domingo, 25 de janeiro de 2015

INTO THE WOODS (2014) de Rob Marshall



 Trazer obras teatrais para o cinema é sempre algo que traz consigo complicações e problemas de adaptação, e isto é, talvez, muito mais certo, quando olhamos para adaptações de musicais, que, na sua maioria, têm em si uma teatralidade inerente que se estende à sua própria estrutura. Não estou aqui a dizer que musicais são normalmente as mais arrojadas criações teatrais cuja linguagem é difícil de adaptar ao ecrã, mas o facto é, que muitos musicais, nomeadamente este, requerem, pelo seu texto base, o edifício e a estrutura teatral para realmente funcionarem, ou pelo menos os códigos da representação teatral que não se encontram aqui presentes em forma de filme.

 Stephen Sondheim, o ilustre criador de Into the Woods, é um autor particularmente difícil de adaptar, pelo menos pelo que indica os resultados das adaptações que têm sido feitas das suas obras. Há o seu uso de estruturas que se separam em atos distintos, de comédia negra, atores a falar diretamente para a audiência, comentário meta-textual de um narrador presente, números musicais de grupo que não respeitam quaisquer barreiras físicas que o enredo pareça indicar, mas que aproveitam a coletividade permitida pelo palco, etc.

 E acrescente-se a tudo isto, uma intenção satírica, que necessita de um toque leve e cómico e que parece, neste filme, ser quase que completamente devastado por uma seriedade e aura de tragédia melodramática que tanto parecem pertencer ao cinema de prestígio que se abate sobre as salas de cinema nesta altura do ano.

 Esta é uma obra de sátira musical que vai dissecando, explorando e levemente desconstruindo, ou tentando desconstruir, os clichés e fórmulas narrativas dos contos de fadas que tanto ocupam o imaginário infantil do mundo ocidental. O musical une, portanto, Rapunzel (Mackenzie Mauzy), a Cinderella (Anna Kendrick), a Jack (Daniel Huttlestone) com o seu feijoeiro, a capuchinho vermelho (Lilla Crawford), a uma bruxa (Meryl Streep) e até a um casal originalmente criado para esta obra, um padeiro (James Corden) e a sua esposa (Emily Blunt), que, apesar dos seus desejos, não conseguem ter filhos devido a uma maldição lhes imposta pela bruxa, após um roubo do pai do padeiro (Simon Russell Beale).

 Tal como a adaptação de Tim Burton de Sweeney Todd, esta adaptação parece perder a maioria da comédia presente no original. O que se revela particularmente preocupante quando unido a uma sanitização efetuada sobre o texto e que retiram algum do dramatismo e motivações que são essenciais para a segunda metade do musical. Metade esta que, já no texto original se parece revelar como um problemático e prolongado epílogo, e que aqui vai perdendo o rumo e o impacto quando se começa a cortar partes essenciais como a morte de Rapunzel. O reprise de Agony, o número final com todo o elenco, etc. Obtemos assim um filme que trocou o humor negro por drama comum e a violência temática por uma simplicidade fácil e irritantemente constante neste tipo de cinema, que parece tão interessado em audiências como em troféus dourados.

 E o realizador Rob Marshall certamente não ajuda nada com a sua realização, que transforma o filme num seguimento de números musicais completamente inconsistentes em tom e intenção, e que parecem estar sempre a testar as águas e ver até onde é que podem ir em termos de estilização e teatralidade. E esta inconsistência estende-se a quase todos os componentes do filme, especialmente o visual que oscila entre um realismo fantasioso e uma artificialidade flagrante, entre figurinos estilizados do século XVIII e zoot suits cobertos de pelo, entre bosques que parecem, não intencionalmente, revelar a sua falsidade cenográfica, e quartos cobertos de flores e raios de luz que parecem, intencionalmente e maravilhosamente, criados com a intenção de transferir para a fisicalidade tridimensional, a estética normalmente encontrada em versões animadas de contos de fadas.

 Junte-se a isto, um maravilhosamente competente elenco, em que praticamente todos os atores parecem perfeitamente confortáveis no registo musical, e uma banda-sonora que adapta de forma robusta e majestosa as melodias do original de palco, e temos um filme que varia entre a mediocridade aborrecida e o esplendor de cinema de entretenimento que, por vezes, se revela no filme.

 Agony, por exemplo, é um milagre de adaptação do humor satírico das letras de Sondheim, tornando o dueto entre os dois príncipes charmosos, uma competição de poses dramáticas e exaltações heroicas que fazem dos dois homens uma caricatura em movimento de todas essas capas de romances históricos em que vemos heróis românticos com a camisa aberta e ares de herói sofredor. O prólogo, também se revela como um triunfo do cinema musical, trazendo a difícil estruturação de Sondheim diretamente para o cinema, a partir de um soberbo elenco e de uma encenação surpreendentemente boa, da parte de Marshall, que nunca me impressionou muito, apesar do seu atual estatuto como o realizador de escolha para as adaptações musicais de Hollywood.

 Por outro lado, temos, por exemplo, Witch’s Lament que devido a cortes, adaptações narrativas e uma filmagem desinspirada, retira qualquer impacto que o número pudesse ter e, sinceramente, qualquer consistência à maioritariamente energética interpretação de Meryl Streep. Ou It Takes Two, filmado de modo estranho e errático e que parece desrespeitar quaisquer normas de montagem, e que confere ao cenário, a partir de uma incrivelmente mal escolhida iluminação, uma artificialidade quase risória, apesar de parecer querer insistir num realismo inapropriado no modo de filmar a cena. Até o devaneio visual em flashback que ocorre em I Know Things Now, salienta a inconsistência do filme, especialmente em termos de registo estilo.

