quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

CREED (2015) de Ryan Coogler


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan


Quem diria que em 2015, um dos mais infelizes vencedores do Óscar de Melhor Filme na história dos galardões, Rocky, teria direito a uma sequela, na verdade um reboot, que conseguiria, não só, superar o original, como ofuscar todas as sequelas anteriores e tal modo que todos os filmes sobre o célebre pugilista de Filadélfia a parecem melhorar em retrospetiva? Certamente eu não seria a pessoa a afirmar tal coisa. Mas o facto de que, Creed é um dos melhores filmes americanos de 2015 e, certamente, o melhor filme de todo este franchise.

O filme desenvolve-se à volta de Adonis (Michael B. Jordan) o filho ilegítimo de Apollo Creed que, depois de ter sido criado no privilégio disponibilizado pela mulher de Apollo (Phylicia Rashad) que lhe serviu de mãe adotiva, vai para Filadélfia com o intuito de seguir as pisadas do pai, tornando-se um lutador profissional. Nessa cidade, ele tenta convencer o lendário Rocky Balboa (Sylvester Stallone) a treiná-lo, ao mesmo tempo que vai iniciando uma relação amorosa com a sua vizinha, Bianca (Tessa Thompson), e se vai tentando afirmar sem usar o nome do pai. Eventualmente, como seria de esperar, o jovem protagonista começa a alcançar sucesso e Rocky acaba por se tornar numa inseparável figura paternal, sendo que o filme culmina numa épica luta em que Adonis é o esperançoso underdog face ao campeão do mundo.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan


O guião é dissimuladamente simples, copiando muitos dos pontos temáticos dos filmes anteriores, ao mesmo tempo que desenvolve uma perspetiva fascinante sobre a relação de uma nova geração com o legado do passado. As lendas do passado e a realidade do presente apresentam-se como forças em constante conflito e paradoxal harmonia, revelando uma complexidade temática e uma maturidade e inteligência surpreendentes. Em Creed o futuro e construído sob o passado que é respeitado, emulado, mas que é eventualmente superado ou reinterpretado. Esta abordagem multifacetada é sublime na sua sagacidade e é genialmente desenvolvida em imagens tão potentes como a do jovem Adonis a treinar em frente a uma projeção do seu pai a lutar contra Rocky, em que o protagonista parece lutar com a lenda passada de seu progenitor ao mesmo tempo que desenvolve o seu legado pessoal sob as costas da herança de Apollo Creed.

Esta relação do presente com o passado nunca é melhor espelhada que na cansada figura de Rocky, magistralmente interpretada por Sylvester Stallone. Se me dissessem que eu estaria a defender Stallone como a melhor escolha de entre os possíveis candidatos ao Óscar de Melhor Ator Secundário eu ter-vos-ia acusado de abjeta loucura. Eu teria estado completamente errado.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan Sylvester Stallone


Rocky é um mamute vivo, um fóssil que ainda respira e vibra com uma cansada vitalidade. Ele é um homem que perdeu as pessoas mais importantes na sua vida e que, na sua velhice, parece estar desgastado pelo simples ato de continuar a viver, não fosse a luminosa presença de Adonis, que força este herói a regressar às suas glórias e a lutar pela sua existência, contra a doença, contra o desgaste do tempo e contra a inevitabilidade da sua irrelevância no panorama da atualidade. Aquando de uma coleção de intensas confrontações entre o jovem lutador e o seu mentor, Stallone demonstra uma subtileza emocional mais poderosa que qualquer outro trabalho na filmografia do ator, cuja própria linguagem corporal enquanto Rocky Balboa demonstra a formidável força do seu físico passado obscurecida pelo implacável peso dos anos, da idade e da fatiga.

A acompanhar o glorioso trabalho de Stallone está um maravilhoso elenco, liderado pelo carismático Michael B. Jordan, um ator tão formidável na sua musculosa fisicalidade como na sua poderosa vulnerabilidade. Também Tessa Thompson é de destacar, pegando num papel que poderia ser facilmente unidimensional ou simplesmente funcional e tornando-o numa palpável presença humana.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan Tessa Thompson


Com uma matura e energética abordagem da parte de Ryan Coogler, um guião surpreendentemente complexo e um formidável elenco, Creed já seria um legítimo sucesso cinematográfico, mas o filme não se fica por aí. Dos seus aspetos técnicos, a música é de particular magnificência. Ludwig Göransson compõe uma poderosa banda-sonora, onde o tema principal pulsa com uma maravilhosa intensidade, construindo uma identidade sonora para Adonis tão memorável como o tema que Bill Conti escreveu para o Rocky original. A música de Conti chega mesmo a marcar a sua presença num dos momentos mais intensos do clímax, naquele que é a mais gloriosa e inteligente utilização de música no cinema de 2015.

A banda-sonora é um perfeito acompanhante da montagem, sendo que estes aspetos conferem ao filme um preciso e dinâmico ritmo, que vai modulando as tonalidades do filme, nunca descurando ora nas partes mais emocionais e pausadas ora nos momentos mais épicos e gritantes. As lutas em que Adonis participam são o ponto alto para a montagem e para a brilhante fotografia de Creed, quer seja a magistral luta filmada num ensandecido plano sequência ou a operática luta final. Esse derradeiro conflito é uma sequência de pura glória do cinema americano de 2015, construindo uma complicada, mas eficiente, mistura de ritmos díspares, tensão arrebatadora e uma comovente empatia para com ambos os oponentes e as personagens que os apoiam e observam.


Creed O Legado de Rocky Ryan Coogler



Creed é um dos mais surpreendentes triunfos do ano, sendo uma obra que não deveria ser subestimada pelo seu apelo populista ou seu estatuto como mais uma sequela na máquina de infinita e doentia reciclagem de ideias que é a Hollywood contemporânea. Coogler, Jordan, Thompson, e outros, provam-se aqui como vozes essenciais para o futuro do cinema de Hollywood, e as lendas do passado como Stallone, demonstram como ainda nos conseguem surpreender e revelar uma genialidade usualmente ignorada no seu trabalho. 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

BRIDGE OF SPIES (2015) de Steven Spielberg




Depois de Lincoln, a possibilidade de Steven Spielberg regressar tão rapidamente a um drama de época com uma narrativa fortemente política era algo de criar água na boca de qualquer cinéfilo. Eu, pelo menos, fiquei estonteado com a qualidade de Lincoln em 2012, especialmente tendo em conta a minha relativa falta de afeição para com o estilo classicamente convencional de Steven Spielberg. Para aumentar ainda mais as espectativas, o argumento deste novo projeto tinha como autores os incomparáveis irmãos Coen. Estava então cimentada uma incontornável promessa de grandeza. A Ponte dos Espiões, infelizmente, não é tão formidável como Lincoln mas continua a ser um fascinante filme coberto pela pátina da nostalgia cinematográfica e construído por um dos autores mais gentilmente populistas do cinema americano. Quem diria que eu começaria a perceber a adoração generalizada pelo trabalho de Steven Spielberg nos anos mais tardios da sua carreira?

O filme, facilmente bipartido em dois impulsos narrativos, centra-se à volta de James B. Donovan (Tom Hanks), um comum, mas respeitado, advogado americano, a quem é pedido que defenda em tribunal o agente soviético Rudolf Abel (Mark Rylance) em plena Guerra Fria. Com uma fé desmesurada na justiça e nos ideais mais nobres da sociedade americana, Donovan monta a defesa de Abel, acreditando ser o seu dever defender o seu cliente, possibilitando-lhe um justo tratamento face ao sistema judicial americano. Como consequência das suas ações modestamente heroicas, Donovan torna-se num dos homens mais infames dos EUA nos anos 50, apelidado de traidor e com a sua família a ser tão perseguida como ele mesmo.




