Não que não revele por vezes um certo primor técnico em termos cinemáticos, mas existe um valor didáctico a que é impossível escapar.

 O filme parece querer propor uma sátira, ou pelo menos uma comédia de costumes, mas ao mesmo tempo almeja apo que se assemelha a uma reconstituição da época através do recurso à pintura. A inspiração nessa arte pictórica é óbvia e impossível de negar. Basta olhar para qualquer uma das rígidas composições do filme, cuidadosamente criadas de tal modo que tudo parece ter o se rígido posicionamento, até os figurantes na distante paisagem estão cuidadosamente posicionados de modo a obter composições reminiscentes da pintura europeia da época. Algo que é apenas reforçado pela cuidados cenografia e pelos figurinos, que apesar de tudo acabam por revelar certas limitações orçamentais que impedem o filme de chegar aos píncaros estéticos que tentaria alcançar.

 Essa rigidez não se encontra só na composição espacial, mas também no trabalho de ator, sendo que grande parte do filme é passado a observar figuras que se mantêm estáticas no meio de um tableau, quais estacas desumanas das quais saem as falas necessárias à exploração intelectual que o filme pretende realizar. Talvez isto seja uma procura de um registo estilizado, um reflexo da rigidez social, uma tentativa de alcançar uma rigidez cómica, ou pelo menos satírica como Wes Anderson ou Roy Andersson, mas nada disso se parece registar. Em vez disso parece que obtemos um filme de manequins estáticos sem vida em que é impossível encontrar qualquer tipo de subtileza, ou para ser redutivamente franco, qualquer tipo de humanidade. Confesso compreender as possíveis intenções da realizadora, mas não deixo de pensar neste como um exercício um pouco falhado, pelo menos nestes aspetos.

 Pondo de parte esta rigidez, há que admitir que o filme contém em si uma bastante interessante concretização plástica e que, nas mãos de um realizador com uma mais leve e descontraída, ou mesmo mais estilizada e formal, direção, o filme poderia manter toda a sua teoria literária e crítica social e humana, sem se tornar na esteticamente bela mas asfixiante obra de exploração de um romantismo fútil e vazio. As ideias que o filme quer expor não me parecem indicar fracasso, nem o guião com toda a sua rigidez e motivações ridículas e admitidamente cómicas, apenas penso que a versão que vemos perante nós no ecrã, não será a melhor concretização de tão possivelmente interessantes, se bem que nada subtis, intenções.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

20.000 DAYS ON EARTH (2014) de Iain Forsyth & Jane Pollard



 Hoje em dia a ideia do filme documentário tem vido a ser fortemente alterada, desafiada e esticada até aos seus mais estranhos e artificiais limites. Isto a leva a obras como esta, um filme em que qualquer tipo de categorização entre ficção e documentário, parecem dúbias e até fúteis. Um filme inclassificável, por vezes fascinante, por vezes perdido na sua pomposidade.

 Antes de mais, seria apropriado descrever um pouco o filme e a sua premissa inicial, que nunca passa de um leve conceito, sendo apenas um pretexto para uma sequência inicial e para o título. O filme explora, de um modo extremamente fictício, a persona e o trabalho de Nick Cave, sendo que se apoia numa ideia de reflexão, numa ideia de 24 horas com o artista, em que exploramos o legado dos dias que antecederam este dia pelo filme capturado.

 Isto é abertamente proposto pelo filme na sua sequência de abertura, em que vemos imagens em vários ecrãs, um mar de imagens velozes em que vemos o passar da vida do músico, sendo que isto é acompanhado por uma contagem dos dias vividos por este, até chegarmos ao dia 20.000, o dia de que o filme iria tratar. O filme não é nenhuma obra de cinema verite em que os realizadores foram capturando esse dia na vida de Cave, está bastante longe disso ou de qualquer pretensão de realidade.

 Esta é uma obra abertamente artificial na sua criação, pelo que apenas o mais inocente dos espetadores poderia julgar o que é apresentado como um dia normal na vida de Cave. O filme mais se assemelha a um filme sobre um músico que reflete, maioritariamente num crescentemente irritante e pomposo voz-off, sobre a sua vida, a sua carreira e a sua relação com sua arte. Um filme em que Cave se interpreta a si próprio no que se assemelha a uma construção fictícia do artista sobre a sua própria figura. Um autorretrato de Cave possibilitado pelo trabalho dos realizadores, e tal como qualquer autorretrato, o filme é uma obra de cuidado artificialismo e técnica na criação da imagem de uma personalidade no seu centro.

 O filme com a sua cuidada mise-en-scène e sua prodigiosa e bastante polida fotografia, cria em si mesmo uma mentira, uma fantasia. Uma ficção a partir da qual se tenta chegar a alguma realidade. Onde se tenta obter uma reflexão, uma visão da realidade de Cave. O artista chega mesmo a falar do modo como usa as suas memórias de pessoas que o marcaram como modo de criar as suas obras. Ele falseia, mitifica, dilui a verdade de modo a criar a sua música. Do mesmo modo, os realizadores do filme trabalham estas suas visões de Cave criando uma mistura entre autorretrato e retrato, uma reflexão de Cave sobre si mesmo e uma mitificação do mesmo feito a partir de um ponto de vista exterior, mas sem dúvida reverente.

 Existe então uma grande ênfase na memória, algo que não é de algum modo escondido pelo filme ou mesmo explorado com qualquer subtileza. Recorre-se a uma cena de terapeuta em que vemos de uma perspetiva psicanalítica essa exploração de Cave pelas memórias do seu passado e mais à frente temos longos momentos em que Cave utiliza fotografias para refletir sobre si mesmo. Em resumo, o filme torna explícito todas estas suas intenções.

 Combine-se esta explícita intensão de autorreflexão com a persistência num voz-off incessante de Cave, o que leva a que o filme, por vezes, pareça vergar sob o peso da pomposa autorreflexão e até auto mitificação das palavras de Cave. Teno de admitir que, de um ponto de vista puramente pessoal, chegado aos momentos finais do filme já me encontrava um pouco saturado das palavras vagarosas e de uma dimensão quase de reverência crítica à sua própria imagem de Cave. Não que, especialmente no início do filme, as suas palavras não contenham em si um grande interesse, uma visão à mente do artista, mas depois de todo o decorrer do filme e a sua persistência num apoio totalmente dependente nas palavras faladas de Cave, existe um certo cansaço e até repetição de ideias já suficientemente expostas.

 Apesar de tudo isso, existem algumas cenas e sequèncias em que o filme realmente brilha e se parece soltar um pouco da rigidez imposta pela recorrência constante ao voz-off de Cave. Falo da sua estranha e quase sonhadora cena com Kylie Minogue num carro guiado pelo músico, em que as duas estrelas de mundos musicais bem diferentes parecem unir-se neste mundo de ruminações intelectuais sobre a sua própria figura como celebridades e como artistas. Mas também me refiro a todos os momentos musicais que pontualmente vão ocorrendo ao longo do filme, culminando no concerto que o encerra.

  Enquanto via o filme perguntava-me se a razão para a minha tão maior apreciação dos momentos musicais em relação ao resto do filme provinha de alguma subjetividade devida ao facto de realmente apreciar o trabalho de Cave, ou se seria a genuinidade estranha e quase alienígena que essas cenas trazem em comparação com o artificial estudado do resto do filme. Nessas cenas existe uma deliberada e genuína teatralidade, que no resto do filme chega a parecer um pouco forçada. Acabei por não ter grande resposta a não ser a que durante estas cenas o filme parece desafiar e quebrar as suas barreiras estruturais autoimpostas, fugindo um pouco ao caráter de reflexão pela artificial voz-off do filme e substituindo esse mecanismo pela música de Cave, que acaba por ser um modo de autorreflexão de Cave que parece surgir muito mais livremente que a sua quase interpretação de si próprio ao longo do restante filme.

