quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

GRAND BUDAPEST HOTEL (2014) de Wes Anderson




Se o que alguém procura como um cinéfilo é o equivalente cinemático de uma complexa, incrivelmente detalhada e decorada sobremesa, então não haverá melhor filme no panorama cinematográfico contemporâneo que a ultima criação do autor americano Wes Anderson.

Anderson que parece ter chegado à apoteose do seu característico estilo neste filme em particular. Todos os artificialismos intencionais, todo o detalhe exaustivo, diálogos quase de cartoon condimentados com uma complexidade linguística e com uma melancolia subversiva que os impedem de se transformarem em criações puramente infantis, um gosto por composições centradas e rígidas, uma procura por um estilo próprio e artificial no registo dos seus atores, etc. parecem ter sido perfeitamente cristalizados neste filme.

Será até possível estabelecer a evolução do realizador desde Rushmore, onde o seu caráter estilístico ainda jovem e preso a uma certa realidade, até aqui, onde qualquer dependência de um mundo real relacionado com aquele onde vivemos é apenas uma leve sugestão. A realidade é para este filme, o mesmo que uma maçã natural seria para uma das confeções de pastelaria colorida que aparecem pelo filme.

Para além de toda esta orgia estilística, temos ainda aquele que é talvez o mais complexo e barroco guião de Anderson, onde histórias são contadas dentro de histórias, numa verdadeira ode a esse ato de relatar uma história a outrem ao mesmo tempo que criam uma distância singular de qualquer realidade objetiva, já não fosse o festim visual e sonoro bastante indicação do mesmo afastamento. Mas essa complexidade textual estende-se também ao ridiculamente pormenorizado enredo, cheio de loucos acontecimentos que parecem pedir à audiência o mesmo tipo de aceitação de irracionalidade e fantasia que um sketch dos Loony Toones.

Poderei, com estas palavras estar a falar de um filme vazio, frio, uma sobremesa sem valor nutricional, um ridículo mas superficialmente divertido exercício técnico, mas penso que o filme vai para além de tão redutivas críticas. Para além de ser uma obra essencial para qualquer admirador da obra do autor americano, este filme proporciona em si mesmo uma fantástica e indubitavelmente deliciosa experiência cinematográfica, ou pelo menos foi o que proporcionou a este espetador em particular.

Como disse antes, o filme depende de uma estrutura em que observamos o contar de histórias dentro de histórias, sendo que o início é situado num cemitério em que uma jovem rapariga que nunca profere uma palavra no filme, observa um busto do autor de um livro que carrega. O livro tem o título deste filme e é a única indicação de tal denominação dentro do filme. Dessa cena passamos para Zweig (Tom Wilkinson) a relatar o livro, enquanto ainda estava vivo na década de 80, de onde passamos aos anos 60, quando um jovem Zweig (Jude Law) habitando o outrora célebre e luxuoso Grand Budapest Hotel, tem o seu interesse capturado pelo velho e misterioso proprietário desse mesmo hotel, Mr. Zero Moustafa (F. Murray Abraham). Dentro dessa narrativa passamos a outra, onde Moustafa nos relata, agora já dentro da principal narrativa do filme, a história de como passou de um refugiado de guerra na posição de lobby boy a proprietário do hotel e milionário.

Dentro dessa narrativa principal, o protagonista, para além do jovem Zero (Tony Revolori), é o mentor do jovem refugiado, o concierge do hotel, uma figura de proporções quase lendárias, M. Gustave (Ralph Fiennes). Esta brilhante criação de Anderson, apresenta-se como um homem de tempos passados, com um charme impossivelmente decadente e implausível, um gosto pelas melhores coisas que a vida e o dinheiro têm para oferecer, assim como um gosto, um tanto ou quanto oportunista, pelas mais velhas, ricas, loiras e solitárias hóspedes do hotel.
Uma destas mulheres é Madame D. (Tilda Swinton), que após morrer em circunstâncias bastante duvidosas, que apenas se tornam mais suspeitas depois de um vislumbre à sua família, especialmente ao seu repugnantemente vilanesco filho Dmitri (Adrien Brody), deixa a Gustav uma valiosíssima pintura, apesar das disputas dos seus outros herdeiros. Esta pintura e seu subsequente roubo vão levar as personagens a um delicioso enredo de sociedades secretas, homicídio, guerra eminente, monges misteriosos, e obras notáveis de pastelaria, sendo que explicar muito mais do enredo seria algo cruel da minha parte e uma tentativa fútil de condensação, grande parte do prazer do guião vem dos detalhes minúsculos que se espalham pelo filme.

Mas, pondo esse enredo para trás, há que falar da concretização da visão de Anderson, que nesta produção reuniu uma equipa composta, em grande parte, por personalidades com quem já havia trabalhado e que, em muitos casos, alcançam aqui, sob a direção de Anderson, algum do melhor trabalho das suas carreiras.

O elenco está recheado de caras reconhecíveis da obra passada do realizador e todos os intervenientes parecem dominar na perfeição o registo extremamente específico do filme e da obra geral do seu realizador. Ralph Fiennes como Gustav, concede ao filme uma prestação de absoluta perfeição, dando ao realizador a sua mais completa personagem e performance desde que este dirigiu Gene Hackman em The Royal Tenenbaums. É impossível imaginar outro ator a deliciosamente proferir o texto de Anderson e ao mesmo tempo a dominar o charme artificial da sua personagem, que para além de tudo parece sempre um homem cuja era já há muito passou e que, mesmo dentro do universo do filme, parece ser uma figura fantasiosa e cujo comportamento parece ir para além da realidade em que este existe.

Tilda Swinton como Madame D. tem apenas alguns momentos para estabelecer a presença da velha senhora que vai proporcionar o desenrolar do filme. Coberta de maquilhagem que a transforma na antiga mulher, Swinton é mais presença que atriz no filme, tornando a sua figura inesquecível no panorama de excentricidades do filme. Saoirse Ronana aparece-nos como uma visão de inocência e pureza, mais boneca de porcelana idealizada que ser humano, mas tudo isso funciona dentro do filme. Brody e Willem Dafoe apresentam-se como vilões a que apenas falta um comprido e requintado bigode para retorcerem entre os dedos. Jeff Goldblum mostra, tal como Fiennes, um talento delicioso para o diálogo de Anderson. F. Murray Abraham traz uma melancolia e um peso necessários ao filme, sem nunca resvalar do equilíbrio estilístico de que o sucesso do filme depende. Estes são apenas alguns dos atores que demonstram brilhante trabalho neste extenso elenco, mas falar de cada membro individual do elenco, gastaria mais palavras do que aquelas que seriam apropriadas este texto.

Para além do elenco, toda a concretização visual do filme é sublime, sendo que a cenografia é um milagre cinematográfico, apresentando o hotel em diferentes partes da sua existência com um luxo e uma atenção ao detalhe que parecem criar no enorme edifício um enorme bolo de várias camadas, cada uma mais maravilhosa que a outra. Os figurinos de Milena Canonero trazem ao elenco o visual de quase desenhos animados, em cores fortes e inescapáveis, mas que nunca descuram na elegância ou no luxo que permeia o filme como uma pátina reluzente e perfumada. Até o trabalho de maquilhagem é exemplar, quer seja na transformação de Swinton referida acima, quer seja nas cabeleiras elegantes da década de 30, ou na mancha que pinta a cara de Saoirse Ronan.

Todo este mundo visual é capturado pela câmara de Robert D. Yeoman, que alcança nesta sua colaboração com Anderson, sendo que esta tem sido uma associação que já dura há anos, um inegável triunfo. Para diferenciar as diferentes épocas e diferentes camadas de narrativa, são usados diferentes formatos, sendo que a maioria do filme é apresentada em 4:3. As cores, especialmente na narrativa principal, apresentam-se como a paleta cromática de uma embalagem de doçaria, cores fortes acompanhadas de pastéis agradáveis ao olhar, mas sempre bastante afastadas de qualquer realidade presente, basta olharmos para uma cena dentro do elevador do hotel, por exemplo, em que o vermelho das paredes e da indumentária de Tilda Swinton, parecem arder para fora da tela sem nunca desequilibrarem a imagem geral ou a composição. Há que dizer, aliás, que em toda a carreira de Anderson, este autor que filma os seus filmes com uma característica composição geométrica e rígida, preferindo centrar os elementos visuais e ter os atores a falar quase que diretamente para a câmara, nunca terão sido alcançadas tão belos exemplos do seu estilo visual, nem tão grandes sucessos de composição do frame.