A primeira metade de A Ponte dos Espiões trata do julgamento de Abel e da confrontação do idealismo de Donovan face ao cinismo hipócrita e bastante fanático da sociedade americana da época, mas a segunda é bastante distinta. Depois do julgamento, Abel é considerado culpado, mas, graças a apelos de Donovan, condenado à morte, sendo que, quando um soldado americano (Austin Stowell) numa missão de espionagem é capturado pela União Soviética, as duas nações compõem um complexo esquema de troca de espiões. Donovan, um cidadão privado, torna-se no principal agente nas negociações cobertas pelo subterfúgio quase teatral das políticas da Guerra Fria, sendo enviado para Berlim, logo após ao muro ter sido erguido. Aí, no gélido mundo de uma Europa dividida, o filme torna-se num completo thriller político, onde os interesses da União Soviética, da Alemanha de Leste e dos EUA vão colidindo com a humanidade das pessoas envolvidas neste esquema, nomeadamente de Donovan.




A Ponte dos Espiões não contém as mesmas complexidades políticas e ideológicas de Lincoln mas usa a sua abordagem fortemente nostálgica como um perfeito veículo para levar as audiências a contemplar questões normalmente envolvidas na segurança conferida pela pátina do passado. O texto dos Coen é de particular relevância, conferindo uma certa acidez textual que vai sempre complicando mesmo os impulsos mais adocicados da mise-en-scène de Spielberg, cujo trabalho realmente brilha aquando da construção de tensão e suspense nas negociações internacionais em Berlim. Mas o filme não prima apenas por um sólido guião e realização inteligentemente convencional, sendo que o seu elenco é inegavelmente louvável pelo final sucesso do projeto.

Tom Hanks no papel de James B. Donovan é como que um James Stewart renascido. Há uma decência e moralidade na caracterização de Donovan que seria facilmente forçada ou cliché se outro ator estivesse a cargo da sua encarnação, mas Hanks é uma escolha perfeita. O seu trabalho de modulação tonal entre o drama, a tragédia, o thriller e a comédia é de uma precisão fantástica, assegurando que o filme nunca se perde, ou se torna pouco convincente. Em Hanks o classicismo da velha Hollywood encontra a contemporaneidade textual de algumas porções do guião, fazendo de Donovan um dos melhores protagonistas e heróis no cinema americano de 2015, sendo que o seu principal atributo é a sua surpreendente e magnifica modéstia.




O resto do elenco de A Ponte dos Espiões é bastante sólido, mas mais ninguém tem o mesmo tipo de triunfo que Hanks. Quem mais se aproxima é, certamente, Mark Rylance, um veterano dos palcos ingleses que é, de momento, o grande favorito para o Óscar de Melhor Ator Secundário. O seu trabalho é bastante delicado e gentil, nunca caindo em quaisquer histerias ou gritados dramatismos, e perfeitamente servindo de propulsionador para a maioria dos conflitos do filme. É graças ao ator que Abel se torna uma presença tão humana na narrativa do filme, tanto que o seu destino incerto se torna na perfeita nota amarga a complicar o triunfo do final.

A um nível mais técnico e formal A Ponte dos Espiões é concretizado com toda a usual eficiência do cinema de Spielberg. A montagem é de particular destaque, especialmente na segunda metade do filme, onde ajuda a criar um maravilhoso jogo de tensão prolongada. Infelizmente, nem tudo é tão eficiente como o trabalho de Michael Kahn, o editor de A Ponte dos Espiões. A fotografia de Janusz Kaminski e música de Thomas Newman são particularmente problemáticas. Kaminski é demasiado indulgente para com os seus usuais gostos por iluminação imensamente artificial que confere uma beleza bastante inapropriada e simplista a toda a construção visual de filme, onde as cenas noturnas são particularmente afetadas. A respeito da banda-sonora é incrivelmente claro que Spielberg necessita do trabalho bombástico e sentimentalista de John Williams, o seu perfeito companheiro para as suas nostálgicas viagens pelo classicismo do cinema americano.



Em conclusão, A Ponte dos Espiões é um filme que surpreende pela multiplicidade de tons que se propõe a abordar, sugerindo a comédia e o ridículo nas situações mais tensas, e sombreando o triunfo com a tragédia humana que nunca é completamente exposta. Spielberg criou assim um belo exercício de eficaz convencionalismo cinemático. Este realizador americano é um dos cineastas contemporâneos que mais se deixa cair no seu amor por valores do passado e uma nostalgia cinematográfica bastante forte mas que, ocasionalmente, concebe obras como esta, onde isso nunca é um defeito mas sim um dos seus mais fascinantes aspetos e inteligentes decisões estilísticas.


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

STAR WARS: THE FORCE AWAKENS (2015) de J.J. Abrams



Eu sei que devia tentar evitar spoilers mas, tendo em conta que já passaram duas semanas desde a estreia mundial do sétimo episódio da saga Star Wars e que, segundo os números do box office, parece que metade da população mundial tem vivido dentro dos cinemas a ver o filme e dar o seu dinheiro à Disney, parece-me desnecessário ter tais precauções. Com isto dito, todos os que tiverem receio de spoilers afastem-se, saiam da página, arranquem os olhos. PAREM DE LER!


Já fiz o aviso obrigatório a este tipo de críticas. Continuemos.


A razão pela qual eu coloquei esse aviso acima e pela qual eu até percebo a fobia generalizada a qualquer tipo de spoilers do enredo de Star Wars: O Despertar da Força, é que, para mim, a completa ignorância em relação ao conteúdo deste filme possibilitou-me uma das melhores experiências que tive este ano nos cinemas. Eu não sou um fã devoto da saga Star Wars, mas admito que os filmes são dos melhores exemplos de entretenimento leve e eficiente a sair de Hollywood desde o final da era dourada dos estúdios. Estou, pois claro, a falar da trilogia original e não das desastrosas prequelas, onde apenas a música de John Williams e, em dois dos filmes, os figurinos de Trisha Biggar conseguem merecer algum mérito.

O Despertar da Força é uma perfeita máquina de deliciosa nostalgia, constantemente referenciando os filmes passados e deleitando-se numa réplica da estrutura narrativa do primeiro filme de 1977, pelo que é imensamente surpreendente que o filme contenha tantos prazeres mesmo para quem não é um completo apaixonado por esse universo cinemático. Há algo de energético e inegavelmente apelativo em relação a toda a obra, que consegue captar a atenção da audiência de modo constante mesmo quando se torna previsível ou preso a fórmulas narrativas do passado. Nas mãos de um realizador incompetente (George Lucas), o guião completamente inspirado nas narrativas da trilogia original teria sido um desastre de indulgência entediante, mas, graças ao trabalho de Abrams, de toda a sua primorosa equipa técnica e do seu elenco, O Despertar da Força é dos mais prazerosos filmes à disposição de qualquer cinéfilo nestes últimos dias de 2015.

A narrativa começa 30 anos depois de O Regresso do Jedi, quando Luke Skywalker está desaparecido e os Rebeldes, agora apelidados como a Resistência, estão a lutar contra as forças malignas da Primeira Ordem (basicamente o que sobrou do Império do passado), sem o seu lendário salvador. A partir desta premissa narrativa entramos numa espécie de colagem de pedaços do enredo dos primeiros filmes, com um novo Darth Vader, o filho de Han Solo (Harrison Ford) e Leia Organa (Carrie Fisher) que se autointitula de Kylo Ren (Adam Driver), a tomar um membro da Resistência, Poe Dameron (Oscar Isaac), como prisioneiro, forçando esse herói rebelde a enviar o seu companheiro droide, o adorável BB-8, para o meio de um planeta deserto, guardando um pedaço de informação crucial para os esforços da Resistência. Basicamente é o mesmo tipo de situação que inicia o primeiro filme com Poe a ocupar a posição de Leia e BB-8 a de R2-D2.




Dameron consegue eventualmente escapar com a ajuda de um dos dois protagonistas desta nova trilogia, Finn (John Boyega), um stormtrooper com uma consciência que renuncia à tirania dos seus mestres. No entanto, os dois acabam por se despenhar no planeta deserto, onde Finn encontra BB-8 e o Luke Skywalker desta nova era da saga, Rey (Daisy Ridley).

E agora uma pequena pausa nesta descrição da história, pois há que celebrar o facto de que, pela primeira vez num filme desta saga, a grande figura heroica, a entidade salvadora de todo o Universo, o Jesus Cristo da narrativa, é uma mulher. Num franchise corroído por um sexismo crónico desde o primeiro filme, é refrescante ver um tão grande esforço em iniciar a nova era da saga com uma clara evolução nos seus valores.

