terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

AMERICAN SNIPER (2014) de Clint Eastwood




 Antes de dizer o que quer que seja sobre este filme, há dois pequenos detalhes que deveria apontar. Eu tenho um admitido desagrado com a maior parte da obra de Clint Eastwood e olho sempre para o seu estilo classicista mas estranhamente relaxado apesar da sua sufocante seriedade, como um dos mais intragáveis trabalhos atribuídos a um realizador por muitos considerado uma lenda viva e “um dos grandes”. Segundo, antes de ver o filme, um dos meus maiores receios em relação a esta obra seria a flagrante exaltação patriótica e jingoísta que o tema e a ideologia política do realizador pareciam querer indicar. Por um lado o filme confirmou estes receios, por outro, o filme mostrou um lado um pouco surpreendente no modo de abordar esta temática pela parte do realizador veterano.

 O filme aborda a vida de Chris Kyle (Bradley Cooper), um membro dos Navy SEALS americanos, um sniper, e um veterano de guerra que acabou por encontrar a sua morte nas mãos de outro veterano traumatizado pela sua experiência nesses mesmos conflitos bélicos que elevam este tipo de homens ao estatuto de heróis da sua pátria. E há que apontar que a pátria é um elemento importantíssimo neste filme que tem como protagonista um admitido patriota, cujo patriotismo cego é algo que me colocou logo numa posição de falta de confiança para com a abordagem do filme dos seus temas.

  Mas é realmente nessa abordagem que Eastwood consegue alcançar algo de uma certa surpresa, mostrando o patriotismo bidimensional e cego de Kyle, assim como as suas crenças em que a violência e o homicídio são justificados para a proteção da sua pátria, sem fazer particulares julgamentos, positivos ou negativos. Aliás, para além de uma certa exploração do seu trauma e das marcas que a guerra deixa na psicologia danificada de Kyle, Eastwood mantém-se um pouco afastado da mente e da subjetividade do seu protagonista, observando o seu comportamento mais do que avaliando-o de um modo significativo. O argumento, por exemplo, mostra o modo como essa ideologia de justificação sistemática de violência terá origem na infância de Kyle, no seu pai em particular, mas quase que se reduz a mostrar esta influência paterna, deixando principalmente à audiência o juízo moral e ético que seria de esperar estarem presentes na execução do filme da parte de Eastwood.

 Mas, por muito defensível que seja a objetividade aparente de Eastwood existe, especialmente devido ao argumento e à estrutura do filme, uma grande defesa, ou mesmo glorificação de Kyle e da sua posição como um sniper, elevando, especialmente nos seus últimos momentos, Kyle a um mártir de uma guerra, um herói destruído pelo mal do mundo. Os momentos finais entre Kyle e a sua mulher, Taya (Sienna Miller), e os seus filhos, são particularmente notórios no modo como flagrantemente santificam este carneiro antes de este ser sacrificado num momento off screen, de que apenas temos conhecimento devido ao texto que aparece no ecrã, um apontamento textual que parece marcar presença em todos os filmes de cariz biográfico ultimamente.

 Outros momentos do filme, em contraposição a essa glorificação, parecem propor um ponto de vista nunca completamente explorado pelo realizador. Veja-se o modo como, numa sequência inicial, o filme passa do assassinato de uma mulher e de uma criança, dois bombistas, por Kyle, para uma cena de Kyle, em criança, a caçar com o seu pai, contrapondo o soldado que mata pela pátria, a um caçador que mata por prazer, ou ainda mais longe, contrapondo e comparando o modo como Kyle mata seres humanos com o modo como este mata animais. Isto acaba por não ter grande seguimento pois, como já disse, mais do que interessado em explorar os labirintos morais e éticos da figura de Chris Kyle, Eastwood parece mais empenhado em apresentar a sua figura, a sua persona, a sua vida, neste filme, observando-o sem grandes complexidades ou juízos.

