sábado, 3 de janeiro de 2015

HISTOIRE IMMORTELLE (1968) de Orson Welles




 Pergunto-me por vezes, o que é que compele os grandes mestres a recorrerem à simplicidade e à depuração do estilo nas suas obras finais. Vejam-se Bergman ou Dreyer. Não que o filme de que pretendo escrever aqui seja o filme final do mítico enfant terrible do cinema americano Orson Welles. O seu último filme completo viria apenas em 1978 com a sua reflexão acerca da filmagem do seu Otelo.

 The Immortal Story ou Histoire Immortelle foi uma produção criada para a televisão francesa em 1968 e que consiste numa breve adaptação de uma das obras de Karen Blixen. Nela, um velho e decrépito americano a viver em Macau, utiliza o seu dinheiro e poder para encenar uma história que já tinha ouvido antes, decidido a transpor a ficção falsa para a realidade. Um homem rico convida um marinheiro a visitar a sua casa, jantam e o marinheiro é conduzido à mulher do velho miserável, fazem amor durante a noite e o marinheiro parte de manhã. O velho americano, o Sr. Clay (Orson Welles) consegue criar esta ficção na sua realidade, mas ao amanhecer do dia e do seu triunfo vazio, morre, enquanto, por sua vez, o marinheiro promete nunca contar a sua história a ninguém, tornando ocos os últimos momentos triunfantes da vida do obsessivo e estranho encenador de vidas alheias.

 Repare-se na expressão de encenador que usei acima. De uma perspetivo pessoal, este trata-se de um filme sobre um encenador, ou mesmo sobre um velho e cansado realizador, talvez um leve autorretrato de Welles? Clay cria em si a figura magistral de um autor, que manipula os seus atores de modo a obter a sua ficção desejada. Existe mesmo, dentro do texto do próprio filme uma comparação dos atores de Clay a marionetas nas suas mãos, com o que ele criaria a sua história.  Esta história imortal que nunca teria passado de uma história se não fosse a mão de Clay na sua transposição para a realidade.

 A própria estruturação do filme lembra uma certa teatralidade, com o seu elenco limitado e grande ênfase no texto, chegando mesmo o filme a abrir com um voz-off expositivo que descreve a medonha figura de Clay. Há que não esquecer a ligação forte de Welles para com o teatro, apesar de ser hoje em, dia maioritariamente lembrado pelo seu trabalho em celuloide, Welles tinha uma certa presença no teatro americano. O seu gosto por Shakespeare, por exemplo, levaria a três adaptações cinematográficas de obras do bardo, Macbeth, Othello e Chimes at Midnight.

 Essa última adaptação de Shakespeare é de particular interesse. Foi a obra que imediatamente antecede o filme explorado neste texto, tendo sido estreado em 1965. Tal como este filme, também foi uma produção apoiada por fundos europeus, nesse caso espanhóis e tal como esse filme, apresenta uma visão quase monstruosa e decididamente grotesca do velho e corpulento Welles. Se bem que ao olharmos para o filme de 65, vemos uma figura simpatética e francamente patética, enquanto na figura de Clay apenas vemos um miserável velho, patético sim, mas quase assustador na sua apresentação.

 Clay aparece maioritariamente sentado, quase nunca de pé, É maioritariamente uma figura estática à volta da qual os seus atores se movimentam. Vestido de negro parece quase derreter para os seus acentos, é uma figura que já não parece pertencer ao mundo dos vivos, um corpo embalsamado que ainda tem pretensões de viver a partir da encenação da vida de outros no seu perverso teatro.

 Estas suas marionetas são um jovem e relativamente inocente marinheiro dinamarquês, Paul (Norman Eshley), e a bela mas trágica Virginie (Jeanne Moreau) cujo pai havia encontrado a miséria nas mãos de Clay e se havia suicidado, deixando a sua casa vazia para Clay. A casa que outrora pertencera à família de Virginie é o espaço onde maioritariamente decorre a ação. É-nos descrito através do diálogo de alguns coscuvilheiros homens nas ruas de Macau, que antes de se ter suicidado, o pai de Virginie, terá destruído todas as obras de arte que enchiam a sua casa, deixando apenas os luxuosos espelhos franceses, para que Clay vivesse numa casa povoada de retratos de um carrasco.

 Nesta casa, Welles cria um ambiente quase teatral, temos o quarto cuja decoração lembra o barroquismo visual de outros filmes de Welles, e que funciona como a nossa área de representação, o nosso palco. Os bastidores são onde Virginie se maquilha e prepara de modo a esconder as marcas dos anos e a sua face cansada e matura. Aqui é particularmente evidente a sua condição como atriz. O seu papel é o de uma inocente jovem, algo que Moreau com a sua enigmática mas decididamente matura beleza, estava longe de representar.

 A zona da audiência, a plateia, é o terraço de onde Clay observa a noite dos amantes, através das janelas para o exterior, cobertas de rendas, quase como uma cortina de cena. Clay é a perversão de uma audiência, um voyeur da sua própria criação. Aliás, o espetáculo parece escorregar por entre os seus dedos quando as naturezas humanas dos atores entram em jogo, quase destruindo a meticulosa e fria criação do encenador.

 Welles filma o encontro dos amantes de um modo que, apesar da estruturação do próprio guião, parece fugir a quaisquer limitações teatrais, chegando a um pequeno e simples triunfo de adaptação de teatralidade estilística a uma linguagem cinematográfica. Os corpos e faces dos dois atores são filmados maioritariamente em planos apertados, sendo que à sua volta se encontra uma forte e quase sufocante brancura proveniente das cortinas de tule branco que envolvem a cama. A câmara move-se através das cortinas e através dos corpos, quase que reduzindo os humanos a paisagens vivas. A montagem expressiva e o ênfase nos olhos de Moreau reforçam ainda mais a condição cinemática da situação. Apesar de simples, este continua a ser um filme do mestre Welles.

 No final do filme, a Clay é deixado um búzio, à volta do qual se encerra o filme. Clay morreu no seu triunfo oco e apenas lhe foi deixado um objeto liso e reluzente, que no seu som quase irreal, parece realçar a futilidade do trabalho de Clay na concretização da ficção na realidade. Na sua morte, o encenador vê o seu trabalho completo, mas condenado a nunca ser verdadeiramente conhecido pelo mundo. Estaria Welles a se retratar a si mesmo, a se condenar ao esquecimento de Clay?

 Este é, como já disse, um filme relativamente simples quando comparado a outras obras de Welles. Parece que aqui observamos um mestre cansado e em possível fim de vida, algo que não aconteceu, sendo que F for Fake de 1973 seria uma das suas mais energéticas obras. Mas apesar disto o filme é fascinante na sua simplicidade. Moreau é uma presença inescapável nesta terceira colaboração com Welles e o filme parece despertar várias reflexões sobre o próprio trabalho do realizador.

 Se há uma forte crítica a fazer ao trabalho do realizador nesta obra, será no demasiadamente lânguido e lento ritmo que parece arrastar o filme pelos seus curtos 60 minutos sem grande propósito. Talvez o filme ficasse demasiado vazio se tivesse um mais fugaz ritmo, mas o que acontece na obra que temos presente não me parece funcionar da melhor maneira possível.


 Apesar de essencialmente esquecido face a outras mais célebres obras de Welles, penso neste filme como uma obra essencial na sua filmografia, se não for por outra razão que é talvez a sua mais pessoal reflexão sobre a sua relação com o teatro e com o seu trabalho com a figura do ator.

Sem comentários:

Enviar um comentário