Como cereja no topo do bolo, Rey é uma fantástica personagem, maravilhosamente interpretada por Daisy Ridley num papel que a deverá catapultar para o absoluto estrelato do cinema de Hollywood se tudo correr bem. Ela bem merece, assim como todo o elenco. Praticamente todos os atores são brilhantes, e todos eles são fabulosas escolhas criando uma raridade cinematográfica que é essencial para uma saga deste género, uma coleção de numerosas personagens com quem a audiência quer passar o seu tempo e com quem quer crescer.

Ridley é, portanto, uma joia de carisma e surpreendente força e potente vulnerabilidade. Boyega é um achado cómico, um perfeito herói relutante para o panorama atual onde humor pós-moderno é a escolha de eleição. Oscar Isaac é uma supernova de charme e sedutora luminosidade de estrela de cinema, tornando impossível que a audiência o ignore ou que evite apaixonar-se pelo seu sorriso matreiro e atitude obstinada atitude de herói levemente arrogante. Adam Driver pega no tipo de conflito que Lucas tentou desajeitadamente conceber para Anakin Skywalker nas prequelas e torna-o uma dolorosa realidade humana, injetando uma complexidade estonteante no que poderia ser um completo cliché. A imaturidade e fisicalidade latentes no trabalho de Driver é de particular génio.




Não são só os nomes dos atores mais jovens que merecem ser mencionados. Carrie Fisher é uma presença que é sempre bem-vinda nos ecrãs de cinema, trazendo uma bela maturidade à sua personagem envelhecida. Mas é Harrison Ford que realmente se destaca, oferecendo o seu melhor trabalho de sempre na pele de Han Solo que aqui é uma espécie de Obi-Wan Kenobi para os novos heróis. E tal como Obi-Wan, Solo perde a vida na mais discutida cena de todo o filme, às mãos do próprio filho, como que numa grotesca paródia da confrontação entre Vader e Luke.

Quem não viu o filme e continuou a ler depois do meu aviso deve estar furioso de momento.
Continuando, mesmo nos seus mais dramáticos momentos, como a morte de Solo (estou a atirar sal para a ferida?) o filme oferece uma refrescante vitalidade na sua reinterpretação, que é maioritariamente bem conseguida. As únicas exceções negativas que eu me sinto forçado a apontar é a nova Death Star, chamada Starkiller, que apenas difere das originais pelo seu tamanho, e uma sequência a meio do filme que parece ser uma reprodução quase exata do ambiente na cantina do primeiro filme.

Nem tudo é perfeito, é verdade, mas O Despertar da Força brilha nos seus melhores momentos com uma intensidade perfeita para este tipo de cinema de entretenimento. A salientar é uma sublime luta de sabres de luz, que contém em si uma dolorosa fisicalidade nunca antes vista na saga, nem mesmo no Império Contra-Ataca.




Sinceramente poderia continuar a escrever e acabar com uma crítica de 4000 palavras, mas penso que me devo conter. O filme é simples nas suas intenções, que são as de entreter e de criar uma base sólida para o desenvolvimento futuro desta nova trilogia ao mesmo tempo que homenageia o passado da saga, e faz tudo isto com uma respeitável eficiência. O filme está longe de se encontrar livre de quaisquer problemas estruturais, narrativos ou mesmo formais, mas é uma delícia de cinema, perfeito para esta época festiva para qualquer pessoa que queira ir ao cinema simplesmente para ser deliciado por um espetáculo de ação e aventura sem grandes complexidades ou problemáticas desconfortáveis. Star Wars: O Despertar da Força nunca acabará em nenhuma lista pessoal de melhores filmes de 2015, mas certamente tem um lugar na dos meus favoritos do ano, e penso que, ocasionalmente, isso pode ser mais admirável que inovação, qualidade ou invenção artística. Só ocasionalmente.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Oscar Hopefuls, Jane Fonda em Youth



 Os Óscares têm uma esporádica afeição por honrar prestações de reduzidas durações. Trabalhos de atores que, em apenas alguns minutos, capturam a atenção da audiência e deixam um impacto inesquecível e incontornável nos seus filmes. Alguns exemplos são Viola Davis em Doubt, Hermione Badley em Room at the Top e Ned Beatty em Network, são alguns dos intérpretes indicados ao Óscar pelo seu trabalho em pouco mais de uma ou duas cenas nos seus respetivos filmes. Apesar deste tipo de nomeação não ser completamente incomum, premiar uma prestação tão diminuta é algo raro, sendo que a santa padroeira de tais atores é, sem sombra de dúvida, Beatrice Straight que, com pouco mais de uma cena, conseguiu ganhar o Óscar para Melhor Atriz Secundária pelo seu trabalho em Network. Este ano, mais uma atriz parece ter esperança de seguir o exemplo de Straight*.

 Ela é Jane Fonda, que em A Juventude/Youth, o novo filme de Paolo Sorrentino, interpreta Brenda Morel, uma estrela de cinema envelhecida que em tempos foi a grande musa do cinema de Mick Boyle, a personagem de Harvey Keitel. Sorrentino faz tudo para despertar a atenção da sua audiência, fazendo-a antecipar a chegada de Brenda, de quem se fala bastante durante todo o filme. Há uma carga de expetativas que se criam antes do primeiro vislumbre de Fonda, e, quando ela entra, é como um choque de explosiva energia.


 Infelizmente para Fonda, apesar de toda a antecipação que Sorrentino conjura para a sua entrada, o texto com que este presenteia a atriz é certamente um dos piores diálogos de todo este ano cinematográfico, independentemente da sua carga narrativa no desenvolvimento da personagem de Keitel. O autor italiano parece ter escrito Brenda como se ela fosse a namorada de um gangster num filme americano dos anos 30, apenas com uma considerável utilização da palavra ‘shit’ a diferenciar o texto desses filmes de décadas passadas. Conjugue-se isto com um visual que se aproxima do grotesco na sua extravagância, e temos, não um ser humano minimamente credível, mas sim uma ferramenta narrativa e estilística. Essa é, na verdade, uma descrição que não se restringe apenas à personagem de Fonda, mas sim a todo o elenco de A Juventude. Ela, como completa marioneta de Sorrentino, entra no filme, pega fogo à narrativa e sai, como uma total diva, completo com um dramático colocar dos seus óculos-de-sol.

 Fonda oferece um trabalho gritado na pele de Brenda Morel. É uma prestação que não tem sequer uma sugestão de subtileza, mas tem energia de sobra, o que também tem valor. Apesar do seu catastrófico diálogo e grotesca caracterização, Fonda oferece ao filme de Sorrentino uma intensidade proveniente do seu inegável poder de estrela. Ela é carismática e explosiva, grosseira e agressiva em todos os segundos que está no filme, e uma presença cheia de peculiar vitalidade. De um modo geral, apesar de estar terrivelmente escrita, a cena entre Keitel e Fonda é um tremendo sucesso, injetando uma necessária fogosidade no filme, e isso depende bastante do modo não modulado como a atriz cria esta diva. No final do diálogo, acabamos por concordar com ela, apesar da sua agressividade, e esta seria uma formidável, se monumentalmente problemática, participação, não fosse o facto de Sorrentino incluir no filme mais dois momentos com a atriz.



 Para quem não quiser ler spoilers do enredo de A Juventude, por favor pare de ler agora.
Os dois momentos de Jane Fonda depois desse infame diálogo com Keitel são breves, mas imensamente importantes para a generalidade do filme. Primeiro, voltamos a ver Brenda durante uma alucinatória cena em que Mick vê o que parece ser a totalidade das protagonistas dos seus filmes.


 Sinceramente, penso que é nesta breve cena que Fonda justifica os prémios com que tem sido recentemente agraciada. Há algo de intensamente rancoroso no seu olhar venenoso que transcende qualquer pueril texto que Sorrentino impõe aos seus atores. Infelizmente, o segundo momento de Fonda a seguir à sua confrontação com Keitel, não pede apenas à atriz que olhe ameaçadoramente para outro ator. Depois de  Mick se ter suicidado, vemos Brenda em completa histeria dentro de um avião, a pedir o perdão do seu realizador que ela ajudou a levar ao píncaro do desespero. Qualquer dignidade que a atriz conseguiu conjurar nas suas aparições anteriores se desvanece nestes terríveis momentos. Brenda é apresentada como uma harpia ensandecida com a sua peruca a cair e a sua face contorcida numa máscara de demoníaco desespero.