 Um filme estilisticamente anárquico, indisciplinado e desenxabido, que apesar de tudo isto chega a grandes momentos e números musicais, principalmente devido ao elenco, o que não pode deixar de me desapontar, quando a equipa técnica inclui nomes como Dion Beebe e Colleen Atwood. Anna Kendrick como Cinderella e Chris Pine como o seu príncipe, são particularmente eficientes e prodigiosos na sua interpretação e modulação de estilo e registo, trazendo as suas personagens de contos de fada a uma modernidade satírica, tudo isto não sacrificando o seu impacto dramático, que existe, apesar do modo como estas personagens são intencionalmente arquétipos e superficialmente bidimensionais numa inicial inspeção. O resto do elenco também é bom, sendo que Daniel Huttlestone me surpreendeu com a maturidade com que interpretou Jack, sem esquecer a imaturidade inerente à juventude impetuosa do rapaz. Sreep, que é quem tem recebido maior admiração e respeito da crítica, também é bastante dinâmica na sua interpretação, trazendo uma estilização bem-vinda ao papel da bruxa, não deixando de imbuir os seus números musicais com a tristeza, raiva e energia necessárias para a sua bruxa, tudo isto com uma fantástica rendição das canções que apenas me traz tristeza quando penso nas poucas ocasiões em que esta atriz realmente aproveitou os seus talentos vocais.

 Apesar dos meus problemas com o filme, tenho que dizer que foi uma experiência agradável de cinema, é ao fim ao cabo, uma peça de entretenimento mais do que uma sátira musical, pelo menos nesta interpretação cinemática com aspirações a prestígio e a estatuetas de um careca despido e banhada em oiro.


sábado, 17 de janeiro de 2015

INTERSTELLAR (2014) de Christopher Nolan



 Haverá poucos realizadores no panorama do cinema contemporâneo que detenham tão grande culto e adoração como Christopher Nolan, pelo menos ao nível de popularidade generalizada com que este autor é presenteado, sempre que entrega mais uma das suas criações aos cinemas e às massas de adoradores que parecem querer sempre defender o seu trabalho, independentemente de qualquer problema que essa obra possa ter. Esta adoração geral é algo que sempre me incomodou na apreciação dos filmes do realizador. Se acreditarmos no que se lê e na opinião geral, este é um dos maiores autores do cinema de sempre e, sem dúvida, o mais importante autor de cinema mainstream contemporâneo, criando filmes cerebrais, negros e complexos, de um modo que poucos conseguiram alcançar, Acho que é fácil perceber, pelo tom das minhas palavras, que eu não partilho essa opinião geral, e que não sou, aliás, grande fã de Nolan.

 Apesar dessa falta de adoração quase religiosa da minha parte, é difícil não admirar a ambição técnica e temática desta última obra do realizador. Certamente não vou declarar este filme uma obra-prima, mas acho que existe imenso a admirar em Interstellar, sem esquecer, no entanto, que o filme está longe da perfeição e que, pelo menos na minha opinião, padece de muitos dos problemas que afetam as obras passadas de Nolan.

 O filme foca-se num antigo piloto da NASA, Cooper (Matthew McConaughey), a viver com os seus dois filhos num futuro em que a Terra parece estar a morrer. Todos vivem numa existência de miséria assente numa precária economia agrícola em que as colheitas vão morrendo, sendo que, a única que ainda resiste nesse planeta moribundo, é o milho. Este é um mundo que desistiu, e que apenas tenta sobreviver face à abjeta destruição da humanidade. Cooper partilha uma forte relação com a sua filha Murph (Mackenzie Foy, Jessica Chastain e Ellen Burstyn), que observa no seu quarto um estranho fenómeno que parece ter origens na manipulação da gravidade. A rapariga chama-lhe o seu fantasma, e um dia, graças a uma tempestade de pó, uma ocorrência comum neste árido planeta coberto de um inescapável resíduo, o antigo piloto encontra as coordenadas que o levam a uma base secreta onde uma equipa da NASA organiza uma missão de busca por um planeta onde a vida humana se possa desenvolver, tendo em conta que os dias do nosso planeta estariam contados.

 Na vaga esperança de salvar o planeta e a humanidade condenada que nele habita, Cooper deixa a sua família na Terra e parte numa perigosa missão de exploração e, caso a hipótese de levar as pessoas do planeta moribundo para essa nova casa, uma missão de colonização e repovoamento. Sempre na esperança de voltar para a sua família, Cooper é acompanhado por uma equipa composta, entre outros, por Brand (Anne Hathaway) uma cientista e exploradora, filha do professor Brand (Michael Caine), que permanece na Terra tentar encontrar uma solução para a transladação da população terrestre para outro planeta e que tem desenvolvido todo o projeto.

 Revelar mais sobre o filme seria um pouco traiçoeiro, para mim grande parte do prazer do filme provém da tensão que Nolan consegue ocasionalmente conjurar. Há que dizer que ocorrem visitas a outros planetas, várias cenas de diálogo e de tensão e uma avalanche de problemas que parecem amaldiçoar tanto a missão espacial como a população na Terra, entre muitos outros elementos do exponencialmente complicado enredo.

 Tal como a maioria dos filme com guião assinado por Christopher Nolan, obtemos aqui um filme cheio de diálogo expositivo, sendo os primeiros e os últimos 20 minutos do filme particularmente infetados com uma necessidade quase patológica de explicar tudo à audiência, por muito repetitivo ou redundante que o filme possa estar a ser. Não se diga nunca que Nolan é um guionista com capacidade de economia dramatúrgica. Isto leva-nos a um guião que explica ora demais ora menos do que deveria, sendo que o suposto realismo científico do filme, apenas traz mais problemas ao filme, criando buracos lógicos e científicos onde não haveria nenhuns se Nolan não estivesse tão empenhado em tudo explicar à sua audiência.