 Acompanhando todo esta euforia para os olhos, vem ainda a banda-sonora, composta pelo bastante prolífero Alexandre Desplat, que vai acompanhando os ritmos do filme com aquele que é, talvez, um dos seus mais prodigiosos trabalhos.

Todo este palavreado para descrever a maravilha técnica e narrativa que é o filme, sem falar grandemente sobre o modo como Anderson equilibra tons e temáticas contrastantes. Pois para além da construção de uma deliciosa comédia, Anderson conseguiu colocar sobre o filme uma enorme melancolia, e uma tristeza que nunca se tornam melodramáticas ou trágicas. O filme começa num cemitério, como já disse, situando logo uma realidade narrativa em que todos os principais intervenientes já morreram há bastante tempo, e em que o mundo descrito no filme, uma Europa de luxo e de turismo requintado, há muito se perdeu nas chamas da História e do tempo. As próprias personagens, sendo Gustav o principal exemplo, parecem viver separadas do seu tempo, como se vivessem numa teatralidade consciente, interpretando uma fantasia nostálgica de uma realidade que já se extinguiu, algo que é, aliás, ponderado por Mustafa perto do final da sua melancólica história de uma vida passada.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

THIS HAPPY BREED (1944) de David Lean




  O uso de cor, tal como o uso de novas tecnologias na elaboração de projetos cinematográficos, sofreu vários tipos de utilizações aquando do seu aparecimento, sendo muitas delas apenas originárias de fins económicos e quase mercenários. A cor vendia e embelezava os filmes. Por vezes, bastante longe de qualquer intenção artística do autor, a cor era apenas uma ferramenta dos estúdios para obter mais fácil sucesso.

 Em Inglaterra, aquando dos anos de Guerra, os realizadores Michael Powell e Emeric Pressburger começaram a criar as suas obras em cores de uma intensidade sonhadora. Este par de autores realmente utilizavam a cor como parte de uma dramaturgia cinematográfica na criação das suas obras. Mas, se a cor dos filmes destes dois realizadores para a produtora Archers, era uma cor de tons luxuriantes e de uma beleza sobrenatural, então a cor utilizada por David Lean nesta sua primeira obra colorida é um parente bastante pobre dessas outras criações britânicas.

 Tenho de admitir que foi um choque para mim, aquando do meu primeiro visionamento do filme, observar o que seria o primeiro trabalho a cores do realizador de Summertime, Lawrence of Arabia e Doctor Zhivago. Onde estava a beleza estonteante dessas obras futuras? Neste filme as cores são mortas, ainda levemente irreais devido aos processos agora arcaicos de onde se conseguia este filme a cores, e para além disso são sujas e incrivelmente pouco atraentes. Mas é nessa mesma falta de beleza superficial que se esconde o génio de Lean, que, pelo menos no meu entender, terá sido dos primeiros realizadores a ver e utilizar a cor, não como uma ferramenta de beleza e luxo na criação de mundos quase irreais, mas sim na criação de um cinema realista mais perto da realidade que outras obras de estúdio filmadas sob a simplicidade atraente do preto-e-branco.

 Para ajudar nesse aspeto realista, a cenografia e figurinos também seguem uma linha de austeridade cromática, nunca “glamourizando” em demasia o espaço ou os humanos que nele se inserem. Há uma predileção por papel de parede feio e em cores mortas e por padrões pouco atraentes que apenas parecem saturar o espaço visual em que a ação se insere. Para além disso, até a caracterização dos atores parece ter sido trabalhada de modo a evitar as atraentes faces rosadas das grandes estrelas de Hollywood quando filmadas em luxuriante Technicolor.

 A cor como ferramenta do realismo será algo quase impensável quando olhamos para esta era do Technicolor em grandes produções de estúdio. Este uso da cor foi algo que mais tarde se veio a perder durante o realismo britânico dos anos 60 e sua predileção pela simplicidade do monocromo.

 Pois bem, depois de toda esta exploração dos méritos do uso da cor neste filme, talvez convenha falar um pouco do enredo do filme para que este não se pareça neste texto com uma suja mancha de cor sem qualquer contexto.

 Tenho de admitir que avancei para este filme com muito baixas espectativas. Para quem desconhece, este filme explora a vida de uma família tipicamente britânica durante três décadas, focando-se no período em que viveram numa modesta vivenda em Londres. Acompanhamos a família ao longo de vários percalços incluindo mortes inesperadas e de caráter trágico assim como a precipitação da 2ª Guerra Mundial sobre a população inglesa. O filme termina com a saída da família de casa, sendo que já só acompanhamos pelo final o marido e mulher que abriram o filme, tendo as histórias de seus filhos já se ramificado para fora dos limites da vivenda. O argumento terá sido criado a partir de uma peça de Noel Coward, sendo que as raízes teatrais do filme ainda se encontram bastante visíveis no produto final. É nesse nome de Noel Coward que se abatiam as minhas baixas espectativas.

 Já antes havia visto uma adaptação de outra peça de Coward acerca de décadas na vida de uma família tipicamente britânica e tenho de dizer que terá sido uma das mais sofredoras experiências que já tive como cinéfilo. E, verdade seja dita, não tinha grande vontade de repetir tal sofrimento. Mas este filme não é Cavalcade, e algo faz de This Happy Breed, uma obra infinitamente superior, esse algo é a realização de Lean que evita cair na funérea procissão de dignidade britânica do filme anterior, criando aqui um tocante, se bem que por vezes simplista, retrato de uma família da classe média inglesa.

 Basta olharmos para o modo como o jovem Lean inicia e encerra esta sua segunda longa-metragem (se contarmos o seu trabalho em Major Barbara, esta é a sua terceira longa). O filme começa então com um golpe de génio no modo como mostra em primeiro lugar e numa visão aérea, uma imensidão de vivendas nos subúrbios de Londres. São todas iguais, mas a câmara parece ter-se interessado por uma dessas casas em particular. A partir de uma série de dissolves vamo-nos aproximando da casa, acabando mesmo por entrar nesta através de uma janela do primeiro andar. Já no interior da habitação, os dissolves cessam e entramos num plano em movimento, sendo levados pelas escadas até estarmos defronte da porta principal da casa. O nosso olhar vai assim flutuando pelo espaço à medida que a música na banda-sonora se vai precipitando, parecendo anteceder a chegada triunfal de uma figura heroica. Mas não é nenhum herói mítico que entra pela porta em que nos focámos, mas sim uma família modesta e em nada incomum ou, diga-se, de particular interesse. Lean eleva assim a simplicidade do quotidiano a um nível de discreto heroísmo, sem nunca esquecer a sua condição como uma família no meio de tantas outras semelhantes nessa infinidade de casas iguais.

 O filme termina com um inverso deste plano. Aí vemos a família abandonar a casa pela porta principal, e com o fechar desta a câmara afasta-se, subindo as escadas e flutuando para longe da vivenda numa série de dissolves, em tudo o espelho do começo do filme.

 Mas não será só trabalho do realizador que torna esta uma obra exemplar do cinema britânico do período de guerra, também os atores fazem um excelente trabalho na concretização desta família de classe trabalhadora. Celia Johnson é particularmente eficaz, especialmente no modo como vai mudando a sua postura, velocidade e movimentos ao longo do filme. Aqui ela parece envelhecer através de uma fadiga em crescimento, muito mais do que a partir de quaisquer trejeitos ou tiques grotescos como, por vezes, acontecia no trabalho de outros atores, veja-se Greer Garson em Mrs. Parkington, do mesmo ano. Esta criação de Johnson está bem longe da elegância trágica que caracteriza o seu trabalho em Brief Encounter, a sua terceira colaboração com Lean.

 O filme não é perfeito, estando bastante preso a uma teatralidade que, por vezes, parece restringir negativamente os impulsos dramáticos da sua estrutura. Para além disso, existe uma tentativa de criar uma obra de valorização patriótica que tem tendência a cair no lugar-comum, sendo essa exaltação patriótica um dos aspetos menos bem conseguidos do filme.