 Depois de ter aparentemente saído vitoriosa da sua confrontação com o realizador, esta diva é completamente exposta como uma cruel força de orgulho e destruição. Ela torna-se um símbolo de todas as supostas injustiças que deitaram abaixo a personagem de Harvey Keitel, e é consequentemente despida de quaisquer pretensões de ser mais que um simples arquétipo de monstruosidade feminina que Sorrentino decidiu colocar no seu problemático filme.

 Eu gostava de poder dizer que Fonda se eleva acima do ambicioso e terrível A Juventude, mas isso não é verdade. Mas, apesar de tudo isto, adoraria ver Jane Fonda de volta aos Óscares como uma nomeada, depois de ter alcançado a sua última nomeação em 1986 pelo seu trabalho em The Morning Afteruma prestação de semelhante intensidade e histeria. Neste momento, a nomeação de Fonda não é algo seguro, mas decerto que a nomeação aos Globos de Ouro ajudou. Por muitos que sejam os meus problemas em relação à personagem de Brenda Morel, e à prestação de Fonda, uma coisa é certa, depois de a vermos na sua incendiária confrontação com Harvey Keitel, é difícil nos esquecermos dela e da sua presença de absoluta estrela de cinema.




*A prestação mais curta a alguma vez ganhar um Óscar foi a de Judi Dench em Shakespeare in Love, mas Straight veio primeiro e, apesar de ter mais tempo de ecrã, tem ainda menos cenas que as três ocasiões em que Dench agracia o seu filme.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

YOUTH (2015) de Paolo Sorrentino


A Juventude Youth Sorrentino Michael Caine

 Em 2013 parecia que a crítica internacional, pelo menos a online, se tinha dividido em duas fações no que dizia respeito ao muito celebrado filme de Paolo Sorrentino, A Grande Beleza. Havia quem proclamasse a obra como uma das melhores do ano cinemático, enquanto outros a acusavam de ser um exercício em vazia opulência e superficialidade pueril. Eu, apesar de ainda não estar a escrever sobre cinema nesse ano, fazia parte da ideologia primeiro referida. Nesse filme, como na maior parte da sua filmografia, Sorrentino usava um estilo exuberante, bastante derivativo de Fellini, como instrumento para a criação de um mundo de superfícies tão belas como bizarras. O génio do autor italiano estava precisamente no vazio da suas visões, cuja falta de conteúdo humano era o próprio sujeito dos seus filmes. Em A Grande Beleza, a beleza é vazia e espetacular, e apenas no momento final somos confrontados com a totalidade de nada que se esconde por detrás de tal fachada, num momento de pulsante humanidade. Em Il Divo, Sorrentino usou a estrutura do filme biográfico para tornar um dos mais infames políticos italianos numa gárgula monstruosa, e tornar lenda grotesca as maquinações governamentais e criminosas da sua nação. Em Consequências do Amor, A beleza era como que atirada para os olhos da audiência como modo de salientar a solidão e desconexão absoluta na vida do seu protagonista, ao mesmo tempo que o realizador olhava com pena e acídico humor o enredo humano.

 Em A Juventude, o seu mais recente filme, Sorrentino volta a usar o seu característico estilo mas, infelizmente, o autor parece ter substituído o vazio superficial por uma tentativa de filosofia humana. O resultado final é, talvez, o maior desastre na carreira de um realizador que eu tinha vindo a adorar nos últimos anos.

 Depois de ter homenageado La Dolce Vita com A Grande Beleza, Sorrentino parece ter-se inspirado noutra das obras-primas de Federico Fellini para A Juventude, neste caso 8 ½. Neste novo filme, observamos a vida de Fred Ballinger (Michael Caine), um compositor inglês, enquanto este está recluso numa estância de luxo, na companhia do seu amigo Mick Boyle (Harvey Keitel), um realizador americano que está a desenvolver aquele que será o seu filme testamento, e ocasionalmente pela sua filha e assistente pessoal, Lena (Rachel Weisz). A juntar-se a este trio está uma coleção de outras figuras, muitas delas bizarras.

 Apesar do elenco estar repleto de sonantes nomes, e das personagens apresentarem-se como um vasto leque de excêntricas criações, como um ator tragicamente sério interpretado por Paul Dano, é na perspetiva dos dois amigos idosos que o filme se apoia. Convém dizer, há nessa perspetiva um absoluto elitismo, especialmente no modo como estas privilegiadas personagens olham e encaram o mundo à sua volta e seus humanos.

 Este referido elitismo é ainda mais forte e inescapável na abordagem de Sorrentino. O elitismo e superioridade deste autor não se trata apenas de uma manifestação de privilégio social, ou conhecimento artístico, pois no modo como Sorrentino fetichiza os corpos desnudos, envelhecidos e decadentes ou luminosos com a flor da juventude, há algo de desconfortável, senão eticamente dúbio.

 Por muito que esta observação autoral me irrite e destrua a experiência do filme, talvez o maior problema não seja o trabalho de realização, mas sim o horrendo argumento, uma verdadeira montanha de clichés mascarados de profundos pensamentos filosóficos. Tirando os dois protagonistas, o desfile de personagens bizarras nunca contém sombra de humanidade. Sorrentino quer fazer grandes reflexões sobre a vida, o amor, o envelhecimento, etc., mas parece preferir olhar com desejo, escárnio ou curiosidade juvenil as suas belas marionetas de carne e osso, do que se confrontar com qualquer complexidade humana que não corresponda ao seu mundo de superfícies extravagantes e emoções gritadas que pintam o filme como grossas pinceladas em tons ácidos e puramente artificiais. Tenho de honestamente admitir que, aquando do meu visionamento de A Juventude, quase tive pena do elenco que tem de se debater com tal monstruosidade textual, especialmente Michael Caine que, mesmo assim, é quem se demonstra como uma das poucas salva-graças de A Juventude.

 Fred Ballinger como interpretado por Caine não difere muito do usual modelo de protagonista dos filmes de Sorrentino. Jep Gambardella e Titta di Girolamo poderiam ter acabado por viver a sua velhice numa posição semelhante à deste compositor, mas há algo de indubitavelmente distinto na abordagem do veterano inglês. Caine consegue encontrar alguma emoção genuína no artifício sufocante de A Juventude, sendo o único membro do elenco que realmente encontra alguma réstia de humanidade nas marionetas de Sorrentino, algo essencial para que o filme tenha esperança de funcionar.

 Neste vazio de artifícios e pirotécnicas estilísticas, o restante elenco está completamente perdido. Harvey Keitel é bastante sólido, mas os desenvolvimentos tardios da sua personagem são completamente repentinos e nunca justificados no trabalho do ator. Weisz tem um monólogo cortante, mas rapidamente se torna num adereço vivo ao estilo do pseudo-Maradona que se passeia pelos cenários como um símbolo de decadência depressiva e glórias passadas, ou mesmo a Miss Universo que parece uma revista da Playboy que ganhou vida para atormentar os homens que a observam. Paul Dano perde-se por completo nas reviravoltas deste circo cinemático e Jane Fonda, muito admirada pela sua minúscula presença no filme, é uma explosão de enfurecida energia, onde, no entanto, qualquer sombra de complexidade, nuance ou subtileza foi completamente obliterada.

 Em contrapartida, os visuais, como seria de esperar, sendo este um filme de Sorrentino, são maravilhosamente concebidos como um espetáculo absoluto de visões ousadas e pitorescas. No entanto, é a sonoridade de A Juventude que realmente se mostra como a absoluta joia da coroa deste filme e sua luminosa salvação. A climática canção, Simple Song #3, é particularmente extasiante na sua gloriosa intensidade, simplicidade, e carga emocional. No seu clímax, o filme é glorioso e um dos melhores de 2015. É só pena o resto do filme que antecede estes derradeiros momentos.

