quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

TOM À LA FERME (2013) de Xavier Dolan



 O quarto filme da jovem maravilha do cinema canadiano Xavier Dolan parece-me tratar-se de um pequeno desvio ou então um sinal de maturação na filmografia crescente do autor. Nesta obra, Dolan abandona as suas histórias apaixonantes e românticas com dois protagonistas, o seu estilo parece mais dormente, mais calmo que nas suas últimas criações. A própria escolha do thriller como género a trabalhar é curiosa, assim como o facto de este ser o primeiro filme de Dolan adaptado a partir de material previamente existente.

 Mas para quê dizer tanto sobre o contexto do filme? Quero que se perceba que este filme se tratou de uma surpresa na ainda curta filmografia do realizador, e que, ao contrário das suas outras obras, mesmo a húbris estilística de Les Amours Imaginaires, esta sua criação apresenta-me grandes e inescapáveis problemas.

 Dolan é um realizador que expõe as suas origens e suas influências em todos os frames do seu trabalho. Se a influência de Wong Kar Wai, por exemplo, em filmes anteriores era bem explícita, neste filme, parece que caímos numa imagética “hitchcockiana”. E tal como o celebérrimo autor britânico, Dolan parece querer injetar no seu elenco de personagens psicoses e estranhezas psicológicas, desconcertando e desorientando a audiência, ao mesmo tempo que criando uma atmosfera de sufocante opressão.

 E há que dizer, independentemente das minhas objeções em relação ao filme, Dolan demonstra nesta obra um controle magistral da sua câmara. Se anteriormente tinha explorado um romanticismo luxuriante, que terá, talvez, atingido o seu exponente máximo em Laurence Anyways, aqui Dolan mostra um domínio prodigioso da linguagem visual e sonora do thriller.

 Os primeiros momentos do filme serão suficientes para justificar esta admiração pelo seu engenho como realizador de imagens e sons. O filme inicia-se com um apertado plano de uma caneta, escrevendo um elogio fúnebre para um namorado falecido, um elogio um pouco romantizado e focado mais no sofrimento do escritor do que na vida que se perdeu, mas mesmo assim um elogio. Cortamos para planos aéreos que nos mostram um carro, um ponto a avançar numa paisagem campestre, campos agrícolas que se estendem na composição com uma maravilhosa beleza pictórica, um grande trabalho de André Turpin. Tom (Xavier Dolan), o nosso protagonista, chega a uma quinta, onde ninguém parece estar, vagueia um pouco e decide entrar na casa, apesar de ninguém lá estar.

 A quinta é aqui filmada como um pesadelo emergindo da bruma, Uma visão saída de Hitchcock. O ambiente campestre é sempre retratado como sujo, húmido, opressivo, uma prisão que se abate sobre Tom desde os primeiros momentos. A câmara move-se com o olhar do protagonista, prendendo-nos na sua perspetiva. Dolan mostra quase que uma demonização da quinta neste momento e ao longo do filme, algo que quase levanta alguns problemas de representação de comunidades agrícolas que relembra o trabalho de John Boorman em Deliverance e a sua simplista, grotesca e redutiva visão.

 O próprio som da quinta parece transpirar uma opressão quase transplantada da linguagem de filmes de terror, o que é apenas intensificado pela maravilhosa música de Gabriel Yared. Uma banda-sonora que ao mesmo tempo lembra um classicismo tradicional como parece retirada de um operático thriller, e que durante o filme se vai revelando como aquele que é talvez a melhor escolha estilística de Dolan neste filme.