 O final, que acompanha um concerto de Cave, chega aos píncaros do filme. Aí parece que a, por vezes repetitiva, dissecação, que o filme tenta realizar sobre a figura de Cave, se manifesta como uma exploração do que está por detrás desta música, desta obra final. O filme parece revelar-se como um filme sobre a criação artística, sobre os caminhos de Cave para obter as suas obras. No final todas as peças parecem montar-se num mecanismo perfeitamente funcional e dinâmico. Talvez até terá sido essa exuberância energética e conceptualmente unificadora que fez com que, para mim, as cenas musicais, nomeadamente o final, empalidecessem em relação ao filme que se desenrola para além destes momentos.

 De qualquer modo, independentemente das minhas objeções ou dúvidas em relação ao filme, que acho que se limita estruturalmente a si próprio, nunca explorando o que a sua inicial premissa realmente parece propor, acabando por cair numa recorrente repetição, penso que esta é uma fascinante obra documental. É interessante verificar os limites do documentário, mesmo que num modo mais convencional como esta obra, bem longe das grotescas encenações de The Act of Killing por exemplo. Talvez isso seja uma falta de objetivismo pessoal e uma sedução da música de Cave face ao filme e à minha perspetiva da obra, mas não consigo negar que penso neste, como um documentário de mérito, em que existe um potencial, infelizmente não completamente explorado pelos seus criadores.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

PRIDE (2014) de Matthew Warchus



 Normalmente, tenho que confessar, quando vou ver um filme que se publicita como uma história inspiradora baseada num caso verídico, entro sempre na sala de cinema com uma predisposição para detestar o filme. Fico sempre à espera de personagens santificadas, de fórmulas irritantes, de um filme desnecessariamente solene cheio de momentos forçosamente inspiradores que só me dão vontade de revirar os olhos na escuridão da sala. Mas é claro que há que ter em consideração as expetativas criadas pela leitura de críticas de cinema, que neste caso eram de um estranho e quase desmesurado positivismo. Digo isto, porque quando entrei para este filme não ia com as minhas usuais e destrutivas baixas expetativas, na verdade entrei na sala com uma grande disponibilidade para apreciar o filme.

 Acrescenta-se a tudo isto o facto de que a temática da história tratada no filme é algo que me interessa, mesmo a nível pessoal, e temos os dados lançados para o inverso do que normalmente acontece comigo. Se em situações semelhantes poderia ser vítima de uma subjetividade negativa, neste caso tenho medo de me ter deixado levar em demasia pelo filme, talvez perdendo um ponto de vista objetivo sobre a obra à minha frente.

 Tudo isto para dizer que, apesar de algumas dúvidas iniciais, eu adorei este filme. Pode não ser uma das mais complexas obras que vi nos últimos tempos, nem um filme com uma técnica formal interessante ou complexa, mas há já bastante tempo que não tinha uma tão agradável experiência numa sala de cinema. Como uma forma de entretenimento jovial, o filme é um absoluto triunfo, ou pelo menos foi para mim, e como um filme com fortes mensagens políticas, mesmo que viradas para o passado, penso que o filme também alcança um modesto triunfo.

 Antes de continuar a minha ode ao filme, há que falar um pouco da história por detrás do filme, pois se há um filme que necessita de uma contextualização em termos de história e enredo, será este. Em 1984, em plena Inglaterra sob o regime conservador de Margaret Thatcher, um grupo de lésbicas e gays forma um grupo de apoio aos mineiros, que nesse ano começaram uma greve que iria durar quase um ano, depois de uma conclusão que teria havido uma redução no assédio policial à comunidade gay, sendo que as novas vítimas seriam os mineiros em greve. Inicialmente, o grupo LGSM (Lesbians and Gays Support the Miners) sido recusado pelo sindicato dos mineiros, apesar de repetidas tentativas, até que acabam por contactar com uma vila específica de mineiros no País de Gales, Onllwyn, escolhida de modo quase acidental, e para onde irão focar os seus esforços. O filme trata do espaço de quase um ano que marcou esta relação de solidariedade, observando a difícil integração e aceitação da comunidade gay por parte dos mineiros, assim como os vários contratempos e derrotas que marcaram esta associação que por vezes parece apenas tentar angariar dinheiro para combater a fome das famílias de mineiros. Esta estrutura é emoldurada por duas Pride Parades, uma em 1984 e outra em 1985, sendo que nesse espaço de tempo vai acompanhando um enorme elenco de personagens, ativistas, mineiros, as suas famílias, etc.

 Pride é um filme sem protagonista, um filme que, a partir de um prodigioso guião da autoria de Stephen Beresford, consegue gerir um grande elenco de personagens, sendo que algumas delas têm apenas algumas sugestões de uma sub-plot. O filme não se investe em demasia em nenhuma das suas personagens, criando um retrato de uma comunidade, onde apesar de haver algumas personagens tornadas mais relevantes, também pela sua posição no enredo, quase todos têm o seu dito “momento para brilhar”. Talvez as personagens mais próximas dessa, neste caso, inadequada classificação como protagonista sejam Mark (Ben Schnetzer), um jovem ativista politico que acaba por dar origem e quase liderar o movimento LGSM, e Joe (George MacKay), um jovem que completa os seus 20 anos no dia da Pride Parade em Londres de 1984, sendo que se acaba por envolver quase inadvertidamente com a organização de apoio aos mineiros, tornando a sua viagem no filme, uma viagem de autodescoberta, e quase uma história de coming of age, no sentido em que no final o vemos a afirmar-se como um indivíduo, especialmente em relação à sua família, que não parece conseguir aceitar a sua sexualidade.
 Uma das sequências de maior sucesso do filme, pelo menos para mim, é a que abre o filme após uma breve contextualização histórica a partir de imagens televisivas da violência contra os mineiros durante os inícios da greve. Falo da sequência que retrata a Pride Parade de 1984 em Londres e que nos apresenta a praticamente todos os membros iniciais da LGSM, nomeadamente Mark que nos é apresentado olhando fixamente uma entrevista televisiva de Thatcher, e saindo apressadamente de casa após o que nos parece ser um one night stand, e Joe que após sair da sua casa onde celebrou o seu vigésimo aniversário com a sua aparentemente conservadora família, decide ir ao desfile, sendo que acompanhamos os seus movimentos abortados enquanto se decide ou não a entrar no desfile. A câmara acompanha estes movimentos, observando o modo como ele parece entrar no desfile, sai, finge ser um espetador, olha o ódio de alguns transeuntes homofóbicos, é quase forçado a segurar um cartaz por Mike (Joseph Gilgun), um amigo de Mark e também um ativista, e acaba por voltar ao desfile, já com alguma certeza e inicia o seu envolvimento com a LGSM ao segurar num balde para recolher dinheiro para os mineiros. Veja-se o modo como segue Joe, e como a montagem parece tentar colocar-nos no seu nervosismo e dúvida. É um momento de simples técnica, mas que é inequivocamente eficaz, criando no simples mudar de direção do andar de Joe, mostrado num rápido plano dos seus pés, um pequeno triunfo pessoal. Aqui vemos o balanço que o filme está sempre a criar entre uma preocupação comunitária e uma preocupação com o indivíduo, abordando temas sérios mas sempre com uma leveza que impede o filme de cair numa seriedade forçosa e aborrecida.

 É difícil falar do filme, devido à sua imensidão de personagens e pequenas histórias pessoais, mas há que salientar essa abordagem leve que acima referi. Não é que o filme não consiga abordar com seriedade a sua trama, especialmente a um nível político, mas o filme nunca deixa de ser uma comédia, não martirizando nem os ativistas nem os mineiros, nunca os reduzindo a uma só coisa. A personagem de Maureen (Lisa Palfrey) é o que mais se aproxima no filme de uma figura de vilão, se bem que o verdadeiro vilão é sempre um governo conservador liderado por Thatcher, mas apesar disso é uma personagem complexa, uma viúva de um mineiro com dois filhos mineiros e pontos de vista conservadores e preconceituosos, que mesmo assim não nos é apresentada como um monstro, sendo que uma visita noturna do irmão do seu falecido marido, Lee (Bill Nighty), nos expõe ao orgulho magoado desta mulher, e à sua perda, não nos permitindo reduzi-la a um monstro preconceituoso e bidimensional. É verdade que talvez fosse necessária uma mais complexa criação de personagem em alguns destes casos, mas o filme parece preencher as suas duas horas com todos os detalhes necessários para a criação de uma comunidade de indivíduos e personalidades, sem cair em redutivismos falhados.