 Uma sedutora mistura de epicúria e primor técnico fazem de qualquer obra de Sorrentino uma criação essencial, mas, ao fugir à abjeta superficialidade inteligentemente vazia que tem caracterizado o seu trabalho e tentando criar um filme cheio de sabedoria e filosofia barata, o realizador trai-se a si mesmo e constrói um dos seus piores filmes. Sorrentino parece propor-se a dissecar uma cultura obcecada com a juventude, a superficialidade, a glória passada, o vazio, mas o seu olhar é demasiado caracterizado por tudo isto para poder fazer algo mais do que simplesmente se deixa cair na indulgência dos seus próprios vícios. É triste, pois A Juventude contém em si o inequívoco potencial para ser algo infinitamente superior, que, infelizmente, nunca se materializa por completo na final construção do filme.


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Oscar Hopefuls, Kate Winslet em STEVE JOBS

Kate Winslet Steve Jobs

 Depois de ganhar o Óscar de Melhor Atriz por The Reader, Kate Winslet parece ter passado de espírito livre e energético do cinema de língua inglesa para uma perpétua figura de entediante respeitabilidade. O seu trabalho em Mildred Pierce de Todd Haynes foi justamente galardoado com uma vasta coleção de honras, mas, para muitos dos seus fãs, estes últimos anos têm sido uma prova de fogo para quem antes era devoto admirador do trabalho da atriz.

 Essa fase de aborrecido e inerte prestígio parece estar a acabar com 2015 a ser um ano de destaque na filmografia da atriz. Winslet não só participa no popular, mas horrendo, Insurgent, como também volta a protagonizar uma comédia idiossincrática em The Dressmaker e parece estar perfeitamente posicionada para arrecadar mais uma nomeação aos Óscares pelo seu trabalho em Steve Jobs. É exatamente sobre o seu trabalho nesse último filme que eu gostaria de falar.

 Quem tiver lido a minha crítica do filme biográfico escrito por Aaron Sorkin, certamente já saberá que eu não tive a mais calorosa reação para com Steve Jobs. Apesar disso, admito que, como um exercício de atores, o filme é um sólido triunfo, e que, entre os variados intérpretes, é o trabalho de Kate Winslet aquele que mais se destaca pela positiva.

 A atriz inglesa interpreta Joanna Hoffman, fiel companheira profissional de Steve Jobs, encarregue do marketing e de origens polacas e arménias. Essa herança europeia é de particular destaque no trabalho de Winslet, sendo que o sotaque de Hoffman é o grande ponto fraco na totalidade da interpretação. Ao longo dos três atos do filme, a dicção de Winslet vai-se alterando de um modo desajeitado. Num momento inicial do filme, quando a filha de Steve comenta o sotaque de Hoffman, a audiência é deixada na confusão completa, pois até aí Kate Winslet apenas insinuara uma normal maneira de falar à americana. Nos últimos dois atos do filme, especialmente no do meio, Winslet investe muito mais nesse suposto sotaque, criando algo que quase sugere a triste caricatura. É uma falha técnica que é facilmente ignorada, mas quando se revela é imensamente distrativa.

Ignorando esse pormenor, Winslet é uma presença essencial ao moderado sucesso do filme, sendo a melhor parceira de cena de Fassbender e funcionando quase como um veículo para Sorkin comunicar e espicaçar a sua versão de Jobs durante a narrativa do Steve Jobs. Há que não ter ilusões de falsa complexidade, pois, como está escrita, Hoffman é uma personagem mais mecanicamente funcional que humana e é o formidável trabalho da atriz que a torna na mais pulsante presença em toda a construção cinematográfica de Steve Jobs.

Kate Winslet Steve Jobs

Quer seja a apressadamente discutir com Fassbender ao longo de corredores ou a coordenar o espetáculo quase teatral que é a apresentação de um novo produto ao público, Winslet é uma explosão de eficiência e energia humana. Apesar dos problemas textuais e das limitações temporais, quando chegamos ao último ato, a Joanna de Winslet parece estar alterada, o peso dos anos reflete-se no seu modo de lidar com Jobs, no seu discurso e até no seu olhar.

De entre a totalidade do seu trabalho eu gostaria de mencionar dois momentos de espetacular sagacidade na interpretação de Winslet. O primeiro ocorre no segundo ato, quando Jobs revela o seu plano para forçar a Apple a o voltar a contratar. Aqui, há algo de majestoso no modo como Hoffman começa como uma irada inquisidora mas depressa começa a mostrar admiração no seu rosto. O sorriso matreiro de Winslet revela algo de fascinante sobre Hoffman, mostrando como a personagem é mais parecida com Jobs do que talvez queira admitir e de como está longe de ser a santa que as mais simplistas escolhas de Sorkin parecem sugerir.

O segundo momento passa-se na grande confrontação do terceiro ato, de onde deverá vir o Oscar clip da atriz. Quando Hoffman enfurecida começa a atirar papéis para o chão, há breves sombras de incerteza na sua postura, como se, por momentos, Joanna tivesse decidido, como uma atriz, reforçar o dramatismo das suas afirmações, mas depois começasse a duvidar da sua escolha interpretativa mesmo enquanto continua a declamar as suas falas.

Num filme que decorre em palcos e bastidores, Winslet torna Joanan em atriz, encenadora, produtora, assistente e contrarregra dos acontecimentos à sua volta. Steve Jobs pode ser a estrela deste filme, mas sem a presença da Joanna Hoffman de Winslet todo o edifício cinematográfico cairia por terra. Esta não será das mais reveladoras interpretações de Winslet mas é das mais inteligentes e das mais necessárias dentro do seu filme.

Kate Winslet Steve Jobs

A nomeação para Melhor Atriz Secundária parece estar, de momento, garantida e, mesmo que eu não a inclua na minha lista no final do ano, penso que será uma apropriada indicação ao Óscar, assim como uma justa celebração do regresso de Kate Winslet ao tipo de energético trabalho que tanto tem enfeitiçado os seus mais devotos fãs.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

STEVE JOBS (2015) de Danny Boyle

Steve Jobs Michael Fassbender

 É difícil refletir sobre Steve Jobs, o mais recente filme de Danny Boyle, sem irremediavelmente cair numa comparação com The Social Network. Ambos os filmes partilham o mesmo argumentista e, ao contrário do filme de David Fincher, Steve Jobs é uma obra totalmente dependente da voz autoral de Aaron Sorkin. E é nesse completo domínio que Sorkin tem sobre o filme que esta obra se depara com os seus mais colossais problemas.

  No entanto, há que elogiar Aaron Sorkin pela generalidade do seu guião. A estrutura de Steve Jobs é uma obra de ostentosa genialidade, construindo um retrato do lendário fundador da Apple em volta de três longas sequências, todas elas focadas nos minutos que antecedem a apresentação pública de um novo produto. Primeiro o Macintosh em 1984, depois o Next em 1988, aquando da separação de Jobs da Apple, e finalmente o do iMac em 1999. Ao longo deste drama de bastidores, duas correntes narrativas parecem desenhar os contornos da visão de Sorkin sobre Jobs. A arrogância megalómana do protagonista em relação aos vários colaboradores que, de algum modo, o menosprezam ou duvidam da sua visão, e a relação de Jobs com a sua filha Lisa.

  A acompanhar esta brilhante estrutura, cuja teatralidade é apenas exacerbada pela constante presença de palcos e bastidores, está uma coleção das mais reconhecíveis características da obra de Sorkin enquanto argumentista de cinema. Longos diálogos floreados, cheios de humor inteligente, e irritantemente cientes da sua própria espetacularidade; discursos feitos pelo protagonista masculino que demonstram e defendem a sua superioridade; e um toque de perversivo conservadorismo moral que depressa cai em melodrama sentimentalista. Estas características não são necessariamente defeitos, mas sem um realizador que esteja disposto a moldar e catalisar o texto de Sorkin, Steve Jobs acaba por se tornar um exemplo perfeito das maiores problemáticas no estilo usual dos textos deste célebre autor.