 Por vezes, existem momentos que denunciam um pouco de jingoísmo que deixa um péssimo gosto na boca do espetador, como o modo como as vítimas e ataques terroristas são sempre mencionados especificamente como americanos e o próprio modo como o filme parece sempre tão pouco interessado em explorar o dito inimigo, reduzindo-o a uma ameaça monstruosa e indefinida assim como inumana e impessoal. Isto apenas corrobora essa falta de complexidade temática que já mencionei, essa redutividade apresentada pelo guião que, para ser sincero, não poderia ser mais banal na sua estruturação ou no modo de organizar e contar os momentos da vida de Kyle, focando-se grandemente na sua relação com a mulher, em grande parte para poder explorar, mais à frente no filme, o trauma de Kyle sentido já na segurança da sua pátria.

 O estilo de Eastwood, continua bastante simplista, prendendo-se a uma eficiência banal e a uma seriedade austera e, por vezes, sufocante. A única coisa a realmente apontar de interessante na conceção visual do filme é a sua fotografia que, apesar de arenosa e pouco colorida, não apresenta a dessaturação cromática que parece empestar todos os últimos filmes deste realizador, e que parecem sempre denunciar um realizador apreciador de uma seriedade e austeridade visual com um ódio à cor e que talvez estivesse melhor a realizar filmes em preto-e-branco, sendo que o desastre Jersey Boys é talvez o mais indefensível exemplo dessa estética de Eastwood. A montagem e o trabalho de som também são eficazes, mas nada de avassalador ou, francamente, merecedor dos laureais que tem estado a receber nesta temporada de prémios cinematográficos.

 No centro de tudo isto encontra-se a performance de Bradley Cooper, por este papel nomeado para um Óscar da Academia, e que é perfeitamente eficiente na sua representação de um homem simples, com códigos morais e éticos simples, inserindo a complexidade e expressividade necessárias em momentos chave do filme, sem oferecer a Eastwood nenhuma interpretação explosiva ou demasiado distrativa. Eastwood parece querer simplesmente observar Kyle, e Cooper parece estar perfeitamente em sintonia com esse registo, talvez um pouco pobre em criatividade. Miller também se revela como uma escolha sólida, se bem que o modo como o papel é escrito não lhe confere grande complexidade psicológica, mas, tal como Cooper, ela cumpre o seu papel no filme com a eficiência precisa para o funcionamento básico do filme.

 Com tudo isto dito, apesar de surpreendentemente seco e objetivo, o filme acaba sempre por revelar uma ideologia um tanto ou quanto jingoísta, e os momentos finais do filme trazem mais uma glorificação heroica do protagonista que um grito de protesto em relação aos horrores da guerra, cujo impacto, na perspetiva deste filme, é apenas importante na medida em que afeta irreparavelmente os heróis americanos, esses soldados patriotas que sofrem e morrem pela sua pátria, algo aparentemente inquestionável e necessário para a ordem do mundo. Não vou fazer mais juízos, tenho medo que as minhas próprias ideologias políticas influenciem em demasia a minha opinião deste filme, cujo estilo, independentemente de qualquer mensagem politica, me deixa muito a desejar como básico e funcional cinema americano.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

BIRDMAN: OR (THE UNEXPECTED VIRTUE OF IGNORANCE) (2014) de Alejandro González Iñárritu




 Depois de obras tão empenhadas num registo de miserabilismo inescapável como Biutiful e Babel, é estranho olhar para esta nova obra de Alejandro Iñarritu e encontrar uma fantástica comédia de um delicioso humor negro e desenvolvida à volta da figura meta-textual de um ator, antiga estrela de cinema de super-heróis, interpretada por Michael Keaton, ator principalmente conhecido pelo seu papel de Batman.

 Riggan (Michael Keaton) é esta figura, este ator, cuja psicologia informa toda a linguagem estilística do filme, que se vai desenrolando naquilo que superficialmente parece um longo plano em constante movimento de duas horas, que extingue quaisquer barreiras temporais e narrativas no seu orgástico trabalho de câmara. Assombrado pelo seu sucesso passado, personificado principalmente por uma voz mental da sua personagem mais famosa, Birdman, Riggan tenta encenar, escrever e atuar num espetáculo na Broadway, tentando recuperar prestígio, respeito e admiração, que há muito não encontra. Este é um filme que se entrega então, a uma exploração de uma desesperada personagem, fixada numa busca por aprovação e validação exterior, assim como de si próprio, e que parece sempre completamente perdido nos seus devaneios mentais e inseguranças, tornados realidade visual na concretização plástica do filme.