 Apesar disso, esta é uma tocante obra em que permeia uma melancolia nostálgica, um sentimento de perda de uma vida que a guerra veio destruir. O filme como um retrato de uma família britânica é um relativo sucesso e um belíssimo passo no desenvolvimento da carreira daquele que seria um dos mais célebres realizadores britânicos do século XX.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Feliz Natal

 Gostaria de desejar a todas as (poucas?) pessoas que desperdiçam algum do seu tempo neste pequeno blog, um feliz Natal.

 E que melhor maneira de festejar tão feliz ocasião do que com cinema? Deixo por isso aqui uma das minas sequências favoritas associadas com esta celebração, um pequeno excerto da obra-prima do escapismo americano e da obra de Vincente Minnelli que é Meet Me in St. Louis.


 E de novo vos desejo um feliz Natal.


PS: Amanhã deverei colocar um outro texto sobre um filme que, apesar de ter pouco que se possa denominar de natalício, é uma obra fantástica acerca desse tema essencial do cinema e desta época festiva,  a família.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

MR. TURNER (2014) de Mike Leigh



 Apesar do que o que alguém poderá deduzir dos outros textos que tenho aqui publicado, eu não tenho um invariável ódio ou aversão por filmes de cariz biográfico. Por vezes existem obras que conseguem realmente capturar algo interessante a partir de uma estrutura biográfica, filmes que retratam uma personalidade e que realmente parecem explorar essa figura utilizando à sua disposição as várias especificidades e possibilidades da arte cinematográfica. A nova obra de Mike Leigh, um dos meus favoritos realizadores a trabalharem atualmente, será um exemplo deste segundo tipo de filme biográfico.

 Em obras anteriores, Leigh terá explorado realidades contemporâneas a partir de um estudado trabalho de ator com um grande apelo ao realismo, sendo que alguns desvios como Topsy-Turvy e Vera Drake, apesar de serem filmes de época, continuavam a apoiar-se numa visão sobre um enorme elenco de interpretações naturalistas. Mesmo Vera Drake acaba por se tornar um retrato coletivo de uma família. Neste novo filme, Leigh parece quebrar com alguns dos seus usuais cânones, criando uma obra que se desenvolve à volta de uma única personalidade, de uma única figura, uma figura que provém, aliás, de uma realidade histórica, sendo que o próprio modo como o filme é filmado, parece olhar o mundo como uma extensão da perspetiva singular do seu protagonista.

 Deixem que me esclareça um pouco. O filme explora o último quarto de século, os últimos capítulos se preferirem, da vida daquele que é uma das mais célebres figuras na história da pintura europeia, Joseph Mallord William Turner. O mestre da luz e da atmosfera na pintura romântica do século XIX, que nas suas obras tardias quase pareceu anteceder o impressionismo na sua quase abstrata visão de luz e cor na composição das suas, por vezes, turbulentas e indefinidas paisagens.

 Apesar de uma proposta biográfica, o filme, mesmo assim, nunca parece estar interessado num seguimento solene de marcos históricos na vida do seu sujeito de protagonismo, preferindo ir capturando momentos na vida do pintor, muitas vezes sem aparente seguimento lógico, e acompanhando os seus últimos anos, através de uma vida sem grandes aparentes glórias ou momentos de inspiradora magnitude, como é usual neste tipo de filme. Se há algo que me incomoda na maioria dos filmes biográficos será, aliás, esta predileção por uma visão glorificada ou pelo menos de óbvia dramatização das figuras retratadas, sempre acabando por apelar a fórmulas e a marcos históricos.

 Pelo desenvolver do filme, nas suas deliberadamente lânguidas duas horas e meia, Leigh vai apresentando figuras novas à volta de Turner, nunca, no entanto, perdendo de vista o foco singular do filme. Assim acabamos por obter o usual elenco de grandes dimensões em que personagens menores são aparentemente criadas com o mesmo tipo de atenção, usualmente dado a protagonistas.
 Alguns dos mais marcantes membros desse elenco serão, por exemplo, Timothy Spall no papel central, numa interpretação cheia de grunhidos e de rudes maneirismos, capturando uma crueza e uma animalesca fisicalidade no pintor, e que arrecadou o prémio de Melhor Interpretação Masculina na edição de 2014 do festival de Cannes; Dorothy Atkinson como uma doméstica de Turner, padecendo de uma estranha doença de pele e cheia de trejeitos e maneirismos bizarros e que parece ter uma estranha e dependente relação com o pintor; Paul Jesson como William Turner, o velho e cansado pai do pintor, com quem tem uma jovial relação até à sua inevitável morte; e Marion Bailey como Sophia Booth, dona de uma estalagem numa região costeira e com quem Turner, estabelece uma relação romântica até à morte sofrida do pintor. Para além destes atores, um prodigioso elenco estende-se em papéis de menores dimensões, em que muitos dos atores usuais do trabalho de Leigh voltam a trabalhar aqui com o realizador, como Lesley Manville, tão magnífica em Another Year, Ruth Sheen e Martin Savage entre muitos outros.

 Este elenco com as suas magnificas interpretações e a estrutura narrativa do filme, possibilitam logo aqui um retrato um tanto ou quanto impressionista da vida de Turner, não se focando tanto na historicidade da sua vida, mas sim numa coleção de momentos a partir dos quais obtemos uma impressão, bastante filtrada através da própria perspetiva de Leigh, tanto do pintor como do mundo em que este se insere. Mas a ajudar tudo isto virá a concretização plástica do filme, que demonstra aqui um nível de exímia realização e esplendor que não são assim tão usuais nas obras passadas do realizador.

 O filme convirá referir, assemelha-se quase a uma pintura, sendo que o grande culpado desta magnificência visual será Dick Pope, o diretor de fotografia do filme, um veterano da obra de Leigh, que ganhou, aliás, um prémio especial em Cannes pelo seu inegavelmente impressionante feito técnico. O filme é banhado, através do trabalho de Pope, numa quase contínua luz dourada, um apelo à luz natural e rica das pinturas de Turner. Tanto interiores como exteriores assemelham-se a representações pictóricas, sendo o céu e a luz natural uma constante presença na composição. O mundo é visto como quase filtrado através do olhar do protagonista, ganhando uma absoluta riqueza visual que poucos filmes alcançam. Um visual em particular que gostaria de referir seria o modo como Pope e Leighj filmam os interiores da casa da senhora Booth, aonde todas as janelas parecem abrir-se para uma paisagem marítima, criando o efeito, conseguido através do foco profundo e de uma magistral captura da luz, de uma casa trespassada por pinturas vivas em constante e lento movimento ao mesmo tempo que o filme se parece focar nas vidas humanas que no se inserem no ambiente.

 Esse exemplo em particular é bom de referir, não só pelo magnífico trabalho de fotografia, mas também pela cenografia, que juntamente com os figurinos e mesmo a caracterização, criam em Mr. Turner um mundo de rudes texturas e luz filtrada por tecidos e vidros sujos, um mundo do qual quase conseguimos deduzir o aroma. Esta criação de um panorama de grande fisicalidade textura cria um ambiente de curiosos paradoxos onde até um teto de musselina rasgada coberto de varejeiras mortas ou a face manchada e doente de uma velha mulher, são capturados com a delicadeza de uma pintura pela câmara de Leigh. Um mundo assente na realidade mas filtrado por um olhar subjetivo e particular.

 Isto é quase um resumo de todo o filme, especialmente do modo como explora essa figura de Turner, animalesca e rude, por vezes repulsiva, mas sempre fascinante, sempre humano, e sempre com a promessa de mestria e luz no seu olhar envelhecido. Leigh pode não ter criado uma prestigiosa exposição dos mais importantes eventos na vida de Turner expondo o seu génio, mas com a sua característica abordagem criou algo muito mais especial, um retrato, uma pintura em forma de filme, em que o olhar de Leigh poderá trair a realidade histórica, revelando ao mesmo tempo uma maior humanidade e realidade que qualquer abordagem mais convencional revelaria.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO (2014) de Daniel Ribeiro



 Tenho já a dizer que, apesar de quaisquer reservas que tenha em relação ao filme, é refrescante ver um filme em que é retratado um jovem homossexual e em que não temos um já moribundo ênfase no seu sofrimento e rejeição social devido a esse aspeto de si. É algo que não terá muito a ver com a qualidade geral do filme, mas depois de anos e anos com as mesmas histórias de “coming out” cheias de adolescentes sofredores e quase martirizados, ver um retrato tão normal, tão casual deste tipo de personagem é, volto a dizer, bastante refrescante.