 E não é que o filme seja uma obra de intelectualismo científico ou filosofia complexa e profunda, por muito que a opinião pública queira indicar o contrário. Se há algo revelado neste filme acerca de Nolan é que, longe de ser um realizador cerebral ou intelectual, ele é um celebrado sentimentalista, resumindo um enredo que engloba o destino de toda a humanidade assim como conceitos de tempo e espaço longe de qualquer perceção usual dos mesmos, ao amor de um pai por uma filha e vice-versa. Todo o filme poderia ser resumido dizendo que o amor entre um pai e uma filha transcende tudo, espaço, tempo, tudo. O amor é a mais forte força da Natureza, etc. Longe de filosofias existenciais, não?

 Mas não usarei isso contra Nolan. Sentimentalismo não é necessariamente mau e acho que quando este filme se rende às emoções fortes sublinhadas tanto pelo fantástico trabalho de McConaughey, como de Foy ,como pela bombástica banda-sonora de Hans Zimmer que explode das colunas do cinema e varre audiência num ataque sonoro, vibrando todo o corpo da audiência juntamente com as suas emoções. Isto funciona muito melhor que a ciência e a exposição demasiado enfática. Oxalá todo o filme se mantivesse nesse registo entre a ópera espacial e o melodrama familiar entre galáxias. McConaughey é particularmente soberbo neste papel, sendo uma cena em que este visiona um vídeo após a visita ao primeiro planeta, o claro ponto alto do filme, para mim, quer seja pela absoluta confiança de Nolan no seu ator principal, quer seja pela simplicidade da cena que apenas realça a magistralidade de McConaughey que pode ter ganho um Óscar o ano passado por Dallas Buyers Club, mas que aqui oferece talvez a sua melhor interpretação (se nos esquecermos de Magic Mike é claro).

 O filme é pejado de problemas como a completa falta de necessidade da existência do irmão, falhas de lógica temporal, especialmente na emocionante sequência que marca o clímax do filme entre McConaughey e Chastain, em galáxias e realidades temporais completamente diferentes. E mal comecei, olhe-se para a reunião desenxabida que marca o verdadeiro final do filme e que parece trair as expetativas criadas na audiência, ou os clichés e péssimos diálogos que se espalham como uma doença infeciosa pelo guião. Mas não vale a pena continuar. O filme pode ter imensos defeitos mas não deixa por isso de ser uma experiência inegavelmente arrebatadora.

 Já falei um pouco da parede violenta de som que se abate sobre a audiência, e que levou muitos membros da audiência a expressarem o seu descontentamento internacionalmente, não conseguindo ouvir os diálogos devido ao volume da música. Isso não me afetou muito, sendo que achei isto uma interessante maneira de realmente realçar o foco do filme, as emoções operáticas da tragédia de Cooper em prol de ordem sonora ou coerência formal.

 O visual do filme também é, na generalidade, impossível de criticar com os seus fenomenais efeitos visuais, e com uma maravilhosa fotografia do prodigioso Hoyte van Hoytema, que aqui substitui o usual colaborador de Nolan Wally Pfister, e que faz um trabalho brilhante na criação de imagens cristalinas e cheias de um monumental impacto e beleza pitoresca, apesar da abundância de efeitos digitais na criação do ambiente espacial. Também os cenários são geralmente bons, sendo os planetas bem conseguidos na sua desolação desértica e visualmente estéril. Se bem que tenho grandes dúvidas em relação ao cenário que marca o final do filme e que, do meu ponto de vista, demonstra uma enorme falta de imaginação, criando um espaço para além da compreensão humana como um seguimento geométrico de prateleiras infinitas e fios esticados.

 Os problemas do filme são o que são, mas nada retira ao filme os seus pontos altos em que o filme atinge píncaros pouco usuais nas salas de cinema contemporâneas. Este é um verdadeiro épico, em ambição e execução, se também o é em incoerência e em problemas, que seja, mas não me tirem os momentos de verdadeira emoção e fulgor que este filme me deu e, presumo eu, deu a uma imensidão de pessoas, se nos guiarmos pelos seus ganhos financeiros.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

NIGHTCRAWLER (2014) de Dan Gilroy

 Neste dia de anúncio das nomeações aos Óscares, uma das ausências que mais senti foi, sem dúvida, a presença deste filme que, com os recentes prémios de sindicatos e críticos, parecia destinado a variadas menções e que acabou com apenas uma menção na categoria de argumento original. Em sinal de elogio ou lamento, aqui está um texto que escrevi há já algum tempo sobre este filme que, por variadas razões, ainda não tinha tido a oportunidade de publicar.





  Será que existe algo na suposta crítica social e moral, neste primeiro filme de Dan Gilroy, que traga algo de novo ao panorama cinematográfico? Haverá algo de novo ou revelador neste guião? Penso que, a um nível superficial, a crítica implícita no desenvolver do enredo e do filme não sejam da mais surpreendente inovação, sendo mesmo bastante previsíveis e quase que lugares comuns de narrativas cínicas e urbanas. Mas, apesar de tudo isso, não consigo deixar de olhar com admiração e com prazer para este filme, sendo que essa mesma apreciação positiva me acaba por levar a querer encontrar algo mais interessante, talvez mais rebuscado na interpretação deste filme, que parece ser uma, talvez, simples sátira moral, negra e sociopática feita a um mundo e a uns media corrompidos e perdidos numa amoralidade contemporânea.