 Ao mesmo tempo que o filme se desenrola em torno de Riggan, podemos observar uma exploração humorística e estranhamente melancólica do mundo do teatro americano, da natureza do ator de teatro, de cinema e do ator celebridade, vemos uma crítica selvática e um pouco desajeitada à figura do crítico, e observamos também um elenco de personagens bizarras, humanas, fascinantes mesmo quando envoltas no cliché e na caricatura.

 É difícil encontrar filmes de tão grande ambição como este filme, a níveis temáticos e técnicos, assim como visuais e performativos, mas há que apontar alguns poucos problemas de que o filme padece, na minha opinião, antes de me aventurar mais pela glória com que o filme explode da tela de cinema. Para começar, penso haver algumas limitações temáticas no guião, especialmente na sua exploração da figura do ator, que por vezes cai na caricatura como na personagem de Mike (Edward Norton), um ator prima-dona adorado pela crítica e que, apesar de uma personalidade abrasiva, manienta e cheia de pretensiosismos ridículos, parece procurar uma intensidade e realidade em palco em tudo contraditórios à caricatura que apresenta na vida real, assim como a crítica vilanesca Tabitha (Lindsay Duncan) que assombra o filme com o seu ódio pela ideia de uma celebridade de Hollywood tentar entrar no mundo do teatro da Broadway, sem falar noutras figuras que recheiam o filme…

 Também há um enorme e flagrante problema estrutural no filme que revela as limitações e contradições do estilo e do guião do filme. Resumidamente falando, este é um filme que está completamente dependente do ponto de vista do seu protagonista, sendo que todo o estilo de filmagem do filme parece ser um prolongamento dessa psicologia ferida no seu centro. Essa prisão ao ponto de vista é essencial para o filme que, no entanto, parece perder-se em enredos secundários com outras personagens que parecem trair a história sobre a qual, principalmente no final, o filme se desenvolve. O facto de não haver cortes explícitos na montagem da maioria do filme, apenas exacerba mais estes problemas na conceção do filme e no seu abandono do olhar de Riggan. Mas isto não é apenas uma fonte de problemas, visto que alguns dos mais belos momentos do filme só são possibilitados por estas fugas da perspetiva do protagonista, nomeadamente as cenas partilhadas entre Mike e Sam (Emma Stone), a filha de Riggan, recentemente saída de uma clinica de reabilitação e presente assistente pessoal do pai. As cenas que os dois partilham, quebram e dissecam muito do absurdismo que as suas caracterizações no resto do filme, por vezes, denunciam, conferindo uma grande profundidade temática e maturidade psicológica ao filme. Algo que, por exemplo, parece faltar à personagem de Tabitha que parece querer simbolizar todos os críticos e que se parece revelar um monstro bidimensional e ridículo, apesar do maravilhoso trabalho de Duncan, especialmente numa cena em que a crítica é confrontada com um vil e venenoso discurso de Riggan, cujo desespero se parece aqui converter em ataques vitriólicos aos críticos de teatro.

 Mas, apesar disto, o filme é na sua generalidade um triunfo cinemático apoiado num glorioso trabalho da sua equipa desde Keaton a todos os aspetos técnicos do filme.

Este ator de quem não esperava muito, tenho de admitir, expõe-se aqui nesta personagem de óbvias semelhanças ao próprio ator, numa crueza e expressividade que são impossíveis de ignorar. Por muito indulgente que o filme possa parecer para com a sua personagem, Keaton é aqui uma revelação, sendo particularmente impressionante na sua expressividade facial apenas acentuada pelo modo quase predatório como a câmara, por vezes o filma. Emma Stone é também surpreendente, arrasando todos os seus “grandes” momentos com uma mistura curiosa de raiva quase adolescente e petulante com uma inocência inesperada. O modo como a expressão da atriz muda depois de um zangado discurso da personagem ao seu pai, é algo sublime, assim como a maturidade que Stone consegue revelar nas cenas partilhadas com Edward Norton no terraço do teatro.

 Norton também é de louvar no modo como encontra a comédia absurda no seu retrato caricaturado de um ator pretensioso e com quem parece ser um pesadelo trabalhar, encontrando um lado genuíno no seu comportamento em momentos específicos como os seus interlúdios com Stone, iluminando com uma nova luz no irritante e pretensioso registo que acompanha a maior parte das suas cenas e sequências.