 Não que não haja nenhum problema de inserção social do nosso protagonista, mas essa questão está principalmente ligada ao facto de que Leonardo (Ghilherme Lobo) para além de estar a descobrir a sua sexualidade, é cego desde nascença. O que será ainda mais interessante é o modo como o filme no seu estudo de personagem parece lutar contra uma definição deste jovem por essas duas facetas suas, a sua sexualidade e a sua cegueira. Aliás, se existe um grande conflito no filme, será a insistência do protagonista em não se deixar definir pela sua cegueira, que tantas vezes parece fazer dele um pária social no seu ambiente escolar.

 Apesar deste meu entusiasmo em relação às temáticas do filme, há que salientar uma coisa. Este é um filme de grande modéstia, que se parece contentar numa atrativa simplicidade formal e em que os seus principais valores vêm de um cuidado na sua observação de personagem. O filme nunca almeja a nada particularmente superior ou mais sofisticado a níveis técnicos ou formais, sendo que o mesmo parece uma estável obra de uma modéstia deliberada.

 Apesar disso, o filme mostra um interessante trabalho de fotografia, em que o mundo do seu protagonista cego nos aparece sempre numa quase idílica beleza de ambientes delicados e banhados por uma suave luz do sol. Apenas num momento fulcral do filme, durante uma cena de festa noturna, é que a iluminação parece querer atingir um nível ligeiramente mais ambicioso no seu uso de luz azul, que para mim criou um grande choque visual. Não sei se essa era a ideia desse momento e, sinceramente, não sei se a beleza superficial do filme realmente funciona, tendo em conta a forma enfática como o filme tenta criar a perspetiva do seu protagonista cego. Fará assim tanto sentido realçar uma beleza visual quando exploramos o mundo de um invisual? Talvez houvesse aqui uma tentativa de contrastar essa mesma falta de visão com um mundo belo e solarengo, mas isso não parece muito explorado no decorrer do filme.

 Outro aspeto da fotografia do filme será o seu uso constante de composições de óbvia geometria, a começar logo pelo plano que abre o filme, que dispõe Leonardo e a sua melhor amiga, Giovana (Tess Amorim), na borda de uma piscina e os filma de uma perspetiva perpendicular ao chão. É uma ótima forma de começar o filme, especialmente no modo subtil como nos revela pormenores de personagem, nomeadamente a cegueira de Leonardo, uma perspetiva idealista e inocente sobre a sua inexistente vida romântica, e o interesse de Giovana em Leonardo, que não parece perceber nenhum dos avanços da sua amiga. Tudo isto visto de um ponto de vista de um delicado observador que parece se esforçar por não fazer juízos de valor. Este tipo de perspetiva e caráter observacional vai permear o filme.

 O equilíbrio desta relação será ameaçado pela chegada de um novo aluno à turma de ambos. Gabriel (Fabio Audi) será o interesse romântico deste leve romance de juventude. Ele torna-se colega de Leonardo num projeto em pares que têm de fazer sobre Esparta (um imperdoavelmente obvio plot device).

 A sua relação vai-se desenvolvendo num retrato bastante naturalista de uma ansiedade e do caráter desajeitado do romance adolescente. Os dois atores são bastante eficazes neste desenvolvimento de relação amorosa, nunca se tornando demasiado seguros de si, nem em termos de linguagem corporal. O filme está cheio de olhares e toques furtivos. Lobo é particularmente eficaz na sua representação de um introvertido que parece sempre tentar reduzir o espaço que ocupa quando em conversa com outrem.

 No final, como seria esperado, os dois ficam juntos e não há grande conflito, Aliás, se há uma grande crítica que tenho a fazer ao filme é que o final se apresenta como um fechar bastante forçado e risivelmente perfeito do filme. Os “bullies” que ridicularizaram Leo no resto do filme, parecem calados pelas mãos dadas dos dois namorados, não de modo maldoso, até parecem felizes por eles. E para além disso existe quase uma repetição da entrada de um novo aluno na turma, que nesta segunda ocorrência parece indicar a entrada de um interesse romântico para Giovana, cuja relação e deterioração com Leo, parece completamente remendada pelo final do filme. Em suma, tudo é resolvido de modo perfeito que dá ares de sacarino.

 Mesmo assim nada disto retira ao filme os seus pequenos e simples triunfos na representação da personagem de Leo e no despertar sexual de dois adolescentes realisticamente desajeitados e inseguros de si. Veja-se por exemplo uma cena em que os dois rapazes estão no chuveiro depois de estarem numa piscina. A câmara mantém a modéstia doa atores, nunca testando o conforto da audiência e chega mesmo a explorar o olhar tímido mas interessado de Gabriel no corpo desnudo de Leo, usando mesmo a perspetiva do olhar de Gabriel no seu trabalho de câmara.

 Este é um filme de simples prazeres que nunca parece tentar chegar a maiores triunfos cinemáticos, mas que dentro do lugar que estabeleceu para si mesmo, parece resultar na sua maioria. É uma experiência solarenga e agradável e até, talvez, nostálgica no modo como retrata este florescer de um primeiro romance na adolescência.

domingo, 14 de dezembro de 2014

MOMMY (2014) de Xavier Dolan



 Por vezes aparecem filmes que me deixam feliz pelo simples facto de existirem, que a mim me justificam a existência de cinema. Filmes que me deixam de tal modo feliz, de tal modo extasiado, que me é extremamente difícil olhar para trás e refletir sobre eles de modo frio e objetivo sem deixar que o afeto que ainda tenho da minha visionação do filme contamine a minha perspetiva. Tudo isto para dizer que Mommy, a quinta e mais recente obra do jovem prodígio canadiano Xavier Dolan, é um desses filmes, mas que, apesar de tudo isto, tentarei escrever um pouco sobre o filme.

 Tal como as obras anteriores de Dolan, com a possível exceção de Tom à la Farme, Mommy expõe-se como um turbilhão de emoções fortes, personagens que parecem ter uma predileção por gritar em vez de conversar, um estilo visual e auditivo cheio de exuberância e extravagância estilística, e uma utilização prodigiosa da música, especialmente de pop songs. Mas enquanto em obras anteriores, o estilo de Dolan poderia mostrar uma certa imaturidade estilística ou mesmo uma indulgência na sua ostentação, uma certa experimentação emocionalmente caótica como em J’ai Tué ma mère ou uma exuberância idiossincrática e operática como em Laurence Anyways, neste filme o estilo de Dolan parece sempre estar em perfeita sintonia com a história humana que Dolan se propõe a retratar e numa simbiótica relação com o próprio desenvolvimento de personagem que tanto parece ser fulcral para o filme.

 Essa história de que falo desenvolve-se à volta de duas principais figuras, Diane (Anne Dorval) conhecida como Die, e Steve (Antoine-Olivier Pilon). Uma mãe exuberante, quase white trash, e seu filho, cujo pai morreu há alguns anos e que sofre de problemas psicológicos e problemáticos ataques de uma grande agressividade e violência física mesmo contra a sua adorada mãe, da qual parece, por vezes, doentiamente dependente. Forçados a estarem juntos na mesma casa depois da expulsão de Steve de uma instituição onde terá provocado um fogo na cantina, e onde já apresentaria um historial de semelhantes incidentes violentos. Ambos encontram-se numa situação economicamente precária, a conviver e a tentar viver com os problemas de Steve, controlando-os e tentando alcançar uma vida melhor para ambos.
 A acompanhar esta aparentemente fútil luta por um futuro idealizado e por uma vida estável, vem uma estranha vizinha de ambos, Kyla (Suzanne Clément), uma professora numa pausa sabática que sofre de uma incapacitante gaguez, possivelmente originária duma tragédia familiar que é aludida mas nunca exposta pelas personagens. Uma figura que completa um trio de figuras problemáticas, de humanos difíceis e abrasivos, mas que durante um certo espaço de tempo exposto no filme parecem encontrar uma harmonia nas suas vidas apesar das mágoas que os atormentam e que os levam muitas vezes a caminhos de aparente autodestruição.

 E referindo essa tragédia familiar que marca a personagem de Kyla, esse aspeto trágico é algo que assombra todo o filme como uma nuvem negra sobre um mundo de exuberância e dinamismo energético, algo que se abate sobre o filme desde a primeira introdução textual de Dolan, em que o realizador contextualiza o filme num Canadá semifictício em que uma lei imaginada por Dolan nos diz logo qual será o destino de Steve e sua relação com Die. O final do filme é particularmente melancólico, mas antes de falar mais sobre esses momentos finais acho bem referir um pouco do estilo único de Dolan, que neste filme parece ter alcançado uma enorme maturidade em relação a obras anteriores, como já referi anteriormente.