  O filme desenrola-se à volta de uma amoral figura, Lou Bloom interpretado por um cadavérico Jake Gyllenhaal cujos olhos esbugalhados e protuberantes o assemelham quase a um lagarto noturno, uma figura reptícia mais perto de uma bestialidade que de qualquer impressão de humanidade ou empatia, um monstro bizarro, um sociopata eficiente e que parece ter encontrado na filmagem de crimes e acidentes sangrentos nas ruas de L.A. um negócio de sucesso, um lugar para os seus talentos e habilidades. Existe em toda a sua figura um pragmatismo assustador, especialmente na sua constante declamação de técnicas de motivação e modos de agir num ambiente de trabalho, etc. Esta figura é quem devemos seguir e por quem deveríamos ao mesmo tempo sentir repulsa e um fascínio que nos agarrem ao enredo do filme.

 Lou cai nesta carreira quase que por acaso, e daí irá formar uma relação profissional e perversa na sua vampiresca intensidade com Nina Romina (Rene Russo) encarregada de um noticiário numa das cadeias de televisão de menor sucesso em L.A. Uma figura de inegáveis ligações à personagem de Faye Dunaway em Network, e que tal como a sua antecessora cinematográfica, demonstra uma amoralidade e ausência de escrúpulos que a fazem um assustadoramente eficiente catalisador para a ambição de Lou. Entre os dois, cria-se uma procura pelas mais sangrentas imagens possíveis, mis chocantes e perversas, imagens que atraiam espetadores, sendo questões morais e éticas colocadas de parte nessa procura por audiências. A crítica do guião é abismalmente óbvia, portanto.

 Ao longo do filme observamos Lou avançar na sua carreira, na sua animalesca procura de sucesso económico e social, vemo-lo expandir o seu negócio e contratar Rick (Riz Ahmed) como seu assistente, numa figura que é claramente um cordeiro a ser sacrificado à monstruosidade do protagonista, e até eliminar a sua competição, no que se assemelha a um estudo de personagem. O realizador parece querer, por vezes, explorar mais a sociopatia e a frieza de Bloom do que realizar qualquer manifesto contra os media. A esteticização e composição da violência também parecem manifestar-se no comportamento de Bloom, sendo que o clímax final o eleva a um estatuto de realizador da realidade. Uma posição de enorme perversidade como que um orquestrador da violência e do horror real para a sua câmara.

 Mais não irei dizer sobre o enredo, não querendo revelar todos os desenvolvimentos do filme, mas tenho a dizer que não são muito surpreendentes, sendo que talvez o que mais me surpreendeu foi o modo aparentemente abrupto de como o filme se encerra. Não que não haja uma lógica temática por detrás desse final, mas não deixa de existir um certo aspeto de repentino cessar nessa exploração de Bloom, sendo que os momentos finais e o discurso final do nosso anti-herói nos servem como um reforço perverso de quase todos os temas do filme, especialmente em relação a esse pragmatismo vil que tanto caracteriza a criação de Gyllenhaal.

 E que criação soberba! Se o ator tem mostrado ultimamente a abrangência do seu talento com filmes como Prisoners, End of Watch e Enemy, neste filme demonstra aquela que é talvez a sua maior criação. Em Bloom, Gyllenhaal cria uma figura de ritmos exatos, uma fria máquina de discursos de pragmatismo e eficiência. Um sociopata rigoroso e repugnante, especialmente no seu aspeto com os seus olhos protuberantes, face encovada e cadavérica, cabelo oleoso e figurino simples e obsessivamente exato. Só pela sua fisicalidade e concretização visual, a personagem de Bloom seria um sucesso, mas mesmo a palavra e o modo como Gyllenhaal mostra, em ocasiões, a raiva e repugnância de Bloom para com os seus parceiros de cena, sem quase mexer um único músculo na sua cara gélida e rígida. É um grande trabalho da parte do jovem ator. Um trabalho que só por si, para mim pelo menos, seria uma justificação para a existência do filme. Mas não será ele a única razão, diria ainda mais que não será ele o único dos atores criar uma figura formidável. Rene Russo e Riz Ahmed também apresentam aqui, trabalhos exemplares.

 Russo, trás ao filme uma vulnerabilidade que parece sempre em contraste e confronto com a sua sede sanguinária e o seu lado vampiresco. A relação de Nina com Bloom é algo retorcido e perverso, e uma reviravolta um tanto ou quanto estranha e até um pouco inesperada que se dá numa cena num restaurante entre os dois, deixa em perigo qualquer consistência ou credibilidade da personagem. Nina poderia depois dessa cena ser apenas uma vítima, mas Russo permite que a audiência observe alguém muito mais complexo que uma simples vitima de um sociopata. Quando o filme acaba, já nos apercebemos da qualidade simbiótica na relação entre Bloom e esta mulher, do modo como os dois se alimentam um do outro e da amoralidade de ambos. Apesar de inicialmente olharmos Nina sempre como alguém mais humano e próximo de nós que o protagonista, o seu último diálogo mostra-nos os dois como as criaturas vampirescas que são, apesar de diferentes e com diferentes subtilezas na sua sede por essas imagens violentas.

 Ahmed, no seu papel de inocente cordeiro sacrificial, traz ao filme um naturalismo próximo da perspetiva da audiência completamente distante do jogo de intenções e ambições de Russo e Gyllenhaal. Rick é, sem dúvida, uma vítima da monstruosidade de Bloom, mas para elevar esse papel a algo mais que simples “carne para canhão” narrativo, Ahmed confere a Rick um nervosismo, uma felicidade e alívio quando consegue um trabalho, uma impaciência, uma naturalidade que o tornam o perfeito parceiro de cena para a reptiliana e manienta performance de Gyllenhaal. Numa cena em que Rick tenta negociar com Bloom, Ahmed é particularmente eficaz, colocando sempre uma tensão e nervosismo na cena sem cair no exagero ou estilização neste caso desnecessários.