 Em papéis mais pequenos, Andrea Riseborough, Amy Ryan e Lindsay Duncan são breves delícias neste filme, sendo que Duncan é de particular valor, retirando alguma da bidimensionalidade agressiva da personagem da crítica de teatro. E, há ainda que mencionar, Naomi Watts naquela que é talvez a sua melhor prestação desde The Painted Veil, sendo que numa cena partilhada com Keaton no camarim de Riggan, a atriz mostra uma complexidade que até aí a sua personagem não parecia ter, dando luz a uma narrativa pessoal paralela, e lembrando que fora da insularidade de Riggan, existem outras pessoas e outras vidas, para com as quais o ator parece muitas vezes indiferente, focando-se em si mesmo e no seu turbilhão emocional.

 A fotografia de Emanuel Lubezki é de particular relevância. Aqui este génio mexicano perde um dos seus principais fatores de sucesso, a luz natural, mas ganha uma expressividade fantástica nas luminosidades coloridas e artificiais que povoam este mundo teatral, sendo que até uma loja de bebidas alcoólicas parece existir num registo visual semelhante a um espetáculo psicadélico e exuberante. Mas mesmo com a luz posta de parte, temos o movimento da câmara, incessante e maravilhoso, que ganha principal genialidade no seu movimento tridimensional nos momentos em que explora as mudanças de cena dentro do espetáculo dentro do filme, misturando o artifício flagrante das técnicas de palco com o movimento puramente cinemático de uma câmara de cinema.

 Essa junção de dois mundos é, talvez, o mais interessante componente do filme, que apesar de algumas cenas e diálogos, não parece criar grandes juízes de valor em relação a estas duas artes. O interesse do filme parece focado, como já disse, em explorar a personagem de Riggan quase que se assemelhando mais a um stream of consciousness que a um tradicional guião de exploração de personagem e isso retira algum do mau sabor que cenas como o já mencionado discurso enraivecido de Riggan a Tabitha podem deixar num espetador, sendo que estamos bastante entrincheirados na perspetiva insegura e enraivecida de Riggan.

 Talvez não seja, para mim, a obra perfeita que outros parecem declarar este filme, mas como um estudo de personagem, com admitidas limitações temáticas e textuais, e uma experiência de incrível ambição técnica e formal, Birdman é um triunfo.

 Tal como Stone na luminosa imagem final do filme, nós, como membros da audiência, podemos apenas olhar para esta obra a voar sobre as nossas cabeças num esplendoroso voo de glória e ambição. Sangue, suor e lágrimas podem ser aqui derramadas mas, longe de ser uma criação elitista ou alienante, o filme revela-se como uma das mais excitantes experiências cinemáticas que o cinema contemporâneo americano tem para oferecer, nem que seja de uma perspectiva puramente técnica.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

THE IMITATION GAME (2014) de Morten Tyldum





“Sometimes it is the people who no one imagines anything of who do the things that no one can imagine.”



 Há que dizer, antes de se falar de mais alguma coisa neste filme, que a fala que é persistentemente repetida ao longo do filme por diferentes personagens e que é tão proeminente nas campanhas publicitárias do filme, é uma das mais horrendas falas que ouvi nos últimos anos. Cada vez que as palavras saíam da boca de uma das personagens eu desejava que me caíssem os ouvidos, tamanha era a atrocidade. Nenhum ator, por muito prodigioso que seja, consegue vender esse horror linguístico, nem mesmo Keira Knightley. Esta minha insistência poderá parecer um pouco despropositada, mas há já bastante tempo que nenhuma fala individual me conseguia irritar tanto, expondo-se como uma ferida pulsante no centro de um guião problemático, apenas sublinhando todos os problemas do filme no seu cariz emocional e inspirador forçado e verbalização desajeitada e cliché.

Nem a mais engenhosa das estruturas conseguiria salvar um filme com tamanha insistência num tão grande desastre verbal, e The Imitation Game é, como seria de esperar, o desastre que essa fala parece pressagiar, mas não o desastre que eu esperava. O filme, tal como Unbroken de Angelina Jolie, parece querer explorar uma personagem histórica a partir de uma estruturação à volta de flashbacks, mas neste caso é acrescentado também o flashforward, criando uma estrutura biográfica cliché e cansativa, em que não parecem existir quaisquer ideias interessante ou elucidativas acerca dessa figura fascinante que foi Alan Turing (Benedict Cumberbatch).