 Esta preocupação com as personagens não é algo que seja necessário em todos os filmes, mas neste caso é algo essencial, e há que mencionar que, para além do texto e da realização, também o trabalho de ator é de salientar, sendo que penso estar aqui um dos melhores elencos do ano, onde não existe uma única nota em falso. Ninguém parece querer roubar protagonismo, sendo que todos parecem trabalhar na criação dessa ideia de comunidade que prevalece pelo filme, criando complexidades onde até o guião não parece apontar. Seria um pouco fútil falar de cada um dos membros individuais do elenco, mas gostaria de mencionar alguns nomes específicos.

 Imelda Staunton volta, neste filme, a um seu conhecido registo de quase caricatura, criando sempre um comic relief neste papel de membro do concelho de apoio aos mineiros de Onllwyn, que mesmo assim não cai na bidimensionalidade que esta descrição possa indicar. Uma cena que partilha com Bill Nighty, em que ambos conversam enquanto preparam comida para os mineiros, é de particular relevância, revelando nessa figura uma inesperada complexidade e vivência. Jessica Gunning, uma desconhecida pelo menos para mim, é particularmente notável no papel de Sian, a mulher de um mineiro, que acaba por se tornar membro do concelho e que também se torna uma das mais importantes figuras no movimento de ajuda aos mineiros. Se o filme se torna uma viagem de autodescoberta e afirmação para Joe, também o faz com esta personagem, se bem que de modo um pouco mais discreto, sempre possibilitado por um bom trabalho da atriz. E ainda há que referir Andrew Scott, que já conhecia previamente da célebre adaptação da BBC dos livros de Sherlock Holmes. Se como Jim Moriarty em Sherlock, Scott explorou uma bizarra e grotesca exuberância, no papel de Gethin, o namorado de longa data de um dos mais exuberantes membros da LGSM, Jonathan (Dominic West) que terá sido o segundo caso registado de SIDA no Reino Unido, e dono de uma livraria, assim como um homem de origens galesas, há já muitos anos afastado tanto da sua família como das suas origens. A sua fisicalidade cansada e o seu progressivo regresso às suas origens e à sua família, marcam este trabalho, que no meio de toda a exuberância e jovialidade do filme, se revela como uma agradavelmente matura e calma presença.
 É verdade que o filme tem alguns problemas, sendo talvez estes a sua ocasional recorrência a técnicas e mecanismos desinspirados e dependentes de fórmulas, como o texto que aparece no final do filme revelando o que aconteceu a algumas das personagens verídicas, assim como uma bizarramente energética cena de dança protagonizada por Dominic West e que parece por momentos sacrificar a verosimilhança da evolução da relação entre os mineiros e os membros do LGSM por um momento musical exuberante. Também há por vezes uma criação demasiado perfeita entre as várias vidas que compõem o elenco de personagens do filme. Basta olharmos duas confrontações entre homens homossexuais e suas mães para nos apercebermos como o filme nos está a estabelecer, de modo bastante deliberado e até obvio, uma ponte entre estes dois tipos de relacionamento e de aceitação.

 Mesmo assim, para mim, o filme foi um triunfo. Modesto e simples, sim, mas mesmo assim um triunfo com uma forte mensagem de comunidade e de ativismo político que parece apelar a uma solidariedade que muitas vezes parece ser sacrificada, especialmente no panorama política e económico da nossa atualidade. Mesmo para quem se queira apenas divertir numa comédia leve, o filme está recheado de momentos e de falas de inegável valor cómico, sendo que escolher as melhores falas entre esta tão vasta multitude seria quase impossível. Uma grande obra de entretimento, maravilhosamente concretizada que funciona quase como um instantâneo antidepressivo cinematográfico, mesmo tendo em conta a seriedade e tragédia de alguns dos temas e vidas no filme explorados.

domingo, 16 de novembro de 2014

SAINT LAURENT (2014) de Bertrand Bonello

      




 O único critério de julgamento de um ato é a sua elegância.
- Jean Genet   



 Antes de dizer o que quer que seja sobre este filme, tenho de confessar, que, antes de o ver pela primeira vez, tinha imensamente grandes expetativas em relação ao mesmo, especialmente após o meu visionamento da medíocre tentativa de Jalil Lespert de capturar em filme a vida de Yves Saint Laurent. Expetativas estas, que, foram ao mesmo tempo uma bênção mas que também acabaram por se revelar como um terrível obstáculo, pelo menos ao meu pessoal apreciamento do filme.

 Haverá pouco a apontar na prodigiosa realização de Bonello, mas o guião à volta do qual o filme é construído é de uma irritante convenção, de uma típica e por vezes confusa estrutura de filme biográfico que nada fazem para melhorar o filme, e que se acabam por revelar como um peso mortal que tenta arrastar o filme para as suas profundezas de mediocridade, enquanto a realização parece tentar levar o filme a altas glórias formalísticas e de estilo cinematográfico.

 Tal como o primeiro filme sobre Saint Laurent, que estreou neste ano nas salas de cinema internacionais, o filme de Bonello tenta focar-se em algumas décadas específicas na vida do criador, focando grande parte do seu clímax no desfile da YSL de 1976, que acabou por marcar um dos maiores sucessos na carreira deste. Ambos os filmes se focam também, em parte, na relação que marcou tanto a vida pessoal como profissional do criador francês, a que estabeleceu durante décadas com Pierre Bergé, assim como um caso de vários anos com Jacques de Bascher, num período da sua vida marcado pela decadência e toxicodependência. Ambos os filmes apresentam estruturas bem convencionais, chegando este mesmo filme a insistir em sempre nos mostrar o ano em que a ação se vai decorrendo, quase que marcando capítulos temporais, sendo que o ultimo terço do filme parece perder qualquer noção de estrutura linear, caindo numa caótica mistura de linhas temporais que lembra os esforços de Olivier Dahan na sua biografia de Edith Piaf.

 Mas antes de mencionar mais alguma parte dessa estrutura e desse texto que, para mim, tanto prejudicam o filme em geral, penso que seria de muito maior importância e, sem dúvida para mim, de muito maior prazer, falar um pouco do assombroso estilo que marca o filme. Se à obra de Lespert faltava a elegância e sofististicação de Saint Laurent aplicado a uma linguagem cinematográfica, na obra de Bonello isso é o que está mais presente. Aqui, Bonello terá conseguido estabelecer uma linguagem de opulência visual, de exuberância dinâmica, e de precisão e detalhe, que mesmo em cenas em que nenhumas das criações de Saint Laurent estão presentes, conferem ao filme uma linguagem, sempre intrinsecamente relacionada com o mundo do seu protagonista.

 Para ser sincero, existem tantos momentos de exímio trabalho plástico neste filme, que me é difícil escolher alguns momentos específicos para sublinhar. Tentarei ter algum controle e apenas falar de alguns, mas asseguro quem quer que esteja a ler, que será difícil neste ano se encontrar um filme de tamanho esplendor visual e que de tal modo seja um festim de elegância e estilo para os olhos da sua audiência.

 Veja-se os primeiros encontros de Saint Laurent (Gaspard Ulliel) com Betty Catroux (Aymeline Valade), e com Jacques (Louis Garrell). Em ambas as ocasiões sentimos a excitante atração que se estabelece entre estas figuras. Na primeira, a música e o trabalho de câmara parecem acompanhar, quase que deliciando a figura coberta de cabedal preto de Valade, estabelecendo-a imediatamente como uma figura visual, um objeto de maravilhosa beleza e sensualidade. A câmara segue-a para a pista de dança, focando-se na sua cara em êxtase, ela desprende o cabelo e nós percebemos a tentação de a obter, que Saint Laurent imediatamente apresenta. A própria câmara nos leva nesta sedução visual e sonora, criando nesta mulher uma imagem de inegável beleza. O facto de grande parte da conversa entre a modelo e o criador se fazer olhando um espelho não é acaso, reforçando ainda mais a completa preocupação com a glória da beleza vazia. Aqui a beleza visual impõe-se a tudo.