 Mas não será só trabalho do elenco que eleva o filme. Basta olharmos para o filme para nos apercebermos da sua virtuosidade visual na fotografia digital com que as cenas noturnas foram capturadas, criando um mundo negro mas perfeitamente claro e frio. Quase lembra o trabalho de Michael Mann e o modo como este tão gloriosamente filma a vida noturna de Los Angeles. Também há que louvar a fotografia diurna feita em filme e não num suporte digital, criando uma barreira visual entre as duas facetas da vida de Bloom neste inferno urbano, assim como o trabalho de cenografia e figurinos, que são especialmente eficazes na criação plástica de Bloom, com as suas roupas exatas e simples, e o seu apartamento despido com um rasgo de cor e vida numa planta solitária junto à presença central da televisão.

 Este trabalho exemplar de um ponto de vista plástico, revela aquele que para mim será, um dos, se não o grande tema do filme. Falo da imagem, essa coisa distante e afastada de nós, algo superficial e vazio, algo representativo de uma realidade, que mesmo assim está longe de ser aquilo que expõe e representa. Veja-se a preocupação do filme em criar imagens de Bloom com o seu figurino rigidamente constante, o seu vistoso e um pouco incongruente carro vermelho, o seu olhar estético para a violência, etc. As imagens e o modo como estas nos distanciam da realidade ao nos mostrarem uma representação distante desta parecem ser algo tematicamente constante no filme. Até a própria relação de Bloom e Nina parece até um certo ponto ser uma criação de Bloom de uma relação e de uma imagem que ele quer transmitir de si mesmo, mesmo que a única pessoa a ver essa imagem seja ele mesmo.

 Bloom e Nina, esses vampiros noturnos, são, aliás, os que mais sedentos de imagens do que de sangue, basta olharmos o modo como Bloom parece olhar quase apaticamente para os horrores à sua frente, mas olha para o visor da sua câmara de modo extático e quase enlouquecido. Sei que é uma análise um pouco simplista do filme, mas penso ser mais interessante olhar o filme como uma exploração da distância entre a imagem e a realidade do que como uma mera crítica social de ideias já cansadas e repetidas.

 É, tendo em conta tudo isto, um grande primeiro passo para Dan Gilroy, e um grande passo no desenvolver de Gyllenhaal como ator. Mesmo que se aprecie este filme como um normalíssimo thriller, continuo a achar que existem variadas virtudes e complexidades no mesmo, que farão dele uma obra essencial a qualquer amante de thrillers contemporâneos ou mesmo de cinema americano em geral.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

THE HUNGER GAMES: MOCKINGJAY – PART I (2014) de Francis Lawrence



 Malditos sejam os produtores que, eu presumo, estiveram por detrás da decisão de separar o último livro da saga de Harry Potter em 2 filmes, com a catastroficamente assustadora definição de parte 1 e parte 2. Malditos sejam esses humanos, pois graças a eles encontramo-nos num mundo em que os estúdios dividem adaptações literárias, não por qualquer questão narrativa ou de complicada compressão de tempo, mas para conseguirem espremer mais dinheiro das carteiras do seu, supostamente fiel, público. E se tal praga já não deu resultados perfeitamente catastróficos e completamente ridículos na sua flagrante sede monetária, como a separação de The Hobbit em três longos filmes, então eu candidataria The Hunger Games: Mockingjay – Part 1, como o mais horrendo ofensor desse crime tão popular no cinema atual.

 Eu não quero estar apenas a pregar mais um prego no caixão que a crítica internacional já edificou para este filme, mas há que dizer logo aquilo que é mais flagrantemente problemático neste filme, ou seja o facto de que nada acontece. Para um filme de intenções obviamente comerciais, e com uma duração que chega às duas horas, penso ser bastante problemático nada acontecer e que o pouco que a história iniciada com os dois filmes anteriores desta saga, é material que, com muita sorte, seria apropriado para 30 bons minutos de cinema eficiente.

 Não demorarei muito tempo a explicar o enredo (o pouco que há), ou o que aconteceu antes (o filme também não se preocupa com isto), sendo que a principal ação do filme é uma campanha de propaganda que força Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) a tornar-se um relutante símbolo de revolta e revolução nesse mundo distópico de Panem, sendo que ela se encontra no anteriormente presumido destruído Distrito 13, governado pela fria e objetiva Alma Coin (Julianne Moore). A sua campanha de propaganda é contraposta pelo Capitólio, cidade ditatorial que controla os seus distritos vizinhos, estando o presidente Snow (Donald Sutherland) na posição de chefe de estado e consequente vilão sádico e calculista do filme. Junte-se a isto a figura de Peeta (Josh Hiutcherson), prisioneiro martirizado do Capitólio e imagem de propaganda desses ditadores, assim como as filmagens e discussões que se desenrolam à volta da propaganda do Distrito 13 e temos o nosso filme. Talvez há que referir um ataque noturno e um resgate que marcam o final do filme, mas isso seria dar os poucos detalhes que poderiam tornar a experiência deste filme, algo minimamente agradável.

 Os problemas provêm principalmente do guião, que retira praticamente todos os pormenores que poderiam desenvolver a vivência de Katniss no Distrito 13 e o modo como este funciona no que parece ser uma visão distópica de uma sociedade comunista militarizada, e que estica desnecessariamente discussões e cenas repetitivas e cujos temas parecem ser completamente explorados na primeira intervenção entre Katniss e a sua equipa de propaganda.