 O filme desenvolve-se à volta de Turing, nomeadamente dos seus esforços durante o auge da Segunda Guerra Mundial para quebrar o código alemão Enigma, o que passou pela construção de uma máquina, ainda hoje olhada como um precedente para a tecnologia que viria a dar origem aos computadores modernos. Este génio britânico era, apesar dos seus feitos na guerra, um homem de segredos e cuja glória e heroísmo na guerra nunca foram realmente celebrados durante a sua vida, quer seja pelo secretismo da missão em que isto foi desenvolvido, quer seja pelos segredos do próprio Turing que era homossexual e que nos últimos anos da sua vida terá sofrido uma perseguição judicial que levou a uma castração química ordenada pelo estado e ao subsequente suicídio daquele que deveria ter sido um dos mais celebrados heróis da Segunda Guerra Mundial.

 Para além de representar os anos de guerra e o envolvimento de Turing, o filme também nos expõe a juventude do génio e o seu relacionamento, em rapaz, com Christopher (Jack Bannon), um amigo próximo e colega de escola, assim como os anos que antecederam a sua morte, nomeadamente a investigação policial que desvendou o segredo da sua sexualidade e desencadeou os eventos que levaram à sua morte.

 Tal como é apresentado pelo filme, Turing teria sido um homem com fortes problemas de cariz social e até psicológico, cheio de maneirismos e trejeitos extremamente marcados e uma mente literal e de uma lógica fria e inteligência alienante. Cumberbatch parece simplesmente interpretá-lo como uma variação do seu mais famoso papel de Sherlock Holmes, substituindo algum do seu carisma da série de TV, com uma falta de graça e de delicadeza social, que nada fazem para tornar Turing na figura complexa que o guião parece sugerir. Ele até consegue ter momentos de brilhante interpretação, nomeadamente as suas cenas com Knightley no papel de Joan Clarke, o único membro feminino da equipa que descodificou Enigma e a momentânea noiva de Turing, cujo trabalho tudo faz para elevar o filme. O caráter mais humorístico destas cenas funciona perfeitamente com os dois atores, sendo que Cumberbatch brilha especialmente quando lhe é permitida uma certa leveza na interpretação e não tanto o desespero trágico indicado para os seus momentos finais, que o filme parece castrar de qualquer intensidade pelo modo como trata a sexualidade de Turing.

 Ao contrário do que muita da discussão online parece sugerir, o que o filme necessitava em termos de representação da sexualidade de Turing, não seria decerto uma cena de sexo explícito, mas sim uma certa franqueza e honestidade no tratamento do tema. Turing parece, francamente, uma figura quase assexual tal como á apresentada pelo filme, o que faz com que partes do guião pareçam particularmente estranhas, como o facto de Turing acabar por chamar a atenção da polícia a partir do seu relacionamento com um prostituto que o filme nunca mostra. O modo como o filme aborda a tragédia de Turing assemelha-se ao modo de como muitos filmes de guerra mostram a violência, algo importante e indispensável para o filme, cuja menção e discussão devem ser evitados a não ser em momentos cruciais e cuja abordagem tem de ser o mais segura e redutiva possível de modo a não alienar ninguém na audiência. Até metade do filme, o guião parece esconder a sexualidade de Turing, trazendo-a à conversa no modo mais desajeitado possível. Para um homem que tanto sofreu devido à sua sexualidade, este tipo de tratamento num filme biográfico é um maior insulto que qualquer outro problema deste filme que não é pobre em problemas, há que se apontar.

 Sendo um desses problemas a clara falta de compreensão que o filme tem pela máquina de Turing, cujo funcionamento parece quase mágico, pelo menos do modo como o filme apresenta o seu desenvolvimento. Temos ainda o problema estrutural que o filme cria, estando todo o seu melhor material, sem contar com um diálogo tardio entre Turing e Clarke, na secção do filme situada durante a Guerra. Problemas de tom também são abundantes num filme que não parece saber gerir a leveza cómica de algumas cenas com a tragédia pesada e prestigiosa de outras. Junte-se a isto uma pletora de más escolhas narrativas como a inclusão de um espião soviético fictício e temos um filme extremamente problemático com uma conceção formal completamente banal, sendo que apenas a música surpreendentemente eficaz de Alexandre Desplat e os engenhosos figurinos de Sammy Sheldon, particularmente eficazes na criação de várias e díspares posturas e silhuetas masculinas.