 Talvez o mais falado elemento da mise-en-scène seja mesmo o seu formato 1:1, um quadrado perfeito, algo que, admito, me deixou um pouco amedrontado quando vi as primeiras imagens do filme. Tinha grandes dúvidas acerca dessa experiência, antecipando um filme de uma desastrada claustrofobia visual e de grande superficialidade. O que temos no filme não é de todo desastrado, sendo que Dolan parece completamente dominar a composição no aspeto 1:1, alcançando, por vezes um filme bastante claustrofóbico, mas de modo completamente controlado e deliberado. Basta observarmos o modo como ele filma os seus atores, por vezes encurralando-os no ecrã de tal modo que nenhum espaço vazio existe para além da imagem das suas faces. Se tivermos em conta as emoções e o registo incrivelmente histriónico de Dolan e Pilon, o ecrã parece por vezes não aguentar os seus protagonistas, parecendo sempre estar em risco de explodir para fora da tela.

 Também o som e a música existem como modo de realçar estas emoções fortes das personagens, sendo que a inescapável banda-sonora parece maioritariamente composta por canções compiladas num CD para Die, pela parte do falecido pai de Steve. A própria sonoridade do filme demonstra uma grande ostentação mas sempre em auxílio das personagens e da criação do mundo em que elas habitam, nem que seja nas suas conturbadas e desesperadas mentes. A música acompanha a intensidade emocional dos atores e do guião, sendo impossível separar o filme da sua música tal como é comum no trabalho do realizador.

 Mas essa intensidade, que parece demasiado grande para a tela de cinema reduzida a um quadrado perfeito, é algo que nunca parece fugir para o registo operático de Laurence Anyways ou para a frieza superficial e estilizada de Les Amours Imaginaires, quase lembrando o idiossincrático mas sempre bizarramente vivido e verossímil trabalho de Mike Leigh nos seus filmes. Quase que apresentando este drama familiar como um filme do autor britânico filtrado pela exuberância formal de Wong Kar Wai, uma das claras influências do jovem realizador canadiano.

 O filme, de toda a obra de Dolan, é claramente aquele que apresenta mais complexas criações no que diz respeito às personagens, sendo que o estilo de Dolan não é necessário para as definir completamente, sendo mais um complemento, uma extensão da própria trama do filme, acentuando e moldando as vidas dentro do filme num turbilhão de dramatismo humano e formal. Veja-se os dois momentos no filme em que o ecrã se estende, numa das ocasiões quase que fisicamente aberto por Steve numa sequência em que tudo se parece ir resolver, em que a esperança reina e onde o trio principal parece ter encontrado um equilíbrio de felicidade e de liberdade, sendo isto interrompido por notícias que vão voltar a encurralar os protagonistas numa situação ainda mais precária que no início do filme, pelo que o ecrã fecha de novo no formato 1:1, encurralando a figura de Anne Dorval, confinando-a a esse espaço reduzido, a essa cela visual.

 Outro momento em que o filme é “aberto” ocorre mais perto do final do filme que acima referi. Die observa Steve e Kyla e começamos a ver uma montagem onde observamos o passar dos anos e o aparente desfecho positivo da trama do filme. Observamos esse ilusivo futuro melhor a ser alcançado por Steve, essa estabilidade, essa felicidade tão desejada, essa liberdade. Mas começamos a apercebermo-nos que na realidade, o que observamos não é o fim do filme, que tudo é demasiado idealizado. A câmara está a desfocar demasiado, tudo parece demasiado abstrato. O que vemos é apenas uma visualização dos desejos de Die, de um futuro imaginário, de uma concretização de todos esses sonhos maternais em relação ao seu filho. Não há nenhum momento mais destroçador em todo o filme como o momento em que o ecrã se volta a fechar nesta montagem, destruindo qualquer esperança de que o que vemos ser a realidade, anunciando a crueldade do mundo real e suas consequências para as personagens. Se há algo que esta sequência consegue é, para além de estabelecer esse sonho essa esperança avassaladora, a de visualizar o amor maternal que o filme parece invariavelmente determinado a elevar, a glorificar.

 O filme não se encerra, portanto, com essa montagem, sendo o seu real final uma literal e vertiginosa corrida por uma liberdade talvez imaginária, talvez apenas fictícia. Uma corrida desenfreada, cujo combustível parece ser uma simples e intensa esperança por algo melhor, algo diferente. Um final que pode ser ora trágico, ora esperançoso, pelo menos para mim, dependendo da nossa interpretação e, sinceramente, do que queiramos observar na sua ambiguidade.

 Ambiguidade que parece um pouco incompatível com o que tenho referido em relação a exuberância estilística e a intensidade emocional, mas uma ambiguidade que existe e que também se manifesta em alguns momentos em que Dolan se parece retrair, não explorando e expondo por completo o passado de Kyla, por exemplo. Mas apesar disto, tenho de confessar que o filme poderá em certos momentos mostrar um pouco de manipulação emocional, parece apelar por vezes a um grande sentimentalismo, que, apesar de tudo, para mim acaba por resultar nessa exaltação da figura maternal e do próprio amor de um filho por sua mãe.

 Se em J’ai tué ma mère, Dolan explorou a crueldade numa relação entre mãe e filho, mostrando rasgos de amor entre os dois, obscurecidos pela abrasiva amargura dos dois, aqui vemos uma perspetiva diferente, talvez mais amadurecida e mais vivida. Em Mommy observamos quase uma ode à figura da mãe, algo sempre presente na obra de Dolan, mas que aqui atinge o seu expoente máximo, sendo que essa ligação entre mãe e filho, essa conexão humana que parece desafiar toda a lógica e que pelo final do filme é tudo o que nos permite agarrar à esperança desesperada de Die pela felicidade de Steve. Mas apesar de tudo isso, Dolan conseguiu aqui alcançar uma certa complexidade textual suficiente, em que Die nunca nos é apresentada como uma santa, nunca é uma imagem distante e glorificada, mas mais uma heroína comum e cheia de defeitos, uma criação humana mas inegavelmente louvável e admirável no seu desespero de mãe e na sua aparentemente contínua luta por um futuro melhor para si e para seu filho.

 Há quem pense que Dolan deveria atenuar o seu estilo exuberante, mas para mim, esta mais recente obra, expõe o completo domínio de Dolan sobre as suas próprias ferramentas, sendo capaz de criar o que no final se parece revelar como uma história de uma procura incessante e talvez fútil por uma liberdade inalcançável, por vezes apenas apoiada na esperança incessante de Die, essa maravilhosa protagonista de Dolan. O filme está cheio de momentos que se recusam a desabitar o meu crânio, perdurando ainda nos meus pensamentos, apesar do tempo que já passou desde que vi o filme. Um filme portanto inesquecível, pelo menos para mim. E no final, apesar de perceber que muitos vão olhar o filme como mais uma indisciplinada e indulgente criação estilística de Dolan, continuo feliz pela existência de Mommy e pela experiência que me proporcionou nessas surpreendentemente velozes duas horas que compõem esta bizarra e inequivocamente tragédia humana de uma mãe e seu filho.



quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

TOM À LA FERME (2013) de Xavier Dolan



 O quarto filme da jovem maravilha do cinema canadiano Xavier Dolan parece-me tratar-se de um pequeno desvio ou então um sinal de maturação na filmografia crescente do autor. Nesta obra, Dolan abandona as suas histórias apaixonantes e românticas com dois protagonistas, o seu estilo parece mais dormente, mais calmo que nas suas últimas criações. A própria escolha do thriller como género a trabalhar é curiosa, assim como o facto de este ser o primeiro filme de Dolan adaptado a partir de material previamente existente.

 Mas para quê dizer tanto sobre o contexto do filme? Quero que se perceba que este filme se tratou de uma surpresa na ainda curta filmografia do realizador, e que, ao contrário das suas outras obras, mesmo a húbris estilística de Les Amours Imaginaires, esta sua criação apresenta-me grandes e inescapáveis problemas.