  A narrativa do filme propõe-se a retratar e a criticar a lendária figura de Steve Jobs, concretizando uma visão que tanto disseca a humanidade imperfeita do homem como a sua genialidade, mas Steve Jobs não tem uma ponta da sofisticação e complexidade que The Social Network conseguiu alcançar. Como um filme, Steve Jobs comete o mesmo erro fulcral do seu protagonista, que é o de veementemente acreditar na sua grandiosidade e importância, negando qualquer outro tipo de visão contraditória. Não estou a dizer que Jobs não foi um génio, mas o que vemos neste filme, apesar de uma estrutura invulgar, é o mesmo tipo de retrato superficial e vazio que tantos outros filmes biográficos apresentam. Sorkin nunca desvia o seu retrato de uma visão limitada do arquétipo do génio arrogante e incompreendido, forçando a sentimentalidade da narrativa paternal como modo de humanizar, como que por uma formula, a sua figura central. Sorkin cria mais uma narrativa do anti-herói popular na ficção contemporânea, e imensamente vazia, apesar de ilusoriamente sugerir alguma complexidade.

 Apesar do que tenho afirmado, Danny Boyle tenta acrescentar algo de cinemático ao texto de Sorkin, conseguindo nunca perder a energia ao mesmo tempo que demonstra algumas ideias formais com interesse. O uso da música e da fotografia para diferenciar os três atos da narrativa é de particular genialidade, mas, como no resto do filme, apenas a superfície consegue alcançar algo de genuinamente louvável. Flashbacks, montagens de transição e ridículas projeções, demonstram a usual indisciplina do realizador, que nunca parece muito interessado em juntar-se a Sorkin na dissecação das suas personagens, estando contente com a simples ilustração. Para ser mais claro, volto a lembrar The Social Network, em que a frieza, distância e sofisticação de David Fincher mitigaram os maiores problemas do estilo de Sorkin. Fincher evitou o melodrama e chegou à melancolia de ares subtilmente trágicos, pegou no diálogo e mecanizou-o, retirando a teatralidade inerente nos discursos grandiosos, e acrescentou ainda mais complexidade à narrativa ao abordar todos os acontecimentos com uma surpreendente frieza, que contrapunha as noções de importância pessoal das suas arrogantes personagens.

 Mas isto não é um texto de celebração do trabalho de David Fincher, mas sim uma análise de Steve Jobs e, por muito que o filme seja problemático como uma narrativa, ou como um estudo de personagem, na condição de exercício para os seus atores, Steve Jobs é um triunfo. Kate Winslet é o claro elo mais forte do elenco, apesar de um inconsistente sotaque, mas todos estão de parabéns, sendo que Seth Rogen e Jeff Daniels não eram tão impressionantes há anos. A única interpretação que provoca algum desapontamento é, curiosamente, a de Michael Fassbender. A sua presença é de um carisma supremo e os seus diálogos de uma precisão admirável, não fosse ele um dos melhores atores do cinema atual, mas, no final, a sua interpretação é tão prisioneira da superficialidade do guião como o resto do filme. Jobs nunca me pareceu ser um ser humano, ou uma personagem complexa, mas sim um arquétipo sem subtilezas, sendo que nem mesmo o ator consegue esconder quão forçados no filme são os últimos momentos entre Jobs e sua filha.

  Numa cena, Steve Jobs explica a Lisa o significado da palavra anomalia e eu recordei-me de outro filme deste ano em que um protagonista semelhante teve de explicar o mesmo a outra mulher chamada Lisa. Tal como em Anomalisa, a incapacidade do protagonista se relacionar normalmente com os seres humanos à sua volta é um foco do filme, e tal como nessa obra de Charlie Kaufman, Steve Jobs peca pelo modo como cai na arrogância e noção se superioridade da sua figura central. Ambos os filmes almejam a uma complexidade humana que nunca conseguem alcançar, ambos se revelando como primorosos exercícios técnicos, cheios de aspetos louváveis e performances pulsantes, mas onde por detrás da respeitável e grandiosa superfície apenas existe um triste vazio de ideias e nuance.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

LEFFEST'15, Post Mortem


 Apesar da inatividade deste blog nas últimas semanas, consegui ir escrevendo a cobertura do LEFFEST'15, apenas não o fiz totalmente neste site. Se desejarem ler as minhas opiniões sobre grande parte dos títulos a serem exibidos na edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival, deixo-vos aqui links para alguns dos meus artigos na Magazine HD, assim como para o que já aqui tinha publicado. No total, vi 26 filmes, sendo que ainda não escrevi sobre alguns deles, nomeadamente aqueles que vi como parte das Homenagens e Retrospetivas, mas talvez ainda o consiga fazer este mês.



11 Minut de Jerzy Skolimowski
"11 Minut, é um impressionante feito técnico, mas, tirando os seus sons e visuais, tem pouco para oferecer que não seja um risível e forçado dramatismo."


45 Years de Andrew Haigh
" (...)É especialmente nesses silêncios e subtilezas que existe o génio e humanidade dolorosa de 45 Years, que, nos seus derradeiros momentos, nos oferece um dos finais mais emocionalmente esmagadores no cinema de 2015."

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ROOM (2015) de Lenny Abrahamson


 As miraculosas interpretações de Brie Larson e Jacob Tremblay fazem de Room um dos filmes mais comoventes de 2015, assim como um dos mais indispensáveis para quem esteja interessado na corrida aos Óscares.




 Room, uma adaptação de um romance de Emma Donoghue dirigida por Lenny Abrahamson, relata a história de uma mãe e filho que, depois de anos aprisionados num quarto, são confrontados com a sua liberdade, que está longe de ser um idílico e romantizado desfecho para o seu tormento. Toda a narrativa se desenrola a partir da perspetiva de Jack (Jacob Tremblay), uma criança de 5 anos que, no início do filme, nunca viu nada do mundo que se estende para além da sua prisão, sendo que inicialmente nem consegue acreditar que tal exterior possa existir. Longe de limitar prejudicialmente o impacto ou complexidade do filme, esta insistência na perspetiva infantil confere à obra uma dimensão trágica onde, mesmo assim, ainda há espaço para alguma esperança e luminosa humanidade.

 Joy (Brie Larson) é a mais fascinante presença em Room, sendo vista unicamente a partir dos olhos de seu filho que muito não conseguem compreender devido à sua ingénua inocência. Isto torna a observação da protagonista maternal num jogo de perceção com a audiência que, mais do que o seu jovem protagonista, consegue ir-se apercebendo de quão estilhaçada pelo seu trauma está a personagem de Brie Larson. Um voz-off constante de Jack vai contribuindo para este gentil retrato dos dois protagonistas, caindo, por vezes, num sentimentalismo desnecessariamente evidenciado tanto pelo texto como pela irritante e melodramática banda-sonora.

 É o seu elenco que permite a Room ser uma obra de glorioso sentimentalismo que, na sua generalidade, consegue evitar o melodrama forçoso sugerido por alguns dos seus elementos. Trembley, com apenas oito anos, cria um dos mais avassaladores retratos do ano, e Larson oferece aqui o melhor esforço da sua jovem, mas ilustre, carreira, sombreando a sua interpretação com momentos de abrasiva frustração, fúria e desespero. O restante elenco é igualmente formidável apesar dos seus limitados papéis, com especial menção para Joan Allen como a mãe de Joy, que em breves momentos consegue estabelecer uma presença tão complicada e multifacetada como a de Larson.

 Infelizmente nem todo o filme prima pela sua complexidade e surpreendente eficácia, sendo que a, já mencionada, banda-sonora é um imparável desastre. Em vários momentos, a música apenas acaba por revelar quão emocionalmente manipulador todo o exercício cinematográfico está a ser, traindo, de certo modo, os esforços do seu elenco e mesmo do ocasionalmente problemático texto. O último plano do filme, por exemplo, perde todo o seu poder emocional devido a um acompanhamento musical demasiado insistente na manipulação chorosa das emoções da sua audiência, quando a simples imagem dos dois protagonistas a se afastarem do quarto titular pela derradeira vez seria suficiente.