 Para além de Cumberbatch, o elenco apresenta apenas duas interpretações de grande relevância. Matthew Goode, que aproveita o seu usual charme carisma de estrela de cinema neste filme para bons, se bem que expectáveis efeitos, e Keira Knightley, que se eleva acima de todo o filme, dominando completamente as mudanças de tom do filme sem danificar a sua caracterização de Clarke, e cuja presença é uma constante brisa de ar fresco neste drama britânico que, sinceramente, não conseguiria ser mais banal na sua execução se proactivamente tentasse fazer isso mesmo.

 O filme apresenta ocasionalmente momentos inteligentes ou pelo menos de bom entretenimento, como cenas num pub em que os jogos de namoros e flirts numa sociedade heteronormativa parecem ser particularmente satirizados sob o olhar neutro de Turing, ou os diálogos entre Turing e Clarke, sendo que a expressão facial de Knightley quando Turing lhe propõe casamento vale todo o filme que a acompanha. No entanto, com estes momentos, vêm também uma infinidade de escolhas terríveis e cenas que apresentam uma clara falta de gosto ou bom julgamento da parte dos criativos do filme, como uns ridiculamente inapropriados piscar de olhos à audiência que envolvem maçãs e arsénico.

 Um filme banal, uma biografia inspiradora e de resultados expectáveis e aborrecidos. Tudo isto é uma inevitabilidade nesta altura do ano em que os cinemas parecem de repente se encher de filmes semelhantes a este, cuja sede de troféus e prémios, assim como a sua necessidade de serem validados como importantes obras de grande prestígio, parecem erradicar qualquer originalidade que neles pudesse existir.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

THE THEORY OF EVERYTHING (2014) de James Marsh



 Ao contrário de muitos filmes biográficos, esta nova obra de James March não é focada na vida inteira de uma personalidade famosa, ao invés disto, The Theory of Everything foca-se num aspeto da vida do seu protagonista, ou talvez seja mais correto dizer dos seus protagonistas pois este é um filme sobre um casamento, sobre uma relação e dos seus contratempos, do seu fracasso, e da sua deterioração progressiva. Stephen Hawking (Eddie Redmayne) poderá ser a mais famosa figura neste filme, mas a sua mulher, Jane (Felicity Jones), recebe relevo semelhante ao do celebrado génio. É certo que o filme acaba por, ocasionalmente, descambar no já bastante caminhado terreno temático comum a tantos outros biopics, mas o modo como este filme nos expõe a este casamento mostra uma surpreendente maturidade para além de uma visão interessantemente inesperada, tendo em conta a banalidade na execução de grande parte do filme.

 O filme observa a relação de Stephen e Jane Hawking desde o seu primeiro encontro até ao seu divórcio, tendo uma espécie de epílogo numa visita à casa Real em que o prodigioso génio terá sido acompanhado pela sua primeira mulher. Para além disto, o filme é uma representação dramática do deterioramento físico sofrido por Stephen vítima de esclerose lateral amiotrófica (ELA), e o modo como isto afetou o casamento dos dois protagonistas. O filme é curiosamente maturo no modo como explora a evolução da sua relação, sendo especialmente interessante e refrescante no modo como não oferece grandes juízos de valor no comportamento dos dois, que acabam por encontrar conforto noutros indivíduos fora do seu casamento, Jonathan (Charlie Cox) e Elaine (Maxine Peake), com quem Jane e Stephen acabariam por casar respetivamente.

 Há, sem dúvida, quem se manifeste contra esta noção de imparcialidade da parte do filme, sendo que já li vários textos que apontam para um certo desrespeito para com a figura de Jane e para uma demasiada glorificação de Stephen. No entanto, eu não concordo com estas visões, no máximo eu apontaria para uma certa falta de complexidade, para uma certa simplificação, na concretização dos dois protagonistas. Este pode ser um filme com uma surpreendente maturidade e inteligência, mas continua a padecer de muitos dos problemas usuais neste tipo de filme, especialmente no que diz respeito a uma escrita bastante simplista e bidimensional de personalidades complexas na vida real, não pense nenhum leitor que me deixei cegar pelo mar de mediocridade no panorama do cinema biográfico.