 Não há maneira de fugir ao desastre de proporções nucleares que é este guião, mesmo com um realizador competente e um bom elenco, tudo no filme parece afundar-se com o peso do seu horrível texto. Os visuais ainda conseguem chegar a alguns sucessos, sendo a construção da fortaleza subterrânea que constitui o Distrito 13, bastante promissora de um ponto de vista visual, especialmente quando filmado por Francis Lawrence e Jo Willems. Os figurinos de Kurt e Bart também são exemplares, apesar da profusão inescapável de cinzento. Os colarinhos justos e decorados de Peeta nas cenas das suas entrevistas televisivas, são particularmente boas escolhas, criando uma imagem de alguém prisioneiro até da sua indumentária.

 O elenco que antes referi é, na sua maioria, competente e até bom, sendo Philip Seymour Hoffman e Elizabeth Banks, os claros pontos altos do filme. Particularmente tristes dão as prestações de Julianne Moore e Jennifer Lawrence. Moore não é má, de todo, mas está presa a um guião que lhe pede apenas que recicle clichés de personagens de líderes políticos já vistos milhares de vezes noutros filmes. Mesmo assim consegue “vender” o seu grande discurso no final. O mesmo não se pode dizer de Lawrence, cujo trabalho nos filmes anteriores tinha sido uma brisa de ar fresco e que neste filme se afunda como tudo o resto. A inaptidão da atriz para cativar a audiência com os conflitos interiores de Katniss são óbvios para mim, e até o que deveria ser o seu momento alto, numa cena em que a sua raiva explode num grito de fúria contra o Capitólio, a atriz parece fora do seu elemento, tornando este momento supostamente impulsivo, numa leitura demasiado acentuada de uma fala obviamente estudada.


 Mesmo assim, há que apontar, é interessante olhar para um filme com tão alta posição no box office internacional cuja principal exploração e mensagem, se desenvolve à volta de questões de propaganda política e de um mundo onde politicamente tudo se parece separar em duas fações igualmente radicais, e cuja conclusão do seu conflito parece ir acabar em nada a não ser absoluta destruição e sangue. Não que o filme desenvolva muito estes temas, nem que a política do filme seja particularmente complexa, mas por favor, deixem-me apreciar qualquer coisa nestas duas horas de um aborrecimento inescapável e psicologias baratas, comuns, e incrivelmente mal exploradas.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

FOXCATCHER (2014) de Bennett Miller



Ao longo da sua filmografia de três longas-metragens, o realizador Bennett Miller, galardoado este ano com o prémio de melhor realização pelo seu trabalho neste filme em Cannes, tem estabelecido um estilo e um vocabulário estético e temático imediatamente reconhecíveis, e se tal se manifesta principalmente numa sombria sobriedade e austeridade, acompanhada por explorações de dinâmicas e inseguranças masculinas, então é isso que vemos nesta sua mais recente oferta ao panorama cinematográfico.

Em Foxcatcher, Miller apresenta-nos mais uma história verídica, neste caso a da relação de quase mecenato e dependência que se estabeleceu entre o campeão olímpico de wrestling Mark Schultz (Channing Tatum) e o milionário americano John du Pont (Steve Carrell), descendente de uma das mais ricas famílias desse país. Mais do que motivado pelo desporto ou por um aparente patriotismo quase fanático, du Pont parece principalmente motivado por uma doentia rivalidade com a sua mãe (Vanessa Redgrave), ou melhor, por uma necessidade desmesurada de agradar e impressionar. A relação que se estabelece entre os dois é complicada pela presença do irmão de Mark, Dave Schultz (Mark Ruffallo), também ele um campeão olímpico em wrestling, e muito menos ludibriado pela presença magnânima do milionário que o irmão.

A dinâmica entre os irmãos é uma das mais importantes facetas do filme, e pelo menos para mim a mais fascinante. Isto leva principalmente a que, apesar de todos os problemas que eu possa ter com o filme, o assassinato de Dave Schultz por John  du Pont, a tragédia que leva esta história a ser contada, tenha um impacto que, não fosse a relação entre os irmãos, simplesmente não existiria.

E gostaria, antes de falar do que realmente me fascinou e deleitou no filme, de chamar a atenção para os elementos que, para mim, mais prejudicam o filme em geral. Nomeadamente aquela que é, de um ponto de vista pessoal, uma das piores prestações que tenho visto ultimamente em termos de atuação, ou pelo menos em termos de inserção de uma performance num filme. Falo da reptiliana interpretação de Carrell cuja presença em muitas listas de melhores interpretações do ano me continua a deixar atónito e incrédulo.

É melhor clarificar-me. Em du Pont, Carrell parece ter encontrado o papel com que passaria de um ator cómico a um ator dramático de prestígio e importância, jogando com um mimetismo da figura real, sendo que o ator terá estudado numerosos registos em vídeo do verdadeiro du Pont. Isto manifesta-se numa performance cheia de tiques e trejeitos, uma voz afetada e uma postura mecânica e rígida, uma presença que mais se assemelha a um robot humanoide que a um ser humano, especialmente quando rodeado de interpretações de grandes e prodigiosos realismos. Se havia já, graças ao guião, uma tendência para transformar du Pont num monstro desumano e incompreensível, quase que separado dos outros humanos no filme como uma monstruosidade com ideias de superioridade, então Carrell tudo faz para enfatizar isto, da pior maneira possível.

Muitos têm falado da atmosfera asfixiante do filme, e eu consigo ver do que falam, mas para mim a grande parte do problema não provém da realização formal de Miller, mas sim do trabalho que ele e o seu ator principal engenharam. Em cena, Carrell suga todo o ar para si, asfixia tudo à sua volta, qualquer exploração complexa das relações entre classes e familiares parecem desaparecer quando a audiência é exposta ao monstro que é du Pont, que se apresenta sob a forma de um Carrell coberto de maquilhagem pesada, que nada fazem para aproximar Carrell de uma representação humana.