 Dolan é um realizador que expõe as suas origens e suas influências em todos os frames do seu trabalho. Se a influência de Wong Kar Wai, por exemplo, em filmes anteriores era bem explícita, neste filme, parece que caímos numa imagética “hitchcockiana”. E tal como o celebérrimo autor britânico, Dolan parece querer injetar no seu elenco de personagens psicoses e estranhezas psicológicas, desconcertando e desorientando a audiência, ao mesmo tempo que criando uma atmosfera de sufocante opressão.

 E há que dizer, independentemente das minhas objeções em relação ao filme, Dolan demonstra nesta obra um controle magistral da sua câmara. Se anteriormente tinha explorado um romanticismo luxuriante, que terá, talvez, atingido o seu exponente máximo em Laurence Anyways, aqui Dolan mostra um domínio prodigioso da linguagem visual e sonora do thriller.

 Os primeiros momentos do filme serão suficientes para justificar esta admiração pelo seu engenho como realizador de imagens e sons. O filme inicia-se com um apertado plano de uma caneta, escrevendo um elogio fúnebre para um namorado falecido, um elogio um pouco romantizado e focado mais no sofrimento do escritor do que na vida que se perdeu, mas mesmo assim um elogio. Cortamos para planos aéreos que nos mostram um carro, um ponto a avançar numa paisagem campestre, campos agrícolas que se estendem na composição com uma maravilhosa beleza pictórica, um grande trabalho de André Turpin. Tom (Xavier Dolan), o nosso protagonista, chega a uma quinta, onde ninguém parece estar, vagueia um pouco e decide entrar na casa, apesar de ninguém lá estar.

 A quinta é aqui filmada como um pesadelo emergindo da bruma, Uma visão saída de Hitchcock. O ambiente campestre é sempre retratado como sujo, húmido, opressivo, uma prisão que se abate sobre Tom desde os primeiros momentos. A câmara move-se com o olhar do protagonista, prendendo-nos na sua perspetiva. Dolan mostra quase que uma demonização da quinta neste momento e ao longo do filme, algo que quase levanta alguns problemas de representação de comunidades agrícolas que relembra o trabalho de John Boorman em Deliverance e a sua simplista, grotesca e redutiva visão.

 O próprio som da quinta parece transpirar uma opressão quase transplantada da linguagem de filmes de terror, o que é apenas intensificado pela maravilhosa música de Gabriel Yared. Uma banda-sonora que ao mesmo tempo lembra um classicismo tradicional como parece retirada de um operático thriller, e que durante o filme se vai revelando como aquele que é talvez a melhor escolha estilística de Dolan neste filme.

 Enquanto espera a chegada de alguém, adormece, fade to black, e é abruptamente acordado pelas perguntas de uma mulher, a mãe do seu falecido namorado, que se havia surpreendido com a presença de um estranho em sua casa, um intruso. Nesta interação vemos uma metódica e deliberada reticência de Dolan na apresentação de Agathe, interpretada pela maravilhosa Lise Roy, que primeiro nos aparece como uma voz na escuridão, de seguida apenas na distância fria do plano geral (contraste com os constantes grandes planos da face de Dolan) e que apenas completamente revelada durante uma cena de jantar, em que a sua proximidade de Tom é inescapável. Agathe, tem assim uma reticente entrada, que logo a expõe como a mais interessante figura do filme, algo pouco inesperado se considerarmos a mestria de Dolan na criação de personagens maternais nos seus passados trabalhos.

 O outro membro que completa a estranhamente perversa unidade familiar no centro do filme, é Francis (Pierre-Yves Cardinal) o irmão do namorado de Tom, que parece ter sabido da existência de Tom e da sexualidade do irmão, algo que Agathe desconhece. Em Francis, Dolan cria uma figura de agressão masculina, em que a sua imposição sobre Tom ganha um tom erótico e agressivamente sexual com o decorrer do filme. Também ele é primeiro introduzido como uma voz na escuridão, se bem que numa cena muito mais agressiva e prolongada que o breve momento de Agathe. Apenas vemos a sua cara na terceira vez que aparece em cena, primeiro voz, depois corpo, depois face, numa cena em que interrompe Tom no duche, ordenando-lhe que não use perfume no funeral.

 A câmara de Dolan parece fascinada por esta família, mas ao mesmo tempo mantém uma grande distância em que o filtro do mistério nos impedem de realmente entender estas figuras disfuncionais. As duas figuras são como paredes que se abatem sobre Tom, prendendo o quase masoquista jovem na sua quinta de atmosfera um tanto fantasmagórica.

 O filme apoia-se, portanto, numa perspetiva da vítima, a de Tom, sendo que o filme raramente se desvia dessa mesma perspetiva e quando tal acontece, o filme parece entrar em risco de desmoronar sobre a sua própria construção. Pressupõe-se que a audiência se apoiaria então na personagem de Tom face ao mundo que o envolve e às misteriosas figuras que o oprimem mas tal não acontece. O protagonista de Dolan nunca passa de uma cifra cujo comportamento parece indicar um estranho masoquismo, as suas motivações ou escondidas da audiência ou incompetentemente transmitidas no trabalho de Dolan como ator. Considero, aliás, esta escolha de Dolan como seu próprio protagonista como das piores escolhas do filme, o que resultou outrora em Les Amours Imaginaires e J'ai tué ma mère, não funciona nesta obra.

 Tenho a tese que isto se deva, em parte, ao facto de que neste filme o estilo expressivo de Dolan é usado na criação de uma atmosfera opressiva. O estilo é uma extensão do ambiente, como que as paredes que prendem o protagonista. Enquanto nos seus outros filmes, as personagens eram principalmente desenvolvidas a partir do estilo do filme e sua exuberância, aqui essa mesma exuberância estilística manifesta-se em oposição a um protagonista que sem essa extensão estilística da sua psicologia nos aparece como uma figura indefinida e vaga onde parece necessário um ser humano definido. É necessária uma oposição entre Tom e o mistério do seu ambiente. Ao invés disso temos um filme de cifras com pretensões de alcançar os píncaros dos thrillers clássicos. Talvez isto provenha do texto de que o guião foi adaptado, como nunca li tal obra, não sei.

 Mas, de novo, relembro que o trabalho, em geral, de Dolan como realizador continua a ser exemplar nesta sua exploração de uma linguagem cinematográfica diferente, ao mesmo tempo que tenta manter o seu estilo próprio. Veja-se, por exemplo, a sua manipulação do formato da imagem em momentos de grande tensão ou a cena de tango que marca um triunfo na junção desorientadora entre movimento de câmara e montagem. Sim, este é um prodigioso trabalho que talvez precisasse de outro protagonista ou de um guião diferente que apoiassem o primor técnico em algo que não fosse a cifra vazia em que o filme se apoia na sua presente existência. 

sábado, 6 de dezembro de 2014

EFTER REPETITIONEN (1984) de Ingmar Bergman




 Penso que o cinema e o teatro são artes com linguagens bastante, se não totalmente, diferentes. Uma afirmação um pouco radical e mesmo possivelmente anacrónica se olharmos bem o panorama teatral atual, em que tais barreiras parecem ser bastante fúteis. Mas, apesar disso, tenho de me manifestar em relação ao odiado espetáculo filmado, ou a filmes que se limitam a ser espetáculos filmados. Não que não hajam notáveis e incrivelmente cinemáticos exemplos de espetáculos filmados, mas na sua grande maioria não o são, limitando-se à mais básica forma de filmar a cena sem terem em consideração o que considero um dos grandes elementos de separação entre teatro e cinema, o olhar da câmara.

 Não só a minha perspetiva poderá parecer um pouco desatualizada ou mesmo redutiva, mas também há que mencionar que, possivelmente, terei escolhido um estranhíssimo exemplo para explorar esta corrente de pensamento. Muitos poderiam acusar esta obra tardia de Ingmar Bergman, de ser um filme irremediavelmente teatral que pouco se separaria da peça filmada. Pois bem, eu teria de enormemente discordar com esses indivíduos e suas opiniões.

