domingo, 9 de novembro de 2014

KIS UYKUSU (2014) de Nuri Bilge Ceylan


 Como um grande fã de um realizador como Ingmar Bergman, poderá parecer um pouco estranho dizer isto, mas sempre sinto uma grande reticência e dúvida quando me deparo com uma obra que admitidamente vive dos seus extensos diálogos, como se de uma peça de teatro de câmara se tratasse. Não que não exista na mais recente obra de Nuri Bilge Ceylan, que ganhou a Palme D’Or deste ano com este mesmo filme, uma preocupação e um exímio trabalho visual e formal. Mas apesar de podermos apreciar e salientar, por exemplo, o modo como as rochosas paisagens invernais permeiam o filme e quase se impõem e abatem sobre os pontos humanos que envolvem, há que honestamente admitir que este é um filme grandemente desenvolvido à base do seu texto, nomeadamente os seus extensos diálogos.

 E há que salientar essa extensão e a duração dela resultante, não fosse este o mais longo filme a alguma vez arrecadar a máxima honra no festival de cinema mais célebre dos nossos dias. A sua duração foi, aliás dos aspetos que mais dúvidas me criou. Admito que se reduzíssemos o tempo do filme, algum do seu efeito poderia ser perdido, especialmente a exaustão e devastação dos últimos minutos, mas continuo a refletir sobre o filme e a pensar que teria sido necessária uma maior redução, uma maior síntese das ideias do realizador, que por vezes parecem começar a revelar uma certa redundância e repetição com o passar do tempo. Se bem que, antes de apontar os pontuais problemas que tive com o filme, talvez fosse mais apropriado falar um pouco mais sobre o filme em si e alguns dos seus aspetos mais marcantes de um ponto de vista positivo.

 O filme, cujo texto terá sido fortemente influenciado pela obra de Tcheckhov, desenvolve-se principalmente à volta da figura de Aydin (Haluk Bilginer), um velho proprietário de terras e de um hotel, que em tempos terá sido um ator e que agora é apenas um esquecido dono de um hotel onde vive com a sua muito mais jovem e inegavelmente infeliz mulher, Nihal (Melisa Sözen), e a sua amarga irmã, Necla (Demet Akbag). Aydin parece assemelhar-se a um senhor feudal cansado e aparentemente benevolente, entretido em passar o tempo a escrever artigos para um pequeno e praticamente desconhecido jornal, e em fazer pesquisa para a suposta escrita de um livro sobre a história do teatro turco. Um dia, enquanto era guiado através da aldeia em que o seu hotel se insere, como um castelo de rocha de um rei acima do seu povo, um rapaz atira uma pedra contra o vidro do carro, despoletando uma passiva-agressiva confrontação entre o seu empregado Hidayet (Ayberk Pekcan) e a família do rapaz. Família essa que vive numa casa cujo senhorio é o nosso protagonista, e que num passado recente terão sido visitados por cobradores enviados pelos advogados de Aydin. Essa visita teria resultado numa altercação física e humilhação do pai do rapaz, um ex-presidiário com problemas de alcoolismo. A família vive em abjeta miséria e este confronto será apenas um ponto no quadro criado por Ceylan na sua criação de um retrato do velho senhorio.

 Apesar de inicialmente parecermos partilhar a visão do próprio Aydin de si mesmo, a de um benevolente senhor, preocupado com a crítica social e moral nos seus artigos e afastado de qualquer miséria ou de qualquer culpa dessa mesma miséria, depressa começamos a ver para além dessa fachada, dessa ficção talvez inconscientemente criada. Veja-se o modo como, durante a discussão entre Hidayet e  Ismail (Nejat Isler), o pai do rapaz, Aydin se mantém à distância, nunca se envolvendo diretamente, supostamente ele nem sabia da sua responsabilidade sobre a casa dessa família. Chega mesmo a ser filmado por detrás do vidro partido, uma barreira invisível que o separa dessa gente, uma barreira tornada visível pelas rachas criadas pelo ataque da criança. Essa imagem de um vidro a separar um observador de um observado é bastante repetida pelo filme e mais do que visualizar uma separação meramente social e económica, parece estabelecer algo ainda mais abrangente uma alienação de Aydin, e mais tarde de Nihal. Tanto entre si como para com o resto do mundo, figuras isoladas e sozinhas, separados por uma barreira invisível do mundo.