 Isto é tão culpa de Stephen Rennicks, o compositor do filme, como de Abrahamson que, especialmente no que diz respeito aos sons, tem uma tendência para o convencionalismo simplista que apenas prejudica a experiência total do filme. No entanto, há que admitir que o realizador tem uma surpreendente capacidade de moldar o espaço com a sua câmara, nunca permitindo que a primeira metade do filme desabe num registo teatral, apesar do seu confinado espaço. A sequência de fuga também revela um bom domínio de Abrahamson no que diz respeito à criação de tensão e adrenalina, não esquecendo o seu foco humano, não fosse Room essencialmente um espetacular exercício de atuação e perseverança humana.

 Room é o único filme norte-americano em competição no LEFFEST’15, e mesmo que não arrecade qualquer prémio na cerimónia de Encerramento do festival, o seu lugar na corrida aos Óscares parece estar cimentado. Brie Larson, em particular, tem vindo a revelar-se como a inicial favorita para o galardão de Melhor Atriz. No entanto, Trembley será tão merecedor de tais honras como a sua coprotagonista, sendo que o jovem ator oferece às suas audiências uma das mais formidáveis interpretações infantis das últimas décadas de cinema. O filme como um todo tem alguns problemas, há que dizer, mas é uma inegável experiência de emoções arrebatadoras, que consegue ser tocante mesmo quando a manipulação emocional é grosseiramente óbvia.


domingo, 8 de novembro de 2015

ANOMALISA (2015) de Charlie Kaufman e Duke Johnson

Já vamos no terceiro dia do LEFFEST ’15 mas acho que vale a pena relembrar o filme de abertura. Anomalisa é o primeiro filme de animação de Charlie Kaufman, sendo que Duke Johnson também assina a obra. Apesar de grandes reservas que tenho em relação ao filme, Anomalisa é uma das experiências essenciais deste ano.


 Durante os créditos finais de Anomalisa, a mais recente obra de Charlie Kaufman e o seu primeiro esforço no cinema de animação, chegamos a uma porção em que se listam os nomes dos vários contribuidores que, a partir do Kickstarter, financiaram o filme. Os nomes destes adoradores de Kaufman são de um imenso número, sendo irrevogavelmente mais numerosos que os nomes da própria equipa de produção do filme. Enquanto somos expostos a esta parede de texto, uma cacofonia de vozes assalta os nossos ouvidos. Todas as vozes são, contudo, do mesmo ator (Tom Noonan) no que é um dos marcos estilísticos do filme. Durante Anomalisa, Kaufman tece uma tragédia humana à volta da incapacidade de um homem se relacionar com o resto do mundo, que ele vê como uma multiplicidade infinita da mesma cara e voz. Muitas vezes, ao longo da história, várias pessoas proclamam o seu amor pelo protagonista e neste momento que referi dos créditos, há algo de inequivocamente inseparável entre o protagonista de Anomalisa e o próprio Kaufman. O autor, com o amor e adoração de uma imensidão de fãs criou aqui uma obra de insular indulgência, onde nos pede a pena lacrimosa e a simpatia, ao mesmo tempo que ignora o resto do mundo que não a sua individual psique e frustrações.

 Isto está longe de ser uma novidade no trabalho de Kaufman. Praticamente todos os filmes escritos por este autor têm como protagonista um homem bem-sucedido, branco, heterossexual e solitário que demonstra problemas em se relacionar com a realidade à sua volta. E, nesses filmes passados, nunca tive um problema com a limitada perspetiva da sua visão e das suas preocupações mas penso que isso se deveu maioritariamente a uma dose de humor, surrealismo e criatividade que fazem dos seus filmes obras tão fascinantes. Em Anomalisa a criatividade regista-se, nem que seja a um nível de simples técnica, o surrealismo marca presença, mas praticamente nada se vê do humor que tanto caracteriza o usual trabalho do autor. Em Sinédoque Nova Iorque, a obra-prima máxima da sua voz autoral, havia uma completa aceitação do ridículo e das limitações do seu protagonista, e era a partir desse lado mais sardónico e irónico que o filme encontrava a humanidade pulsante que tanto o caracterizou, como que emergindo do ridículo do indivíduo. Anomalisa tem pouco tempo para tais levezas, sendo um filme caracterizado por uma colossal sinceridade e seriedade, de tal forma que parece forçar a sua tragédia humana na audiência, ao invés de a deixar emergir do ridículo, do espetacular e do surreal.

 Com isto não quero afirmar que a sinceridade nunca resulta neste filme. De facto, Anomalisa obtém os seus mais gloriosos momentos durante uma prolongada sequência em que Michael Stone (David Thewlis), o protagonista, leva uma sua fã para o quarto de hotel em que habita por uma noite e acaba por dormir com ela. A fã chama-se Lisa e apresenta uma face e voz distintas da restante população. A sua voz é a de Jennifer Jason Leigh que nesta alma entristecida encontra um dos melhores papéis da sua carreira recente. Quando Kaufman e Duke Johnson, o co-realizador, observam estes dois humanos, uma mulher que não espera o reconhecimento, apreciação ou simpatia do mundo e um homem que não consegue evitar recusar tais simpatias à humanidade, há algo de mágico na intimidade conjurada. Aqui sim, a sinceridade e seriedade resulta, mas, infelizmente, o filme não é apenas uma curta-metragem sobre esta delicada sedução e consumação, mas sim uma prolongada experiência da hubris de um autor em aparente crise de meia-idade.

 Por muito que me seja difícil engolir a narrativa, a técnica demonstrada na execução deste filme é estrondosa. Utilizando impressões em 3D, Kaufman e Johnson constroem um mundo de figuras tão artificiais quanto humanas. Os corpos são realistas, assim como a expressão, mas as faces apresentam as marcas da união das várias componentes da marioneta, e as próprias proporções parecem, ocasionalmente, sugerir algo de irremediavelmente desumano nas pessoas que povoam o mundo de Anomalisa. E não é só a animação das figuras humanas a primar, sendo que os cenários, a música, o som e a belíssima fotografia também demonstram uma impressionante construção formal. No entanto, toda esta virtuosidade tem o deliberado efeito de provocar uma enorme alienação entre as audiências e o drama humano que Kaufman quer espremer do seu protagonista, pelo que longe do filme ser uma experiencia de comovente humanidade, há algo de controlado e frio exercício estilístico durante toda a experiência.

 Com tudo isto dito, tenho de admitir que, apesar dos seus numerosos defeitos e problemas, Anomalisa é uma das obras essenciais de 2015. Charlie Kaufman é uma voz imperdível no panorama do cinema contemporâneo, mesmo quando se mostra indulgente consigo mesmo e estranhamente sério, e com esta sua primeira obra de animação, o autor demonstra uma formidável nova possibilidade para o mundo da animação stop-motion.  Anomalisa está longe de ser dos melhores filmes de Kaufman mas, na sua delicada passagem central entre dois solitários humanos, há algo de efemeramente humano e intenso e de uma beleza rara e fugaz tanto na totalidade do filme como no cinema americano atual.

sábado, 7 de novembro de 2015

MIA MADRE (2015) de Nanni Moretti

 O LEFFEST ’15 teve o seu início ontem. Como filme de abertura em Lisboa, foi Anomalisa de Charlie Kaufman o filme selecionado, mas, numa sessão especial, foi primeiro exibido o novo filme de Nanni Moretti. Mia Madre já passou por Cannes, e outros festivais, tendo já arrecadado alguns galardões, entre eles o prémio do Júri Ecumérico de Cannes.


 Para um realizador que por duas vezes ganhou a honra máxima do festival de cinema mais importante do mundo, Nanni Moretti é, para mim, uma figura um tanto ou quanto estranha se não sobrevalorizada. Tenho sempre a expetativa que com um dos seus novos filmes eu vá perceber esta admiração generalizada que o mundo tem pelo seu trabalho, mas sempre me acontece o mesmo. Apesar de Mia Madre estar longe de ser o pior filme que já vi de Moretti, é, mesmo assim, mais um desapontamento para mim, que espero um dia conseguir compreender o resto da massa crítica que venera este autor italiano.