 Para tentar expor de modo mais específico esta minha posição, gostaria de referir um momento próximo do meio desta breve criação. Durante uma longa conversa, com uma das atrizes (Lena Olin) numa encenação d’ O Sonho de Strindberg, um velho e cansado encenador (Erland Josephson, aqui quase no papel do próprio Bergman) invade o nosso espaço de visão num grande plano em movimento, que vai seguindo o seu rosto no espaço. Isto não é estranho para a linguagem visual do filme que, sendo um filme de Bergman, idolatra a imagem do rosto humano na composição de cinema. Sendo natural na linguagem do filme, passa-nos despercebido. A câmara passa para a atriz que agora nos aparece em criança. Não há qualquer corte e não há qualquer aparato vistoso. A câmara movimenta-se de novo para a a face do encenador e, perto do fim das suas falas, passa de novo para a atriz, novamente na sua representação adulta. Bergman comanda o nosso olhar com a sua câmara.

 Outro momento parecido ocorre perto do final do filme. Já no final desta atribulada conversa, a câmara movimenta-se de modo intimista perto dos rostos dos atores. Vemos-lhes a cara e, apesar de não o conseguirmos bem definir, temos noção que os dois ainda se encontram no espaço do palco cheio de adereços. Apenas quando a atriz se vai embora, é que saímos dos grandes planos dos atores e passamos a um plano geral do palco, onde o filme tem decorrido. De repente reparamos que o palco se esvaziou. Depois de perdermos qualquer noção espacial através do olhar da câmara, somos expostos, através da montagem, a um espaço que mudou por completo, da confusão de adereços espalhados, a um palco desnudo.

 Tal seria impossível de concretizar no teatro, em que por muito que o mais criativo dos encenadores tentasse, nunca nos conseguiria fixar de tal modo na face do ator. Isto de modo subtil e impercetível, que, repentinamente, permitisse que nos encontrássemos num espaço completamente alterado, quase a acompanhar a turbulenta viagem de autorreflexão do protagonista. O olhar da câmara foi aqui essencial. É disso que falo quando chamo a esta obra de Bergman, uma obra verdadeiramente cinemática e longe de ser um espetáculo filmado.

 Mais do que isso, o filme parece expor-se mais como que uma conversa depois de um ensaio, por vezes parece ser um ensaio para um espetáculo ou mesmo um espetáculo filmado. Bergman não nos vai mostrando o outro lado do palco, faz-nos permanecer como audiência, destruindo a nossa certeza como público de cinema. Para além disso o modo como vai quebrando linhas temporais e de realidades e memória, leva-nos a questionar qualquer realidade física do próprio filme. Será tudo isto uma encenação mental do seu velho protagonista? O que é interessante de verificar aqui, é que é necessário o afastamento do cinema para que estas questões se exponham no seu absoluto. Nunca temos aqui a certeza se vemos um espetáculo teatral ou não, algo que se fosse encenado em palco perderia logo essa pátina de incerteza. Independentemente da sua reflexão, esta obra sobre o teatro, quando apresentada como acontecimento teatral, seria invariavelmente uma representação teatral e nós a audiência desse espetáculo. Com o afastamento do cinema, Bergman consegue colocar-nos essa hipótese, assim como outras que também se poderão revelar válidas, se não ainda mais aliciantes.

 Apesar de vários filmes de Bergman explorarem a ligação do realizador com o teatro, uma arte que normalmente punha, a um nível pessoal, acima do cinema, nenhum deles o fez de modo tão explícito e incisivo como esta obra que nem terá inicialmente sido criada para cinema, sendo que o realizador teria pretendido que, o fortemente autobiográfico, Fanny och Alexander fosse o seu filme derradeiro. Nada disso se acabou por registar tendo em conta a existência de Saraband, mas pouco disso interessa na análise desta magnífica e magistralmente simples obra daquele que será, possivelmente, o meu realizador preferido.

 Há no entanto, que referir que o jovem ator de Fanny och Alexander aparece neste filme, vendo a ação de cima, de uma das varandas técnicas do teatro, uma posição descrita por Bergman na sua autobiografia. A Lanterna Mágica de Bergman será na verdade, quase que uma pedra de roseta na descodificação destas duas obras que parecem refletir em si duas fases completamente diferentes da sua vida. No filme de 1982 vemos uma ficcionalização de Bergman e sua família, na obra de 1984 vemos Bergman e seus atores, uma descrição bastante redutiva destes filmes que não deixa por isso de conter alguma verdade. Aqui Bergman quase que abertamente cria um autorretrato, bastante reminiscente de obras como 8 ½ ou até All That Jazz e Zerkalo. Se nos anos 60, o realizador tinha pegado nesta mesma intenção autobiográfica e criado uma comédia satírica, aqui vemos algo bastante diferente, uma reflexão de um mestre cansado sobre a sua própria vida.

 Apesar do que poderá transparecer no que escrevi acima, este filme não se trata singularmente de uma reflexão de Bergman sobre a sua relação com o teatro e com o palco, mas também é uma incrivelmente pessoal dissecação da sua relação com essa estranha figura do ator.

 Bergman terá sido um dos grandes realizadores de atores na história do cinema e ao longo da sua careira foi-se afeiçoando a atores e atrizes, chegando a ter profundamente importantes relações amorosas com algumas das suas atrizes, algo que Bergman parece quase dissecar nesta obra. Veja-se a figura de Ingrid Thulin, cuja mera presença em cena parece transpor o filme para uma imediata irrealidade, para essa distorção do espaço-tempo, dessa relação memória e realidade, etc.

 Thulin, representando a mãe da personagem de Olin, aparece-nos quase como um símbolo das várias musas de Bergman e no seu mais importante diálogo com o encenador parece desconstruir a relação dele com os seus atores, com o teatro e até com arte em geral.

 Para além disso a própria personagem de Olin, tem um fabuloso diálogo com o encenador em que os dois ponderam ter um caso amoroso, chegando mesmo a atuar o seu possível caso, levando-o quase à realidade e, a partir da ficção, vivem-no e descartam essa hipótese. Em minutos, o seu caso amoroso é resolvido, minutos estes em que a barreira entre a realidade do filme e a sua ficção teatral se parecem fundir em algo estranho, quase indescritível que o próprio Bergman parece tentar capturar com a sua câmara.

 Bergman consegue, no entanto, não cair na ode romantizada à figura do ator, quase que chegando a reforçar o caráter pessoal desta reflexão. Nunca assumimos ver aqui um manifesto de Bergman sobre cinema e teatro, mas mais uma exploração de si mesmo e da sua própria mentalidade. Um cinema íntimo e longe, pelo menos na opinião deste muito pouco objetivo fã, de ser uma manifestação dogmática de verdades entendidas como absolutas ou universais. Bergman criou assim, com esta obra tardia, algo que pode não chegar aos píncaros de outras das suas mais célebres criações, mas que se pode chamar de obra-prima cinematográfica pelo seu mérito próprio apesar da sua simplicidade e teatralidade.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

THE IMMIGRANT (2013) de James Gray


 Todos os artistas e criadores têm as suas origens, alguns tentam esconde-las ou ultrapassá-las, deixando para trás aquilo que os formou, outros criam odes a essas mesmas origens, homenagens e explorações e chegam mesmo a basear a sua carreira à volta disso mesmo. Digo isto, pois o realizador deste filme, James Gray, é um exemplo perfeito de um artista que permite em toda a sua obra que as suas origens e as da sua família, lhe informem e até formem o trabalho. Talvez o maior exemplo disto seja mesmo esta obra a que me proponho aqui analisar, The Immigrant.

 O filme é criado à volta da história miserabilista e quase melodramaticamente trágica de uma imigrante polaca, Ewa (Marion Cotillard), que chega, após a destruição europeia da 1ª Grande Guerra, a Nova Iorque. Ela e a sua irmã vão em busca do sonho americano, esse ideal esperançoso prometido aos imigrantes que formaram a população dessa nação. Durante a sua entrada no país, as duas irmãs são separadas e Ewa irá navegar por uma odisseia de perversidade, humilhação e abuso, principalmente possibilitado pela figura de Bruno (Joaquin Phoenix), que a tenta ajudar ao mesmo tempo que a explora como prostituta. Durante todo o filme, a protagonista tenta apenas reencontrar a sua irmã perdida e sobreviver, acabando, pelo caminho, por encontrar Emil (Jeremy Renner), um ilusionista primo de Bruno. Ambos parecem apaixonar-se pela inocência da imigrante, e acabam por entrar em trágico conflito, sendo que no final, a nossa protagonista, devido a um ato de quase martírio da parte de Bruno, consegue finalmente reencontrar-se com a irmã e fugir à podridão do sonho americano subvertido que tem vivido nessa Nova Iorque do princípio do século XX.