 Mas antes de me adiantar, há que referir mais algumas ramificações dessa altercação no que diz respeito à nossa perspetiva em mudança sobre Aydin, esse antigo ator, que chega a utilizar o que viu da família para fazer uma crítica social a homens que se deixam cair em desleixo, defendendo o Islão como uma religião de cultura, onde tal não deveria acontecer. De uma visita educadamente desesperada do tio do rapaz, Hamdi (Serhat Mustafa Kiliç), o nosso protagonista parece continuar a se colocar completamente afastado dos problemas e do desespero que parece estar a causar, se bem que inadvertidamente, tudo o que tem a dizer mais tarde sobre o homem será que os seus pés cheiravam mal. Não parece existir empatia neste gélido mundo criado por Ceylan, ou pelo menos nem uma básica compaixão se parecem manifestar no protagonista e suas ações. Numa das mais bizarras e enervantes cenas do filme, após uma discussão moral e ética com a irmã e com a mulher, Aydin é visitado por Hamid e seu sobrinho, para que o rapaz beije a mão ao velho senhorio, quase que num pedido de perdão. Aydin acaba por permitir isso, levando tudo quase que num tom de brincadeira jovial, um ser superior e condescendente face ao par que terá caminhado uma enorme e difícil distância a pé, já por duas vezes, para que o rapaz pedisse o perdão. Apesar dessa disponibilidade e superioridade quase paternalista de Aydin, o miúdo desmaia antes de qualquer coisa acontecer, Até uma sequência fulcral no final do filme, não vamos mais saber do rapaz nem da sua família, esquecidos por Aydin e deixados para trás no filme.

 Entretanto uma série de discussões vão-se desenrolar entre os três habitantes da casa, sendo que o filme parece culminarem duas amargas e psicologicamente violentas discussões. A primeira bastante mais ténue que a segunda, é entre Aydin e sua amarga e infeliz irmã, que o critica na sua posição de superioridade moral, apesar de ela também parecer padecer de tais problemas. Aí apercebemo-nos, ou pelo menos eu me apercebi, da condição destes seres ociosos, sem nada para fazer a não ser exercer a sua superioridade uns sobre os outros e criar ideias de si mesmos que os apaziguem. Se os aristocratas ociosos de Chordelos de Laclos enchiam as suas vidas ociosas e paradas com intrigas e com perversidade, estas personagens ricas de Ceylan parecem recorrer à moral e à caridade.

 Falando então dessa caridade. Há que referir a discussão entre marido e mulher que funciona como um choque sísmico no filme, destruindo qualquer ilusão de felicidade ou de paz psicológica e mental dentro do universo miserabilista do filme. Será a caridade apenas um artifício deliberada ou inconscientemente criada de modo a conseguirmos viver com a nossa consciência? Uma consequência de um invariável egoísmo? Será a moralidade apenas uma criação de modo a nos sentirmos superiores sobre outros? Será a caridade, um modo de preenchermos algum vazio na nossa vida, apenas algo para abafar os gritos de uma consciência egoísta? Será que usamos a moralidade, a ética, a cultura, como elementos de separação, como modo de nos impormos sobre outros indivíduos que nos parecem inferiores em relação a esses aspetos?

 Ceylan parece responder em afirmativo a todas estas questões, criando uma negra visão de uma humanidade deficiente, onde a esperança da empatia e da compaixão humana parecem fúteis e criações vazias no seu artifício. Tudo isto principalmente exposto em duas cenas. A primeira, a discussão acima referida, uma devastadora confrontação entre marido e mulher, onde Aydin, com um tom constante de superioridade intelectual e paternalista vai, talvez inadvertidamente, destruindo a ultima coisa que a mulher tinha para lhe encher o vazio da vida. O projeto de caridade de Nihal, que acaba por nos parecer revelado no seu egoísmo e ausência de caridade apenas com o propósito de caridade.

 A outra cena em que isto parece enfaticamente exposto, é um encontro entre três homens, sendo Aydin um deles, completamente bêbados e caídos de qualquer estatuto de superficial superioridade. Entram numa discussão de ética e moral, explorando explicitamente as temáticas do filme, quase que as ridicularizando no modo como as reduzem à discussão desajeitada de três velhos embriagados.

 Não vou explorar muito mais do filme, incluindo uma visita, um tanto ou quanto inesperada de Nihal à família da criança do início do filme. O desfecho desta visita é previsivelmente catastrófico, se bem que nunca saindo de um registo de sombria quietude sonora e de movimento. Sendo que encerramos esse encontro com planos da face acusatória no seu desespero do miúdo, e de um plano de Nihal, em lágrimas, completamente perdida e sem qualquer ilusão de sentido na sua vida.

 Há que dizer que este não é um filme sem defeitos. Já falei na desmesurada duração e na possível repetição persistente dos mesmos temas e mensagens. Gostaria também de referir o modo como o realizador parece variadas vezes recorrer a imagens de uma natureza animal, chegando mesmo à inegável crueldade animal, assim como a outras imagens de claro simbolismo, e que me parecem um pouco desnecessárias no modo como destoam violentamente do resto do filme, chegando quase a lugares comuns que me parecem desapropriados a tão moralmente complexo filme.

 Como um apelo a uma humanidade em extinção ou como uma ode fúnebre a um mundo miserável onde nenhuma empatia ou humanidade existe, o filme é um moderado triunfo. Encerra com um devastador uso de voz-off, o único no filme. Palavras nunca ditas de marido a mulher, ambos acabando o filme sozinhos, mas presos um ao outro na sua solidão. Ambos afogados numa ilusão de companhia, numa tentativa de não se permitirem a cair no vazio das suas vidas, nessa paisagem invernal, que encerra o filme em todo o seu devastador desespero visual.


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