Também no encontro com Jacques a câmara, a cor, o movimento, tudo, criam uma atmosfera de sedução, sendo que a câmara vai fazendo travellings horizontais ao longo de uma discoteca, seguindo o olhar dos dois homens, num jogo de sedução sofisticada que quase se assemelha a um lento e erótico jogo de ténis com o olhar. Haverá imagem mais luminosamente erótica em todo o filme que a imagem de Louis Garrel, envergando um luminoso smoking branco que o realça em comparação a toda a multidão e mesmo ao espaço em que a negrura límpida e as cores vivas das luzes parecem dominar? Ele aparece-nos, mordendo o dedo, numa provocação estabelecida com o olhar, criando aqui um momento de absoluto triunfo no filme. O filme pode relatar uma narrativa de decadência e desgraça, mas é impossível em momentos como este não sermos também seduzidos por essa mesma gloriosa existência.

 O filme realmente encontra o seu triunfo quando se deixa levar pelos excessos das suas personagens, pelos excessos e pelo luxo que a tudo se parecem impor, suplantando tudo o resto. Em momentos chave do filme, o realizador parece contrastar a glória das criações de Saint Laurent com o horror do mundo em que o rodeia, veja-se uma inteligente montagem em split screen que mostra o passar dos anos e que contrapõe imagens reais do mundo em conflito da época, como de Maio de 1968, com as várias coleções de Saint Laurent, sendo que, apesar das filmagens de arquivo ocuparem maior espaço na composição, o nosso olhar é sempre atraído para a beleza, abandonando esses horrores históricos. Outra ocasião, aquando do clímax do filme, será quando Bonello corta entre a glória do desfile de 76, usando split screens que imitam as composições de Mondrian e o movimento da camara como modo de tornar o próprio movimento dos tecidos algo digno de êxtase, com os trágicos destinos que acompanharam algumas das figuras do filme, fruto da sua decadência. Vemos, por exemplo, o moribundo Jacques, cheio de manchas pela cara e morrendo de complicações consequentes da sua seropositividade, a coser um urso de peluche velho. Existe aqui o perigo de se cair num certo registo didático e moralista, mas a glória da moda é tão grande na apresentação de Bonello, que a existência das imagens trágicas parece apenas realçar a glória plástica das outras.

 E não será essa imagem de suplantação do conteúdo face ao estilo e à sofisticação algo apropriado a um filme sobre Saint Laurent e sobre a moda em geral? Não serão as detalhadas sequências em que acompanhamos o trabalho minucioso do atelier de Saint Laurent na criação das roupas muito mais interessante e fascinante que as variadas cenas do moribundo Saint Laurent? Uma crítica que tenho lido várias vezes em relação a este filme terá a ver com a sua suposta superficialidade, a sua frieza e falta de complexidade psicológica. Para mim o oposto ocorre, sendo que desejaria que o filme fosse ainda mais superficial, e que essa suplantação do conteúdo biográfico e convencional face a um estilo e a uma sofisticação superficiais existisse em ainda maior exagero e evidência. Algumas tentativas de exploração psicológica, como as alucinações de Saint Laurent, parecem-me aliás bastante óbvias e até desinteressantes.

 Este não é um filme perfeito e padece de grandes males relacionados com o seu caráter biográfico, mas mesmo assim, nos seus momentos altos, o filme chega a glórias imensas, a um excesso estilístico que é refrescante na sua completa entrega à beleza e à elegância, que a meu ver, é um triunfo num filme que tanto explora a obra de um dos mais icónicos e célebres criadores de moda do século XX.



sexta-feira, 14 de novembro de 2014

THE TWO FACES OF JANUARY (2014) de Hossein Amini


 Tenho sempre certas preocupações quando vejo o trabalho de alguém, que se estabeleceu numa área específica do cinema como atuação ou fotografia, aplicado agora à realização. Não que seja algo que não ache brilhante e algo a encorajar, mas muitas vezes observamos uma certa falta de visão nestes profissionais já entrincheirados numa área de conhecimento específica. Pelo menos, costumamos ver um foco bastante eficaz na área em que se estabeleceram profissionalmente. Sei que estou a ser bastante generalista e redutivo e que devo, sem dúvida tentar ter uma mente mais aberta, mas por um Nicolas Roeg temos uma imensidão de realizadores como Hossein Amini.

 Não pretendo dizer que, na sua futura obra, Amini não vai mostrar um positivo desenvolvimento em relação ao trabalho que mostra neste seu primeiro filme como realizador, mas tenho a dizer que não tenho grandes esperanças. Para além disso, tendo admirado alguns dos trabalhos como argumentista de Hosseini, fiquei bastante chocado com a frouxidão e letargia desinteressante do argumento deste seu filme.

 O argumento de que tão negativamente falo é uma adaptação de um romance de Patrícia Hightsmith, uma autora que já teve várias obras adaptadas ao ecrã, sendo as suas mais famosas manifestações cinematográficas, adaptações de The Talented Mr. Ripley; falo, pois claro, dos sensualmente carnais The Talented Mr. Ripley (1999) e Plein soleil (1963), e o psicótico Strangers on a Train (1951) de Hitchcock. Há que dizer que nenhuma dessa carnalidade ou desse perigo se manifestam neste filme.

 O filme mostra-nos a trama de um casal de americanos, quase exilados devido aos trabalhos ilegais de Chester MacFarland (Viggo Mortensen, que levou consigo para a Grécia a sua jovem e friamente bela mulher, Colette (Kirsten Dunst). Enquanto passeiam como elegantes turistas pelas paisagens históricas de Atenas em meados dos anos 60, o casal depara-se com outro americano, o inteligente vigarista Rydal (Oscar Isaac). Numa noite, Chester é confrontado por um homem em sua perseguição e acaba por ter de o matar, pondo-o a ele e à sua mulher numa situação ainda mais precária do que aquela em que se encontravam. São por isso forçados a buscar o auxilio do traiçoeiro Rydal, que os parece ajudar nessa sua fuga da Grécia, a partir dos seus contactos com quem consegue obter passaportes novos para o casal de fugitivos.

 Durante essa fuga pela paisagem grega, este trio acaba por entrar em conflito, Colette parece confiar muito mais em Rydal que o seu marido, e os dois homens parecem entrar num caminho de mútua destruição. Tragédia acaba por se abater sobre o trio em fuga e as autoridades acabam por conseguir interferir, precipitando o final fatídico da trama deste filme.

 A minha descrição poderá ter induzido uma visão de um sofisticado thriller, mas a realidade está longe de tal coisa. O filme apresenta, sem dúvida, uma certa elegância visual e sonora. A fotografia do filme, por exemplo, apresenta uma atraente visualização de uma Grécia turística e de um básico mistério. Este trabalho parece, no entanto, mais adequado a um anúncio turístico ou a um livro de postais que a um filme de pretensões de um thriller classicista.

 Não que isto negue ao filme a beleza superficial que nele se manifesta, Basta observarmos os primeiros momentos do filme em que nos é apresentado o casal no seu centro para verificarmos a beleza visual do filme. Veja-se o modo como os monumentos gregos são capturados numa suave e dourada luz e como os figurinos dos atores parecem todos complementar a imagem geral, apanhando cores do espaço envolvente e mostrando uma elegância suave e típica dos thrillers de uma Hollywood clássica. É pena nenhum destes aspetos realmente se mostrarem eficazes a criar tensão ou uma atmosfera mais carnal que a beleza fria e vazia em que o filme se parece afundar. Apenas a banda-sonora parece corresponder às intenções dos criadores do filme. Essa sim, realmente ajuda na criação de uma atmosfera classicista mas eficaz.

 Os atores não se parecem também sair muito bem, sendo que Isaac e Dunst são particulares desilusões. Ambos já mostraram o seu inegável talento em projetos anteriores, mas neste filme a bela Kirsten Dunst nunca parece atingir a sensualidade que o papel parece sugerir e nunca se torna nenhum tipo de presença essencial para o filme. Quando a sua personagem morre inesperadamente o filme não parece em nada se alterar por isso, mostrando logo a sua completa falta de necessidade dentro do filme. Isaac, que ainda o ano passado mostrou o seu charme e carisma, parece aqui uma presença vazia e nunca parece um igual de Mortensen apesar da superioridade que o filme parece tentar impor à figura do vigarista de Isaac.