 Enquanto espera a chegada de alguém, adormece, fade to black, e é abruptamente acordado pelas perguntas de uma mulher, a mãe do seu falecido namorado, que se havia surpreendido com a presença de um estranho em sua casa, um intruso. Nesta interação vemos uma metódica e deliberada reticência de Dolan na apresentação de Agathe, interpretada pela maravilhosa Lise Roy, que primeiro nos aparece como uma voz na escuridão, de seguida apenas na distância fria do plano geral (contraste com os constantes grandes planos da face de Dolan) e que apenas completamente revelada durante uma cena de jantar, em que a sua proximidade de Tom é inescapável. Agathe, tem assim uma reticente entrada, que logo a expõe como a mais interessante figura do filme, algo pouco inesperado se considerarmos a mestria de Dolan na criação de personagens maternais nos seus passados trabalhos.

 O outro membro que completa a estranhamente perversa unidade familiar no centro do filme, é Francis (Pierre-Yves Cardinal) o irmão do namorado de Tom, que parece ter sabido da existência de Tom e da sexualidade do irmão, algo que Agathe desconhece. Em Francis, Dolan cria uma figura de agressão masculina, em que a sua imposição sobre Tom ganha um tom erótico e agressivamente sexual com o decorrer do filme. Também ele é primeiro introduzido como uma voz na escuridão, se bem que numa cena muito mais agressiva e prolongada que o breve momento de Agathe. Apenas vemos a sua cara na terceira vez que aparece em cena, primeiro voz, depois corpo, depois face, numa cena em que interrompe Tom no duche, ordenando-lhe que não use perfume no funeral.

 A câmara de Dolan parece fascinada por esta família, mas ao mesmo tempo mantém uma grande distância em que o filtro do mistério nos impedem de realmente entender estas figuras disfuncionais. As duas figuras são como paredes que se abatem sobre Tom, prendendo o quase masoquista jovem na sua quinta de atmosfera um tanto fantasmagórica.

 O filme apoia-se, portanto, numa perspetiva da vítima, a de Tom, sendo que o filme raramente se desvia dessa mesma perspetiva e quando tal acontece, o filme parece entrar em risco de desmoronar sobre a sua própria construção. Pressupõe-se que a audiência se apoiaria então na personagem de Tom face ao mundo que o envolve e às misteriosas figuras que o oprimem mas tal não acontece. O protagonista de Dolan nunca passa de uma cifra cujo comportamento parece indicar um estranho masoquismo, as suas motivações ou escondidas da audiência ou incompetentemente transmitidas no trabalho de Dolan como ator. Considero, aliás, esta escolha de Dolan como seu próprio protagonista como das piores escolhas do filme, o que resultou outrora em Les Amours Imaginaires e J'ai tué ma mère, não funciona nesta obra.

 Tenho a tese que isto se deva, em parte, ao facto de que neste filme o estilo expressivo de Dolan é usado na criação de uma atmosfera opressiva. O estilo é uma extensão do ambiente, como que as paredes que prendem o protagonista. Enquanto nos seus outros filmes, as personagens eram principalmente desenvolvidas a partir do estilo do filme e sua exuberância, aqui essa mesma exuberância estilística manifesta-se em oposição a um protagonista que sem essa extensão estilística da sua psicologia nos aparece como uma figura indefinida e vaga onde parece necessário um ser humano definido. É necessária uma oposição entre Tom e o mistério do seu ambiente. Ao invés disso temos um filme de cifras com pretensões de alcançar os píncaros dos thrillers clássicos. Talvez isto provenha do texto de que o guião foi adaptado, como nunca li tal obra, não sei.

 Mas, de novo, relembro que o trabalho, em geral, de Dolan como realizador continua a ser exemplar nesta sua exploração de uma linguagem cinematográfica diferente, ao mesmo tempo que tenta manter o seu estilo próprio. Veja-se, por exemplo, a sua manipulação do formato da imagem em momentos de grande tensão ou a cena de tango que marca um triunfo na junção desorientadora entre movimento de câmara e montagem. Sim, este é um prodigioso trabalho que talvez precisasse de outro protagonista ou de um guião diferente que apoiassem o primor técnico em algo que não fosse a cifra vazia em que o filme se apoia na sua presente existência. 

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