 O filme vai buscar a sua história a inspirações reais da vida do realizador, não fosse a protagonista do filme, Margherita (Margherita Buy), uma realizadora de cinema. Quando filmava Habemus Papam, Moretti foi confrontado com o definhar e morte da sua mãe, e aqui também Margherita se depara com o fim da sua matriarca aquando das difíceis filmagens de um novo filme. Acrescentamos a isto uma relação tempestuosa entre a realizadora e Barry Huggins (John Turturo), uma estrela de Hollywood envolvida neste novo filme, e uma boa dose de sonhos da protagonista e temos o esqueleto narrativo de Mia Madre.

 Muitos têm proclamado este filme como uma das obras mais comoventes do ano, e tenho de admitir que é difícil negar as emoções suscitadas pelo filme nos seus melhores momentos. Isto deve-se tanto a um guião de carácter extremamente pessoal, assim como a uma coleção de exímias interpretações, nomeadamente as de Margherita Buy e Giulia Lazzarini como a mãe da realizadora. Buy tem alguma tendência em cair nas mais melodramáticas tendências do texto, mas ao mesmo tempo mostra uma refrescante vulnerabilidade, para além de ser o único intérprete no filme que consegue pôr a funcionar o humor forçado de Moretti. Mas é Lazzarini a chave do filme, com um papel tão humano como simbólico a atriz é impressionante no modo como conjura uma visão de uma mulher inteligente e independente a progressivamente perder o controlo de seu corpo, mente e existência. As cenas entre as duas atrizes são as melhores do filme e graças ao seu trabalho, quando a perda final ocorre, é difícil não nos deixarmos levar pelo sofrimento que pulsa do ecrã.

 Infelizmente, o filme não é apenas um comovente, se simples, retrato do definhar de uma mulher e sua relação com seus filhos, sendo que Moretti interpreta o irmão de Margherita num gesto que parece indicar algo de expiação cinemática. O realizador, como me parece ser usual na sua filmografia, tenta injetar uma leveza humorística em contraste com a tragédia humana e, como tem sido usual no seu trabalho, a comédia é da mais forçada e irritante que se encontra no panorama do cinema de autor contemporâneo. Eu percebo que é suposto que Turturo seja insuportável como Huggins, mas há um exagero imensamente grotesco na sua presença que longe de expor um ator caprichoso, apenas nos revela um ator mal dirigido por um realizador à procura de um humor fácil e francamente estúpido. Mesmo os momentos cómicos que não giram à volta do deplorável trabalho de Turturo são, na sua maioria, intragáveis, corroendo mesmo os momentos mais íntimos e bem construídos da história familiar.

 Outro elemento que me deixa muitas dúvidas é o uso insistente de sonhos de Margherita, simplesmente porque nunca me convenço pelo estilo de Moretti. O realizador, apesar da sua fama de autor consagrado, tem uma abordagem estilística que, por vezes, mais se assemelha a um filme televisivo. Planos médios e close-ups predominam, cenas bem iluminadas e com ar de polida eficiência são a norma, e as composições são sempre o mais básico e desinteressante imaginável. Há algo nos filmes de Moretti que ultrapassa a mera austeridade, classicismo ou mesmo simplicidade cinemática, e que ameaça sempre sugerir uma certa displicência por parte do seu realizador.

 Apesar disso, quando Mia Madre funciona, nomeadamente nos seus momentos de maior sinceridade emocional, há algo de tocante na sua humanidade latente. Numa cena de jantar, a personagem de Moretti brinca que “a realizadora tem sempre razão”, o que, infelizmente, não poderia estar mais longe da verdade quando somos confrontados com Mia Madre. Neste filme a delicadeza emocional é fruto do trabalho do elenco e de um texto de Moretti que, ocasionalmente, consegue encontrar transcendência humana na sua simples sinceridade emocional.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

LEGEND (2015) de Brian Helgeland


 2015 não tem sido um ano particularmente bom para filmes sobre gangsters. Depois da desastrosa falta de criatividade ou energia de Black Mass, Lendas do Crime invade os cinemas com mais aborrecidos convencionalismos e uma história que, apesar de sugerir algo de substancial e interessante, apenas consegue ocasionalmente fugir ao seu geral tédio.

 O filme conta a história dos irmãos Kray, Ronnie e Reggie, um par de irmãos gémeos que se tornaram figuras lendárias do mundo do crime inglês durante o seu domínio de Londres na década de 60. Ao invés de se iniciar com a sua ascensão, o filme tem a mercê de nos poupar tais clichés narrativos e tem o seu início aquando do encontro de Reggie com aquela que viria a ser a sua mulher, Frances. É ela, aliás quem narra o filme em voz-off, indo desde as suas primeiras impressões do charmoso gangster até ao final declínio dos dois irmãos.

 A escolha de colocar Frances numa posição de destaque e protagonismo é algo de interessante e levemente subversivo, especialmente se contarmos com um toque de humor pós-moderno que se manifesta após o suicídio de uma das personagens. No entanto, a atriz que tem a responsabilidade de encarnar esta personagem é Emily Browning, uma das mais desinteressantes presenças no cinema britânica da última década e que nada faz no filme, senão apagar qualquer resquício de interesse e energia que pudesse existir nesta curiosa perspetiva feminina. Frances não é nenhuma Karen Hill, por muito que o desinspirado guião Brian Helgeland nela insista.

 Mas, há que dizer, Lendas do Crime é principalmente uma showcase inigualável para Tom Hardy, e o ator, ao contrário da generalidade do restante elenco, está bastante apto a injetar uma dose de monumental energia explosiva neste vagaroso exercício de clichés aborrecidos. A interpretar os dois gémeos, Hardy tem a oportunidade de desenvolver, quase que excessivamente, os dois principais aspetos que têm demarcado a sua persona como estrela em ascensão. Em Reggie, o mais calmo dos irmãos, o ator encontra o perfeito veículo para o seu charme maroto que tem deliciado espetadores desde que o ator começou a ganhar alguma relevância, encontrando momentos ocasionais em que a frustração e violência têm tendência a sujar, de modo bastante deliberado, a imagem de sedutora estrela de cinema. Ronnie é um caso bastante diferente. Nesse gangster irrascível, com problemas mentais e abertamente homossexual, Hardy constrói uma mistura explosiva da sua característica agressividade e presença que tende a sugerir um animal enraivecido e imprevisível, quase que ameaçando a caricatura.

 Observar o espetáculo fogoso de Hardy é, no entanto, uma experiência em frustração e desapontamento, sendo que parecemos observar o ator a desesperadamente tentar revitalizar o cadáver do filme, sem grande sucesso. Lendas do Crime é um peso morto e em putrefação pestilenta e não há suficiente energia na presença dos protagonistas para ressuscitar a sua carcaça cinematográfica.

 Algo que irrevogavelmente contribui para o derradeiro fracasso da obra devém de uma considerável distanciação entre o olhar elegíaco de Helgeland dos seus célebres sujeitos. Ao atribuir a perspetiva do filme a Frances e encher a estrutura de Lendas do Crime de momentos exteriores aos irmãos, o realizador e argumentista parece ter criado um frio e aborrecido retrato dos irmãos em que os seus protagonistas pouco mais são que superfícies fascinantes e sem percetível interioridade. Isto não seria necessariamente mau, mas mesclado com uma forma completamente desinteressante e uma duração imensamente excessiva, todo o filme acaba por se tornar em algo maçador e desapontante no modo como é colossalmente previsível, mesmo pelos standards deste tipo de história verídica do mundo do crime.

 Apesar de estar sempre a sugerir violência e a pavonear insinuações de perversidades nos seus diálogos e voz-off, Lendas do Crime é um filme insultuosamente respeitável e comedido. Tudo é demasiado polido e coberto pela pátina da respeitabilidade convencional dos estúdios ingleses para realmente conseguir transmitir alguma da rude e grosseira energia das suas origens verídicas. Talvez no passado, na era dourada dos kitchen sink dramas, ou durante a explosão de barroquismos cinemáticos ingleses, Lendas do Crime pudesse ter brilhado com tal intensidade como a sua excessiva performance central. Infelizmente, tal não acontece, e somos deixados com um aborrecido filme, que nem chega a ser verdadeiramente mau, sendo ainda pior. Lendas do Crime é odiosamente medíocre e, mesmo com alguns momentos de glória consequentes do desenfreado esforço de Tom Hardy, é uma obra imensamente dispensável e esquecível.