 Apenas Mortensen parece conseguir extrair alguma coisa do papel que lhe foi dado, explorando neste filme um lado mais negro e perverso do que aquele a que estamos acostumados a associar ao ator. Consegue ser a figura mais interessante do filme, pelo que o modo como o filme parece insistir no protagonismo de Isaac se manifesta como um esforço vazio e ineficaz.

A química e tensão sexual que o filme parece sugerir nunca realmente se manifesta entre este elenco e nenhum dos vagos esforços de Amini resultam de modo algum. Falta-lhe tensão e carnalidade. Acrescentamos a esta deficiência o ritmo lento e lânguido do filme e obtemos um filme que é irritantemente letárgico e até aborrecido.

 A trama do filme é francamente previsível e bastante reminiscente de outros melhores filmes, o elenco com a exceção de Mortensen é francamente ineficaz e a realização de Amini deixa bastante a desejar. Este é o tipo de filme que enche os anais do cinema de Hollywood dos anos 50 e 60 que já foram esquecidos na sua simples mediocridade, enquanto outros filmes semelhantes terão perdurado graças ao modo prodigioso como se desenvolveram. É possível encontrar muito pouco desse prodígio neste filme que parece sempre almejar ser um thriller sofisticado de décadas passadas.


terça-feira, 11 de novembro de 2014

MAPS TO THE STARS (2014) de David Cronenberg



 Onde está o Cronenberg de outrora? Onde está o homem que criou obras tão magníficas, a níveis textuais e formais, como Dead Ringers ou Naked Lunch? Esse visionário agora reduzido a uma complacência e falta de interesse no visual dos seus filmes? Será isto uma prova do envelhecimento e cansaço de um mestre? Terá sido o advento da fotografia digital que  o reduziu a tão pouco inspiradas imagens? Será que pretende virar-se para uma austeridade formal que em nada parece trabalhar com a podridão grotesca do seu argumento?

 Não sei o que dizer. Já aquando do meu visionamento de A Dangerous Method, eu me tinha amedrontado com uma aparente falta de inspiração no trabalho de um homem que outrora havia trazido ao mundo as visões de pesadelo de filmes como Videodrome ou The Fly. Há que dizer, que esses medos foram brevemente sossegados pela relativamente cuidada aparência de Cosmopolis, mas com esta nova obra eu já perdi praticamente toda a esperança de encontrar na filmografia futura deste realizador, outras obras-primas como as que marcaram a primeira metade da sua tão auspiciosa carreira.

 Peço desculpa de estar a mencionar todas estas obras passadas, mas foi-me impossível a mim, se bem que possa ter tentado ter um ponto de vista mais objetivo, olhar este filme sem pensar na sua posição na filmografia deste realizador. Um autor que admiro pelo seu trabalho anterior e que aqui vejo a cair em lugares comuns e a, porventura, perder aquilo que em tempos o terá feito singular no panorama cinematográfico mundial.

 Mas enfim, para além de ter antecipado o filme como uma nova obra de Cronenberg, uma obra satírica que eu esperava ser uma revitalização na sua filmografia (não aconteceu), também tinha imensamente grandes expetativas em relação ao trabalho da célebre vencedora do prémio de melhor atriz na edição deste ano do festival de Cannes. Com essa honra, Julianne Moore, uma das minhas atrizes prediletas, arrecadou prémios no último dos três grandes festivais europeus e conseguiu, ao contrário de Cronenberg, recuperar alguma da relevância que parecia ter perdido relativamente ao seu auge no início da década passada.

 Ao contrário do seu realizador, a atriz não me desapontou de todo. Moore interpreta Havana, uma atriz quase caricaturada de uma Hollywood superficial, que tenta desesperadamente conseguir interpretar a sua própria e falecida mãe (Sarah Gadon) num novo filme que farão da vida dessa passada estrela. Essa sombra do estrelato da mãe parece seguir e atormentar esta atriz que terá visto melhores dias, e chega mesmo a manifestar-se em aparentes alucinações fantasmagóricas (algo muito ineficazmente filmado).

 Em Havana, Moore revela uma desconcertante vulnerabilidade e fragilidade quase psicótica e grotesca no meio de uma caricatura satírica. Apesar das tendências simplistas e redutivas do guião, a atriz descobre uma curiosa humanidade nesta figura, sem nunca perder a sua condição como uma caricatura, como um conceito de um escritor em relação às vápidas estrelas envelhecidas que povoam Beverly Hills. E se falta algum desse provocador grotesco e originalidade no trabalho de Cronenberg, tal nunca se poderia afirmar do trabalho de Moore, cujo melhor momento, pelo menos na minha opinião, será a sua macabramente jovial dança aquando do conhecimento de notícias trágicas que impedirão uma atriz de interpretar o papel por Havana desejado. Em resumo, esta é outra das formidáveis criações desta atriz e é bastante fácil afirmar que esta opera a um nível que mais nenhum ator ou mesmo mais nenhum aspeto do filme consegue alcançar.

 Não seria a minha estupefacta surpresa, quando ao ver o filme me começo a aperceber da condição secundária da própria Havana no decorrer do filme, que apesar de seguir a bizarra estrela como se ela fosse uma protagonista, nunca se constrói grandemente à sua volta, utilizando esta figura mais para dar uma certa faceta satírica mais óbvia ao recorrer à caricatura. O filme demora, aliás algum tempo até nos apresentar a formidável criação de Moore, e antes do clímax do filme, a estrutura narrativa não tem qualquer problema em se desfazer da sua mais bem conseguida criação, quase revelando a sua relativa irrelevância para o desenrolar do suposto enredo do filme.

 Enredo este que se faz à volta de dois irmãos, um adolescente com estatuto de estrela de Hollywood e todos os seus bastantemente previsíveis vícios, Benjie (Evan Bird), e uma jovem com tendências esquizofrénicas e destrutivas que regressa agora a Los Angeles depois do seu quase exílio por parte dos pais, Agatha (Mia Wasikowska). Esta última, é uma estranhíssima e desfigurada figura. Uma outsider que depressa parece integrar-se nesta cidade de estrelas e que se torna uma assistente ou chore whore para Havana. Agatha, apesar da sua aparente inocência inicial, revela-se uma perigosa presença destrutiva tanto para si como para as outras figuras em seu redor, incluindo a sua insuportável família em que todos os mais venenosos clichés da unidade familiar de Hollywood se parecem manifestar. Os seus pais (Olivia Williams e John Cusack) são apenas figuras de uma ineficaz opressão e manipulação que, especialmente no caso da mãe, parecem apenas presentes para o argumentista castigar e criticar na sua ineficaz e óbvia sátira que se encontra infestada de lugares-comuns e aparente falta de originalidade.

 Os atores desta estranha família não são particularmente eficazes, algo particularmente desanimador no caso da notável Olivia Williams, sendo que Wasikowska é a única que consegue fazer alguma impressão positiva, trabalhando num registo semelhante ao explorado noutros dos seus papéis, nomeadamente Stoker. Bird é sem dúvida o maior fracasso do elenco, não sendo de todo possível, para mim como membro da audiência, entender a suposta fama adquirida por esta figura devido ao seu carisma num papel de um franchise mercenário.

 Um ator que vai aparecendo ao longo do filme e que consegue trazer algo de interessante é, sem dúvida, Robert Pattinson no papel de um condutor de limusina, quase que um piscar de olho ao seu trabalho em Cosmopolis em que ele era a poderosa figura guiada pela cidade numa limusina. As suas breves interações com Moore parecem particularmente eficazes, se bem que isto possa resultar de uma certa ambiguidade ou, pelo menos, falta de caricatura óbvia no tratamento do argumento face a esta figura.

 Os aspetos visuais, como já referi, são de uma pobreza medíocre. Nunca caímos num amadorismo ou numa incompetência técnica, este é um trabalho de profissionais com vários anos de carreira. Mas também nunca vemos qualquer vitalidade no tratamento do material. Apenas a banda-sonora de Howard Shore, no panorama sonoro do filme, parece conter algum interesse, mas também não será nada de particular extraordinário.