Para além de Carrell, está um bom elenco, se bem que a insularidade do desenrolar do enredo leva a que apenas Tatum e Ruffalo tenham realmente algo de substancial a fazer, se bem que Redgrave marca uma indubitável impressão nos seus fugazes momentos no filme.

Tatum, como Mark, alcança aqui a sua melhor performance dramática, usando a sua fisicalidade e aspeto físico na desconstrução de masculinidade que o guião parece pedir, construindo aqui um turbilhão de inseguranças masculinas e uma necessidade doentia de agradar e de se impor à sombra inescapável do irmão. As cenas que partilha com Ruffalo e Carrell apenas parecem salientar o génio de Tatum, sendo que, as suas interações com Carrell são especialmente fascinantes no modo como o homem musculado e imponente parece infantilizado ou reduzido a um animal sub-humano, quase como um animal enjaulado, ou um cão enraivecido e constantemente amedrontado.

 Ruffalo também apresenta um trabalho sublime, criando o mais humano dos três protagonistas. O mais simpático e plausível, e o que mais se salienta face ao registo quase fúnebre que afoga o filme. Isto é essencial, como já disse, para o desenvolvimento da relação entre os dois irmãos, e para a intensidade que traz o final trágico do filme. A sua fisicalidade com Tatum é especialmente impressionante, sendo que Miller quase parece filmar os seus treinos e movimentos de luta como uma diferente linguagem, apenas dominada pelos dois irmãos.

Regrave tem apenas alguns momentos passageiros para criar uma impressão duradoura, mas tal não é difícil para esta veterana atriz que parece fazer carreira destes papéis de diminuto tempo em cena e de impacto imenso. O modo como a atriz estabelece a superioridade sentida por esta mulher face ao seu filho e face àqueles menos afortunados que a sua família, são algo de um gélido pesadelo. Ao contrário dos exageros de Crrell, a simplicidade de Redgrave é o que realmente estabelece e vincula a exploração que Miller faz destas pessoas que parecem ver as classes mais baixas, quase como animais, como uma espécie inferior, comparando-se mesmo os lutadores de wrestling, apoiados por John, com os cavalos de corrida da sua mãe. É na casualidade e indiferença de Redgrave que jaz o impacto destas explorações do filme e não, pelo menos para mim, na caricatura funérea de Carrell.

A acompanhar este desequilibrado mas por vezes genial trabalho do elenco, vem o estilo visual e sonoro que se tem vindo a desenvolver e a cristalizar na jovem filmografia de Miller. O trabalho de fotografia e de som são especialmente impressionantes no modo como expõe o mundo do filme quase como o interior de um mausoléu, de um túmulo marmóreo, onde nunca vemos luz branca e luminosa, onde tudo parece ora escuro, ora iluminado por uma luz pesadamente acinzentada ou leitosa. Um mundo sonoro em que os mais ínfimos sons parecem ser trazidos ao de cima criando um ruído que parece ressoar constantemente pelo cinema, nunca retirando ao filme a pátina de tensão com que o realizador parece querer tanto cobrir o seu filme.
Isto podia ser muito bem usado, mas quando conjugado com um guião que parece estar recheado de foreshadowings e de um ritmo lento e insistente numa tragédia eminente, o estilo de Miller apenas parece sufocar a pouca energia que ainda haveria dentro do filme. Associe-se a isto o trabalho de Carrell que parece despir de qualquer complexidade ou subtileza os temas de imagens masculinas, inseguranças, falsos e perigosos patriotismos e relações sociais entre mundos incompatíveis, e obtemos um filme que parece estar sempre no precipício de se tornar uma obra magistral mas que parece constantemente ser bloqueada por uma autoimposta e asfixiante aura de seriedade, importância e tragédia.


sábado, 3 de janeiro de 2015

HISTOIRE IMMORTELLE (1968) de Orson Welles




 Pergunto-me por vezes, o que é que compele os grandes mestres a recorrerem à simplicidade e à depuração do estilo nas suas obras finais. Vejam-se Bergman ou Dreyer. Não que o filme de que pretendo escrever aqui seja o filme final do mítico enfant terrible do cinema americano Orson Welles. O seu último filme completo viria apenas em 1978 com a sua reflexão acerca da filmagem do seu Otelo.

 The Immortal Story ou Histoire Immortelle foi uma produção criada para a televisão francesa em 1968 e que consiste numa breve adaptação de uma das obras de Karen Blixen. Nela, um velho e decrépito americano a viver em Macau, utiliza o seu dinheiro e poder para encenar uma história que já tinha ouvido antes, decidido a transpor a ficção falsa para a realidade. Um homem rico convida um marinheiro a visitar a sua casa, jantam e o marinheiro é conduzido à mulher do velho miserável, fazem amor durante a noite e o marinheiro parte de manhã. O velho americano, o Sr. Clay (Orson Welles) consegue criar esta ficção na sua realidade, mas ao amanhecer do dia e do seu triunfo vazio, morre, enquanto, por sua vez, o marinheiro promete nunca contar a sua história a ninguém, tornando ocos os últimos momentos triunfantes da vida do obsessivo e estranho encenador de vidas alheias.

 Repare-se na expressão de encenador que usei acima. De uma perspetivo pessoal, este trata-se de um filme sobre um encenador, ou mesmo sobre um velho e cansado realizador, talvez um leve autorretrato de Welles? Clay cria em si a figura magistral de um autor, que manipula os seus atores de modo a obter a sua ficção desejada. Existe mesmo, dentro do texto do próprio filme uma comparação dos atores de Clay a marionetas nas suas mãos, com o que ele criaria a sua história.  Esta história imortal que nunca teria passado de uma história se não fosse a mão de Clay na sua transposição para a realidade.