 Vemos logo nesta breve sumarização do enredo do filme, como Gray foi buscar à história da sua família de imigrantes da Europa de Leste, a inspiração para o seu trabalho. Basta ouvir o próprio Gray falar para nos apercebermos de como o filme se trata quase de uma homenagem aos seus antepassados que terão chegado a Nova Iorque na mesma época retratada no filme, procurando um sonho americano, procurando essa esperança do novo mundo. Isto já tinha sido previamente explorado na obra do realizador, especialmente em We Own the Night, que tal como este filme parece ser um filme transplantado de outra época cinematográfica, talvez a década de 70 com a sua Nova Hollywood de cinema de autor.

 É interessante também referir esse aspeto de exploração do sonho americano, pois seria de esperar que, numa abordagem tão melancólica e nostálgica do passado, houvesse alguma exaltação desse ideal sonhador que é o dito sonho americano, especialmente tendo em conta a quase homenagem que este filme faz à família do realizador. No entanto, Gray cria no filme como que uma subversão desse mesmo ideal, explorando esse sonho em toda a sua escondida podridão, tanto em termos temáticos e textuais no modo como Ewa é explorada e crescentemente degradada, como em termos visuais. Veja-se o modo como Ewa é forçada a representar o papel de Lady Liberty, no espetáculo burlesco de Bruno, um símbolo de esperança para todos esses imigrantes que chegam a Ellis Island, aqui transformado numa forma de exploração sexual e, numa cena em que Ewa é arrastada para o palco por um erroneamente bem intencionado Emil, essa imagem da Estátua da Liberdade torna-se também uma imagem de humilhação pessoal, enquanto observamos Ewa a ser humilhada por gritos dos seus vários clientes.

 Mas não se pense que este filme é apenas um continuo desfile de desgraças sobre a sofredora protagonista. Existem alguns, extremamente escassos, momentos de esperança, momentos de felicidade em que vemos um pouco da luz prometida por essa Nação americana. Estou maioritariamente a falar de uma sequência que marca quase o meio do filme em que Ewa assiste a um espetáculo noturno em Ellis Island. É aí que primeiro vemos Emil, que logo parece ver em Ewa uma figura de arquétipo e bela pureza, e é também nessa sequência que observamos uma performance de Caruso, o cantor que terá realmente cantado em Ellis Island, aquando da época em que o filme se desenrola. Por momentos a miséria parece ser esquecida e presenciamos um momento de esperança, um momento de sublime esquecimento. A melancolia nunca desaparece, mas a partir da sua cuidada mise-en-scène e do seu enredo, Gray chega nestes momentos a algo especial, um momento de quase catarse, que nos parece apenas preparar para as misérias que se seguirão, um momento em que vemos um símbolo de esperança para todos esses imigrante europeus, a voz de Caruso tornada um rasgo de luz na escuridão do filme.

 E pegando, já agora, nesse último ponto, a escuridão e a luz, gostaria de salientar o trabalho magistral do diretor de fotografia Darius Khondji, quase um veterano desta área. O filme parece almejar ao aspeto dos filmes de época que marcaram a produção americana dos anos 70, com o seu uso da luz e da sombra, e especialmente no seu uso da cor, criando uma atmosfera amarelada, quase reminiscente de fotografias da época, assim como um ambiente opressivo de escuridão e luzes difusas, que apesar da sua opressão nunca perdem uma magnífica beleza visual. O final do filme é, em particular um momento de absoluta mestria no trabalho de Khondji, sendo que vemos a luz cinzenta e fria da alvorada, que parece romper com o opressivo amarelo que tem permeado o filme, rompendo assim da prisão de Ewa, que nesses momentos finais consegue fugir desse pesadelo americano.

 O plano que encerra o filme é especialmente magnífico, sobretudo de um ponto de vista dramatúrgico. Nele vemos duas ações em simultâneo que quase sumarizam a viagem trágica do filme. Bruno, espancado e destruído depois de ter decidido ajudar Ewa, um constante símbolo de pureza e inocência, olha-se ao espelho, afasta-se e caminha, ainda sob o olhar desse objeto de autorreflexão, para a escuridão deixando a composição. Ewa também nos aparece, vemo-la por uma janela, num barco com a irmã partindo para o desconhecido, a sua parte do plano confere uma grande luz a estes momentos finais, comparando-se com a escuridão temática e visual de Bruno. O uso do foco, da composição e da luz é sublime, mas também esse jogo temático.

 Ewa passa a grande maioria do filme como uma figura de pura inocência, ela é quase santificada por Gray, lembrando mesmo o trabalho de Rossellini com Bergman na década de 50. Numa cena fulcral, vemos Ewa num confessionário. Envolta em sombras, ela torna-se a única luz para a audiência e o modo como é apresentada lembra quase uma mártir, uma santa sofredora. Cotillard é particularmente prodigiosa aqui, tal como o é em todo o filme, sendo que é especialmente magnífica no modo como impede Ewa de se tornar numa imagem quase que sobrenatural de demasiado idealizada bondade e inocência. Em momentos fulcrais e pontuais do filme, vemos a complexidade de Ewa, especialmente no seu ódio por Bruno. Sendo que gostaria também de salientar uma cena de esplendoroso trabalho de ator, em que Ewa e Bruno falam num restaurante após o primeiro cliente que Bruno terá forçado Ewa a ter. A protagonista diz-lhe, de modo surpreendente na sua gélida certeza, que o odeia e que se odeia a si mesma. Nas mãos de Cotillard, Ewa é mais que um símbolo, mais que uma imagem de pureza que quase todos os homens no filme querem explorar e abusar, em certas ocasiões para se tentarem salvar a si mesmos (Bruno) ou mesmo para se assegurarem de uma ideia de masculinidade (o primeiro cliente de Ewa).

 Em contraste com a figura luminosa de Cotillard, temos o Bruno de Joaquin Phoenix. Um Mefistófeles pobre e grotesco na sua miséria e podridão moral. Ele parece fascinado por Ewa, que vê como algo inalcançável, como uma luz de pureza, lembrando a relação de Gatsby para com a imagem de Daisy no romance de Fitzgerald. Ele realmente idealiza Ewa como uma santa. Uma santa que ele explora e prostitui, algo que, especialmente no fim do filme, o parece destruir. As personagens masculinas podem, admito, não estarem tão completamente concretizadas como a figura feminina central, mas esta relação de amor obsessivo entre Ewa e Bruno, desse escárnio e ódio misturado com uma reverência quase religiosa, é fascinante e suficiente para apoiar todo o enredo do filme, que parece sempre, de modo bastante deliberado, recorrer a mecanismos narrativos e a aspetos do enredo retirados a outras obras de temáticas semelhantes. Bruno torna em Ewa, uma imagem inalcançável e tenta ao mesmo tempo salvá-la, de modo a se salvar a si mesmo, como a tenta explorar e destruir, apagando essa luz que revela a podridão dele mesmo.

 Posso ter falado praticamente só do trabalho de fotografia e de ator, mas há que referir que todos os aspetos deste filme parecem funcionar como os mecanismos reluzentes de um relógio. Todas as peças funcionam perfeitamente para a criação de um objeto artístico final. Apesar de ter tanto elogiado o trabalho de Khondji, tenho a dizer que a fotografia teria muito pouco com que trabalhar se não fosse a maravilhosa concretização cenográfica de Happy Masse, com todas suas texturas e detalhes que informam o quadro visual pelo filme obtido, assim como os figurinos de Patricia Norris com o seu realismo cuidado, que pontuam o frame com uma infinidade de figuras negras com alguns rasgos pontuais de cor e luz, como a memória de Ewa em que ela se vê vestida de branco num passado deixado para trás.

 Dito tudo isto, tenho de dizer que este filme, para mim, é uma das grandes obras de um cinema americano contemporâneo. Gray pode olhar para trás, para as suas origens familiares e mesmo para as suas origens em termos de inspiração cinematográfica no que diz respeito ao estilo dos filmes dos anos 70 de Holywood, mas não será por isso que o filme se torna uma obra redundante e reacionária. Por outro lado, o filme consegue a partir da sua meticulosa e deliberada criação, revelar-se como algo completamente diferente da maioria da criação que marca o cinema americano neste momento, quer seja na sua edificação formal quer seja na sua dissecação temática de ideais poucas vezes dissecados, explorados, ou mesmo desafiados do modo que vemos este filme fazer.