 Em resumo, o filme apresenta-se como uma sátira vazia e pouco eficaz onde o cliché e o lugar-comum domina, o visual e concretização formal são manifestações de uma aparente complacência ou falta de interesse de Cronenberg. Mas, apesar disso, não consigo recusar valor a um filme que contém em si uma tão maravilhosa prestação de Julianne Moore, que carrega todo o filme nas suas costas e que, mesmo assim, não consegue completamente eclipsar a mediocridade que a rodeia.


domingo, 9 de novembro de 2014

KIS UYKUSU (2014) de Nuri Bilge Ceylan


 Como um grande fã de um realizador como Ingmar Bergman, poderá parecer um pouco estranho dizer isto, mas sempre sinto uma grande reticência e dúvida quando me deparo com uma obra que admitidamente vive dos seus extensos diálogos, como se de uma peça de teatro de câmara se tratasse. Não que não exista na mais recente obra de Nuri Bilge Ceylan, que ganhou a Palme D’Or deste ano com este mesmo filme, uma preocupação e um exímio trabalho visual e formal. Mas apesar de podermos apreciar e salientar, por exemplo, o modo como as rochosas paisagens invernais permeiam o filme e quase se impõem e abatem sobre os pontos humanos que envolvem, há que honestamente admitir que este é um filme grandemente desenvolvido à base do seu texto, nomeadamente os seus extensos diálogos.

 E há que salientar essa extensão e a duração dela resultante, não fosse este o mais longo filme a alguma vez arrecadar a máxima honra no festival de cinema mais célebre dos nossos dias. A sua duração foi, aliás dos aspetos que mais dúvidas me criou. Admito que se reduzíssemos o tempo do filme, algum do seu efeito poderia ser perdido, especialmente a exaustão e devastação dos últimos minutos, mas continuo a refletir sobre o filme e a pensar que teria sido necessária uma maior redução, uma maior síntese das ideias do realizador, que por vezes parecem começar a revelar uma certa redundância e repetição com o passar do tempo. Se bem que, antes de apontar os pontuais problemas que tive com o filme, talvez fosse mais apropriado falar um pouco mais sobre o filme em si e alguns dos seus aspetos mais marcantes de um ponto de vista positivo.

 O filme, cujo texto terá sido fortemente influenciado pela obra de Tcheckhov, desenvolve-se principalmente à volta da figura de Aydin (Haluk Bilginer), um velho proprietário de terras e de um hotel, que em tempos terá sido um ator e que agora é apenas um esquecido dono de um hotel onde vive com a sua muito mais jovem e inegavelmente infeliz mulher, Nihal (Melisa Sözen), e a sua amarga irmã, Necla (Demet Akbag). Aydin parece assemelhar-se a um senhor feudal cansado e aparentemente benevolente, entretido em passar o tempo a escrever artigos para um pequeno e praticamente desconhecido jornal, e em fazer pesquisa para a suposta escrita de um livro sobre a história do teatro turco. Um dia, enquanto era guiado através da aldeia em que o seu hotel se insere, como um castelo de rocha de um rei acima do seu povo, um rapaz atira uma pedra contra o vidro do carro, despoletando uma passiva-agressiva confrontação entre o seu empregado Hidayet (Ayberk Pekcan) e a família do rapaz. Família essa que vive numa casa cujo senhorio é o nosso protagonista, e que num passado recente terão sido visitados por cobradores enviados pelos advogados de Aydin. Essa visita teria resultado numa altercação física e humilhação do pai do rapaz, um ex-presidiário com problemas de alcoolismo. A família vive em abjeta miséria e este confronto será apenas um ponto no quadro criado por Ceylan na sua criação de um retrato do velho senhorio.

 Apesar de inicialmente parecermos partilhar a visão do próprio Aydin de si mesmo, a de um benevolente senhor, preocupado com a crítica social e moral nos seus artigos e afastado de qualquer miséria ou de qualquer culpa dessa mesma miséria, depressa começamos a ver para além dessa fachada, dessa ficção talvez inconscientemente criada. Veja-se o modo como, durante a discussão entre Hidayet e  Ismail (Nejat Isler), o pai do rapaz, Aydin se mantém à distância, nunca se envolvendo diretamente, supostamente ele nem sabia da sua responsabilidade sobre a casa dessa família. Chega mesmo a ser filmado por detrás do vidro partido, uma barreira invisível que o separa dessa gente, uma barreira tornada visível pelas rachas criadas pelo ataque da criança. Essa imagem de um vidro a separar um observador de um observado é bastante repetida pelo filme e mais do que visualizar uma separação meramente social e económica, parece estabelecer algo ainda mais abrangente uma alienação de Aydin, e mais tarde de Nihal. Tanto entre si como para com o resto do mundo, figuras isoladas e sozinhas, separados por uma barreira invisível do mundo.

 Mas antes de me adiantar, há que referir mais algumas ramificações dessa altercação no que diz respeito à nossa perspetiva em mudança sobre Aydin, esse antigo ator, que chega a utilizar o que viu da família para fazer uma crítica social a homens que se deixam cair em desleixo, defendendo o Islão como uma religião de cultura, onde tal não deveria acontecer. De uma visita educadamente desesperada do tio do rapaz, Hamdi (Serhat Mustafa Kiliç), o nosso protagonista parece continuar a se colocar completamente afastado dos problemas e do desespero que parece estar a causar, se bem que inadvertidamente, tudo o que tem a dizer mais tarde sobre o homem será que os seus pés cheiravam mal. Não parece existir empatia neste gélido mundo criado por Ceylan, ou pelo menos nem uma básica compaixão se parecem manifestar no protagonista e suas ações. Numa das mais bizarras e enervantes cenas do filme, após uma discussão moral e ética com a irmã e com a mulher, Aydin é visitado por Hamid e seu sobrinho, para que o rapaz beije a mão ao velho senhorio, quase que num pedido de perdão. Aydin acaba por permitir isso, levando tudo quase que num tom de brincadeira jovial, um ser superior e condescendente face ao par que terá caminhado uma enorme e difícil distância a pé, já por duas vezes, para que o rapaz pedisse o perdão. Apesar dessa disponibilidade e superioridade quase paternalista de Aydin, o miúdo desmaia antes de qualquer coisa acontecer, Até uma sequência fulcral no final do filme, não vamos mais saber do rapaz nem da sua família, esquecidos por Aydin e deixados para trás no filme.

 Entretanto uma série de discussões vão-se desenrolar entre os três habitantes da casa, sendo que o filme parece culminarem duas amargas e psicologicamente violentas discussões. A primeira bastante mais ténue que a segunda, é entre Aydin e sua amarga e infeliz irmã, que o critica na sua posição de superioridade moral, apesar de ela também parecer padecer de tais problemas. Aí apercebemo-nos, ou pelo menos eu me apercebi, da condição destes seres ociosos, sem nada para fazer a não ser exercer a sua superioridade uns sobre os outros e criar ideias de si mesmos que os apaziguem. Se os aristocratas ociosos de Chordelos de Laclos enchiam as suas vidas ociosas e paradas com intrigas e com perversidade, estas personagens ricas de Ceylan parecem recorrer à moral e à caridade.

 Falando então dessa caridade. Há que referir a discussão entre marido e mulher que funciona como um choque sísmico no filme, destruindo qualquer ilusão de felicidade ou de paz psicológica e mental dentro do universo miserabilista do filme. Será a caridade apenas um artifício deliberada ou inconscientemente criada de modo a conseguirmos viver com a nossa consciência? Uma consequência de um invariável egoísmo? Será a moralidade apenas uma criação de modo a nos sentirmos superiores sobre outros? Será a caridade, um modo de preenchermos algum vazio na nossa vida, apenas algo para abafar os gritos de uma consciência egoísta? Será que usamos a moralidade, a ética, a cultura, como elementos de separação, como modo de nos impormos sobre outros indivíduos que nos parecem inferiores em relação a esses aspetos?