 A própria estruturação do filme lembra uma certa teatralidade, com o seu elenco limitado e grande ênfase no texto, chegando mesmo o filme a abrir com um voz-off expositivo que descreve a medonha figura de Clay. Há que não esquecer a ligação forte de Welles para com o teatro, apesar de ser hoje em, dia maioritariamente lembrado pelo seu trabalho em celuloide, Welles tinha uma certa presença no teatro americano. O seu gosto por Shakespeare, por exemplo, levaria a três adaptações cinematográficas de obras do bardo, Macbeth, Othello e Chimes at Midnight.

 Essa última adaptação de Shakespeare é de particular interesse. Foi a obra que imediatamente antecede o filme explorado neste texto, tendo sido estreado em 1965. Tal como este filme, também foi uma produção apoiada por fundos europeus, nesse caso espanhóis e tal como esse filme, apresenta uma visão quase monstruosa e decididamente grotesca do velho e corpulento Welles. Se bem que ao olharmos para o filme de 65, vemos uma figura simpatética e francamente patética, enquanto na figura de Clay apenas vemos um miserável velho, patético sim, mas quase assustador na sua apresentação.

 Clay aparece maioritariamente sentado, quase nunca de pé, É maioritariamente uma figura estática à volta da qual os seus atores se movimentam. Vestido de negro parece quase derreter para os seus acentos, é uma figura que já não parece pertencer ao mundo dos vivos, um corpo embalsamado que ainda tem pretensões de viver a partir da encenação da vida de outros no seu perverso teatro.

 Estas suas marionetas são um jovem e relativamente inocente marinheiro dinamarquês, Paul (Norman Eshley), e a bela mas trágica Virginie (Jeanne Moreau) cujo pai havia encontrado a miséria nas mãos de Clay e se havia suicidado, deixando a sua casa vazia para Clay. A casa que outrora pertencera à família de Virginie é o espaço onde maioritariamente decorre a ação. É-nos descrito através do diálogo de alguns coscuvilheiros homens nas ruas de Macau, que antes de se ter suicidado, o pai de Virginie, terá destruído todas as obras de arte que enchiam a sua casa, deixando apenas os luxuosos espelhos franceses, para que Clay vivesse numa casa povoada de retratos de um carrasco.

 Nesta casa, Welles cria um ambiente quase teatral, temos o quarto cuja decoração lembra o barroquismo visual de outros filmes de Welles, e que funciona como a nossa área de representação, o nosso palco. Os bastidores são onde Virginie se maquilha e prepara de modo a esconder as marcas dos anos e a sua face cansada e matura. Aqui é particularmente evidente a sua condição como atriz. O seu papel é o de uma inocente jovem, algo que Moreau com a sua enigmática mas decididamente matura beleza, estava longe de representar.

 A zona da audiência, a plateia, é o terraço de onde Clay observa a noite dos amantes, através das janelas para o exterior, cobertas de rendas, quase como uma cortina de cena. Clay é a perversão de uma audiência, um voyeur da sua própria criação. Aliás, o espetáculo parece escorregar por entre os seus dedos quando as naturezas humanas dos atores entram em jogo, quase destruindo a meticulosa e fria criação do encenador.

 Welles filma o encontro dos amantes de um modo que, apesar da estruturação do próprio guião, parece fugir a quaisquer limitações teatrais, chegando a um pequeno e simples triunfo de adaptação de teatralidade estilística a uma linguagem cinematográfica. Os corpos e faces dos dois atores são filmados maioritariamente em planos apertados, sendo que à sua volta se encontra uma forte e quase sufocante brancura proveniente das cortinas de tule branco que envolvem a cama. A câmara move-se através das cortinas e através dos corpos, quase que reduzindo os humanos a paisagens vivas. A montagem expressiva e o ênfase nos olhos de Moreau reforçam ainda mais a condição cinemática da situação. Apesar de simples, este continua a ser um filme do mestre Welles.

 No final do filme, a Clay é deixado um búzio, à volta do qual se encerra o filme. Clay morreu no seu triunfo oco e apenas lhe foi deixado um objeto liso e reluzente, que no seu som quase irreal, parece realçar a futilidade do trabalho de Clay na concretização da ficção na realidade. Na sua morte, o encenador vê o seu trabalho completo, mas condenado a nunca ser verdadeiramente conhecido pelo mundo. Estaria Welles a se retratar a si mesmo, a se condenar ao esquecimento de Clay?

 Este é, como já disse, um filme relativamente simples quando comparado a outras obras de Welles. Parece que aqui observamos um mestre cansado e em possível fim de vida, algo que não aconteceu, sendo que F for Fake de 1973 seria uma das suas mais energéticas obras. Mas apesar disto o filme é fascinante na sua simplicidade. Moreau é uma presença inescapável nesta terceira colaboração com Welles e o filme parece despertar várias reflexões sobre o próprio trabalho do realizador.

 Se há uma forte crítica a fazer ao trabalho do realizador nesta obra, será no demasiadamente lânguido e lento ritmo que parece arrastar o filme pelos seus curtos 60 minutos sem grande propósito. Talvez o filme ficasse demasiado vazio se tivesse um mais fugaz ritmo, mas o que acontece na obra que temos presente não me parece funcionar da melhor maneira possível.


 Apesar de essencialmente esquecido face a outras mais célebres obras de Welles, penso neste filme como uma obra essencial na sua filmografia, se não for por outra razão que é talvez a sua mais pessoal reflexão sobre a sua relação com o teatro e com o seu trabalho com a figura do ator.