 Ceylan parece responder em afirmativo a todas estas questões, criando uma negra visão de uma humanidade deficiente, onde a esperança da empatia e da compaixão humana parecem fúteis e criações vazias no seu artifício. Tudo isto principalmente exposto em duas cenas. A primeira, a discussão acima referida, uma devastadora confrontação entre marido e mulher, onde Aydin, com um tom constante de superioridade intelectual e paternalista vai, talvez inadvertidamente, destruindo a ultima coisa que a mulher tinha para lhe encher o vazio da vida. O projeto de caridade de Nihal, que acaba por nos parecer revelado no seu egoísmo e ausência de caridade apenas com o propósito de caridade.

 A outra cena em que isto parece enfaticamente exposto, é um encontro entre três homens, sendo Aydin um deles, completamente bêbados e caídos de qualquer estatuto de superficial superioridade. Entram numa discussão de ética e moral, explorando explicitamente as temáticas do filme, quase que as ridicularizando no modo como as reduzem à discussão desajeitada de três velhos embriagados.

 Não vou explorar muito mais do filme, incluindo uma visita, um tanto ou quanto inesperada de Nihal à família da criança do início do filme. O desfecho desta visita é previsivelmente catastrófico, se bem que nunca saindo de um registo de sombria quietude sonora e de movimento. Sendo que encerramos esse encontro com planos da face acusatória no seu desespero do miúdo, e de um plano de Nihal, em lágrimas, completamente perdida e sem qualquer ilusão de sentido na sua vida.

 Há que dizer que este não é um filme sem defeitos. Já falei na desmesurada duração e na possível repetição persistente dos mesmos temas e mensagens. Gostaria também de referir o modo como o realizador parece variadas vezes recorrer a imagens de uma natureza animal, chegando mesmo à inegável crueldade animal, assim como a outras imagens de claro simbolismo, e que me parecem um pouco desnecessárias no modo como destoam violentamente do resto do filme, chegando quase a lugares comuns que me parecem desapropriados a tão moralmente complexo filme.

 Como um apelo a uma humanidade em extinção ou como uma ode fúnebre a um mundo miserável onde nenhuma empatia ou humanidade existe, o filme é um moderado triunfo. Encerra com um devastador uso de voz-off, o único no filme. Palavras nunca ditas de marido a mulher, ambos acabando o filme sozinhos, mas presos um ao outro na sua solidão. Ambos afogados numa ilusão de companhia, numa tentativa de não se permitirem a cair no vazio das suas vidas, nessa paisagem invernal, que encerra o filme em todo o seu devastador desespero visual.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

YVES SAINT LAURENT (2014) de Jalil Lespert


 O filme Saint Laurent de Bertrand Bonello será um dos dois filmes que irão abrir o festival de cinema Lisboa&Estoril. Em honra dessa abertura, que ocorrerá hoje à noite, aqui está um texto sobre um outro filme biográfico à volta da figura de Yves Saint Laurent, também estreado em 2014.



 Não é a primeira vez que dois filmes sobre as mesmas personalidades famosas estreiam no mesmo ano, há que lembrar, por exemplo, Capote e Infamous. Mas não é por não ser inédito que não é algo que traz consigo um interessante impulso de comparação e de análise do modo como diferentes realizadores, diferentes produções olham uma figura da nossa realidade.

 Ainda não vi o, por mim enormemente antecipado, filme de Bertrand Bonello sobre a figura de Yves Saint Laurent, mas já tive o prazer, ou não, de ver o filme de Jalil Lespert. Tenho a dizer que espero que Saint Laurent seja bastante superior à obra sobre a qual aqui me proponho a escrever.

 Yves Saint Laurent, o filme, é uma obra do subgénero de cinema biográfico que tem uma francamente classicista e convencional estrutura no modo como nos expõe a figura no seu centro. Ou talvez fosse mais certo dizer, as figuras, pois não considero este um filme de apenas um protagonista. Para além do icónico nome da moda francesa, Saint Laurent (Pierre Niney ), temos também o seu parceiro de longa data Pierre Bergé (Guillaume Gallienne), cujo contraparte real terá aprovado este filme em contraste com a sua suposta rejeição da visão de Bonello.

 O filme, volto a lembrar, é de uma extrema convenção e nada nos mostra mais isto que os seus momentos iniciais e o seu revelar da sua estrutura à volta das lembranças do velho Bergé. O filme nem sequer parece querer fixar-se num espaço de tempo específico, sendo que tenta explorar grande parte da carreira do célebre criador sem grandes preocupações com estrutura dramática, ou mesmo com uma estrutura um pouco diferente das centenas de outras obras cinematográficas de cariz biográfico.

 Para se verificar isso basta olharmos o momento “inspirador” que marca o final do filme. Um desfile luminoso, depois de vários contratempos e da queda em decadência de Saint Laurent, é-nos mostrado como um triunfo para o criador. Na banda-sonora passa uma interpretação de Maria Callas de Casta Diva, só para ainda mais sublinhar o cliché que o final se manifesta como sendo. Em resumo, um momento forçosamente inspirador de modo a, nos seus momentos finais, o filme quase canonizar, ou pelo menos glorificar, a figura de Yves Saint Laurent.

 Não que o filme, ao longo do seu desenvolvimento, não tente dar a Saint Laurent alguma complexidade, afastando-o dessa imagem mítica e santificada em que o filme poderia cair. No entanto, isto é principalmente feito a partir dos mais convencionais métodos possíveis. Abuso de drogas, amantes, decadência moral, etc. Não que isto não tenha acontecido, mas o filme nada faz com este material que muitos outros filmes não tenham feito de modo semelhante ou melhor. Para além disso, o filme nunca parece grandemente investido na criação de qualquer seguimento dramático nas cenas, apenas nos apresentando sequências letárgicas de episódios na vida de Saint Laurent. Por vezes, como nos encontros iniciais de Bergé e Saint Laurent, o filme ainda consegue encontrar alguma elegância narrativa mas o constante uso de voz-off destrói qualquer pretensão de sofisticação a que o filme possa almejar, na sua apresentação da vida dos seus protagonistas.

 Mas antes de falar mais da convencionalidade do enredo, talvez seja interessante falar um pouco do modo como o filme mostra a obra do criador no seu centro. Uma das cenas no início do filme revela, para mim, os problemas, assim como os pequenos triunfos do filme no modo como apresenta as roupas que têm em si um tão central papel. Nessa cena vemos Yves defronte de uma das suas criações para a casa Dior, estamos em frente a um espelho, pelo que também a audiência poderia apreciar numa proximidade da totalidade, o vestido edificado por Yves. Ele rapidamente, algo salientado pela montagem e pelo uso um pouco exagerado do som, cria uma faixa que acentua e cinta a silhueta já criada. O momento em que o vestido final nos é revelado perde, no entanto, o impacto que poderia ter, sendo que o realizador parece insistir em não nos mostrar em plano afastado o vestido completo, preferindo permanecer num plano em que ainda consigamos ler perfeitamente as faces dos atores e em que nunca conseguimos ver completamente a forma do recentemente aperfeiçoado vestido. Uma filmagem convencional que parece um pouco em discordância com as intenções do filme como uma obra sobre um dos grandes criadores de moda.

 No entanto, há que mencionar, os desfiles expostos no filme, são melhor filmados que estas cenas de criação em ateliê. É certo que caem em cliché, mas pelo menos são eficazes no modo básico como mostram a elegância das roupas de Saint Laurent. A música utilizada no segundo desfile do filme é particularmente eficaz no modo como cria um nervosismo articulado. A música composta por Ibrahim Maalouf é, na minha opinião, o aspeto técnico mais bem conseguido de todo o filme.

 O seu elenco não me parece mostrar grandes deficiências na sua interpretação, sendo que Niney é especialmente eficaz no modo como apresenta o jovem Yves num quase constante registo de nervosismo, de certos modos quase mecanizado. Mesmo assim, nenhuma das figuras parece particularmente desenvolvida, nunca realmente passando de uma impressão superficial dessas figuras da história da moda. Charlotte Le Bom como Victoire Doutreleau e Xavier Latiffe como Jacques de Bascher são, em particular, praticamente reduzidos a imagens de uma beleza puramente estética, a serem manipulados como objetos nas mãos dos protagonistas, que também não se encontram muito longe da condição de imagens vazias.

 Mesmo assim o filme mostra uma certa eficiência e competência que o elevam acima de outros muitos desastres na esfera do cinema biográfico e, pelo menos, nunca cai num aborrecimento mortal, como outras obras desse subgénero, estreadas neste mesmo ano. É, no entanto, importante de salientar que um maior primor técnico e versatilidade visual poderiam dar alguma elegância e sofisticação a um filme, que está sempre a levantar esses conceitos no seu diálogo, sem nunca os exibir na sua própria linguagem formal, a não ser em algumas sequências isoladas ao longo do filme.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

THE BABADOOK (2014) de Jennifer Kent


 O género do cinema de terror é um dos mais fáceis de nos apaixonar e, paradoxalmente, um dos que, de modo mais consistente, nos vai desiludindo, especialmente no panorama cinematográfico contemporâneo. A recorrência a fórmulas cansadas e pútridas, a falta de imaginação, a falta de virtuosismo na execução, etc. Mas, por vezes, uma obra lembra-nos por que razão um cinéfilo se consegue tão facilmente apaixonar por este particular género.

 Apesar de recorrer a muitas fórmulas e convenções do cinema de terror, Jennifer Kent conseguiu alcançar com este filme uma exemplar obra do cinema de terror contemporâneo. Por vezes, especialmente no último ato do filme, parece haver uma certa derivação de outros grandes filmes do género, mas, de modo geral, Kent consegue pegar em vários clichés do cinema de terror e manobrá-los de modo a criar uma obra final de grande eficácia e que realmente funciona como um perturbador filme que tenta amedrontar a sua audiência.

 O filme retrata uma magnificamente perturbada relação entre mãe, Amelia (Essie Davis), e o seu jovem filho, Robbie (Daniel Henshall). Ela vive atormentada pela perda do marido, que morreu num acidente de viação quando conduzia a mulher ao hospital para o nascimento do seu filho, filho este que vive num mundo de fantasia em que não parece ser capaz de distinguir a fantasia da realidade, por vezes com consequências violentas. Ambos parecem quase estar numa competição para ver qual dos dois está mais irreparavelmente psicologicamente danificado. A mãe, por exemplo, nunca deixa o filho festejar o aniversário no dia do seu nascimento. A relação dos dois já é apresentada, inicialmente como algo estranho e com potenciais ramificações nocivas para os dois, algo que é apenas exacerbado com o aparecimento de um estranho livro.

 O livro conta a horrenda história do Sr. Babadook e do modo como este entra dentro de tua casa e te consome por dentro, devorando os seus habitantes. O livro parece tornar-se numa mancha de horror dentro do filme, lentamente destruindo qualquer sanidade que o par de mãe e filho ainda pudessem ter. Em muitos momentos do filme questionamos a veracidade dos horrores que vemos, que parecem ser, em parte, uma manifestação da loucura dos protagonistas, especialmente da instável figura maternal. Dependendo da cena em que nos encontramos conseguimos observar, ora no filho ora na mãe, a verdadeira monstruosidade do filme, enquanto em outras ocasiões parece que o parasítico Babadook é real e apenas vai aumentando o caos criado pelas duas instáveis figuras que compõem esta disfuncional unidade familiar.

 Este questionamento da realidade, dentro do filme, dos horrores sobrenaturais apresentados não é algo novo no panorama do cinema de horror, mas neste filme, Kent consegue, em grande parte a partir do prodigioso trabalho da atriz Essie Davis, criar um ambiente em que independentemente da realidade do monstro intruso, o que vemos não deixa de ser terrivelmente assustador, nem que seja apenas o rápido colapso mental de uma mãe e filho, que ao longo do filme acabam por se tornar os violentos agressores um do outro.

 Como já disse, parte do sucesso do filme deve-se ao trabalho da sua atriz principal. Davis consegue tornar Amelia um monstro, uma vítima e uma mulher a colapsar sobre si mesma, sem deixar de salientar a conturbada e errática relação desta com o filho. Amelia é sempre protetora do filho, mas por vezes vemo-la como a maior ameaça para o filho, algo que talvez até vejamos como compreensível quando olhamos o modo como o filme quase que bestializa a criança, especialmente a partir do uso do som e dos seus constantes gritos.

 O som é, aliás, um dos elementos técnicos de maior sucesso no filme. Ao longo do desenrolar da pavorosa trama o som parece ganhar um caráter personalizado, tornando grotescos e assustadores os sons comuns, ou elevando os sons emitidos pelos humanos no filme, a grunhidos e sons quase sobrenaturais. Nenhum som é, no entanto, tão grotescamente digno de pesadelo, como o som da figura monstruosa no centro da trama, cujo chamamento repetido é algo que pertence aos grandes anais da história do cinema de terror.

 O ênfase no som do monstro é algo perfeito, se considerarmos quão pouco vemos essa criatura. O filme nunca nos mostra o Babadook, apenas o definindo a partir da sua silhueta característica com um casaco largo e uma cartola, algo que parece ser uma perversão da imagem de Robbie com as suas roupas de ilusionista que ele tanto veste ao longo do filme. É muitas vezes sugerido pelo próprio filme que o Babadook e o seu livro serão apenas criações da mãe, uma antiga escritora de livros infantis, que numa das cenas do filme, aparece com as mãos cobertas de carvão semelhante àquele usado para desenhar o interior do livro.

O livro que, tenho a dizer, é um triunfo de criação de adereços, muito mais assustador que qualquer monstro. Os seus desenhos crus a preto-e-branco, as suas grotescas imagens que parecem retiradas de uma horrenda obra de expressionismo alemão, o modo como é um livro de pop-ups em que as figuras se vão revelando em movimentos articulados e perturbadoramente simples. A própria capa vermelha do livro consegue perturbar completamente a imagem do filme, que se foca, principalmente, na casa dos protagonistas, onde superfícies frias e escuras parecem dominar e onde o livro se apresenta sempre como um violento e arrepiante rasgo de vermelho, quase que prenunciando uma violência iminente.

 Também a montagem do filme é responsável pela sua particular atmosfera, muitas vezes cortando-nos o desenvolvimento lógico das ações, salientando o seu lado grotesco. Quando o livro é aberto pela primeira vez, por exemplo, Amelia começa a contar a história ao seu filho. A montagem, o som e a fotografia, vão-se precipitando sobre as páginas à medida que ambos os protagonistas se começam a aperceber da natureza sinistra do objeto que têm diante de si. Ao invés de nos mostrar qualquer desenvolvimento lógico na reação do filho, Kent corta imediatamente para algo que pressupomos esteja a acontecer mais tarde no tempo da ação, em que, sob o opressivo som do choro de Robbie, Amelia o tenta acalmar com um conto de fadas. A montagem vai, assim, diluindo as nossas noções de tempo, chegando mesmo a usar mudanças de iluminação para distinguir o dia da noite ou a deixar sons prolongarem-se depois da sua cena de origem ter terminado, criando assim uma perturbadora incerteza temporal que vai, constantemente, desorientando a audiência e colocando-nos no estado de confusão dos protagonistas na sua crescente privação de sono e sanidade.

É um filme, portanto, em que todos os componentes parecem estar a trabalhar em perfeita sintonia uns com os outros criando uma experiência deliberada e eficaz. Talvez o filme sofra de uma simplicidade textual e narrativa, mas mesmo assim, acho bem referir o final que, confesso, me conseguiu surpreender no seu perverso e inesperado compromisso, especialmente depois da noite infernal que marcou o clímax do filme.

The Babadook revela-se assim uma exemplar obra do cinema contemporâneo de terror, trazendo a mim, pelo menos, grandes expetativas no trabalho da sua realizadora e dando-nos uma oportunidade para observar um bem conseguido filme de terror, bem longe da completa incompetência que parecem caracterizar o género nos dias de hoje. O filme também nos oferece uma grande prestação de Essie Davis, que anteriormente me havia chamado a atenção em a Girl with the Pearl Earring, e que aqui se estabelece como uma verdadeira scream queen. Em suma, uma obra essencial para qualquer ávido fã do cinema de terror e mesmo para aqueles que normalmente se afastam desse género temendo a pura mediocridade, algo que, para mim, não se encontra em qualquer minuto deste filme.