 Neste tipo de filme o trabalho do realizador não costuma ser particularmente notório, a não ser na sua banalidade, basta olharmos para alguns dos variados exemplos que marcaram o passado ano de cinema anglófono, especialmente os filmes que acabam por se tornar filmes de prestígio e candidatos ao Óscar como acabou por ser o caso deste filme com as suas variadas nomeações. Chamo a atenção a isto pois neste caso o estilo do realizador é bem presente, para grande detrimento do filme que é filmado por Marsh num registo para si familiar. O filme é-nos apresentado sob uma névoa de romantismo cinemático bastante flagrantes na banda-sonora assim como, principalmente, na fotografia do filme, típica de Marsh, em que tudo parece brilhar com uma luminosidade conferida pela sobre exposição da imagem. Para além disso o filme utiliza bastante manipulação de cor, conferindo-lhe uma estética bastante artificial, bastante polida e genericamente atraente, o que em certos momentos se torna bastante estranho e contraintuitivo para com o enredo e o comportamento dos seus protagonistas, Vejam-se as cenas de Hawking no hospital, tão luminosas e manipuladas como os primeiros encontros com Jane, a que um brilho romântico e inescapável é conferido pela fotografia.

 Mas o interesse para a maioria da audiência não será certamente a conceção plástica e musical do filme, ou mesmo a maturidade com que este consegue abordar o desenvolvimento do casamento no seu centro, mas sim na história de Hawking, essa celebrada figura famosa a quase todos os que vão ver o filme eu presumo, e no trabalho dos atores. Trabalho este, que tem sido bastante celebrado nesta temporada de galardões dourados, sendo que tanto Redmayne e Jones foram nomeados para os Óscares nas suas respetivas categorias.

 Redmayne é bastante eficaz, especialmente no que diz respeito à deterioração física de Stephen, se bem que nisto ele foi bastante ajudado pela equipa de maquilhagem do filme, especialmente na segunda metade deste. Mas, há que admitir, Redmayne não acrescenta nada de surpreendente à sua interpretação de Hawking, limitando-se a recriar o que é apontado pelo guião, tanto no que diz respeito ao lado físico de Hawking como ao curioso sentido de humor que parece transparecer em Stephen, mesmo na sua imobilidade física. Se bem que é difícil criticar este ator por interpretar um papel escrita de modo óbvio e simplista, de modo um pouco óbvio e simplista.

 Felicity Jones é menos interessante, estando presa a um papel menos desenvolvido que o de Redmayne, e com um péssimo trabalho da equipa de maquilhagem cuja ideia de envelhecimento feminino parece resumir-se a uma peruca de cabelo cinzento. Um grande problema que acabo por ter com a prestação de Jones provém da sua aparente incapacidade de retratar uma mulher a envelhecer, sendo que a não ser no que diz respeito ao seu crescente cansaço com Stephen, Jane nunca parece realmente envelhecer, o peso dos seus anos parece resumir-se ao seu comportamento face ao seu marido e pouco mais. Mesmo assim a atriz oferece grandes momentos quando emparelhada em cena com Redmayne, especialmente nos momentos mais finais do filme, sendo que a cena a seguir à traqueotomia que deixou Stephen sem a capacidade de falar, assim como a cena em que o casamento dos dois finalmente chega a um fim, grandes momentos para os dois atores e para a audiência que observa as suas melancólicas e cansadas caracterizações.

 Não é, claramente, uma obra de génio sem igual, ou mesmo merecedora das honras que tem recebido, mas comparado com muitos dos filmes seus semelhantes, The Theory of Everything acaba por se revelar como um agradável exemplo de filme biográfico. Marsh trabalha um guião limitado com escolhas óbvias e um pouco flagrantes, como o modo como os filhos de Hawking estão sempre a correr ou em constante movimento à volta do seu pai, contrapondo a sua trágica imobilidade, ou uma terrível cena com uma caneta e uma plateia de admiradores. Os atores trabalham de modo eficiente, se bem que praticamente ninguém para além dos protagonistas consegue realmente deixar grande impressão no filme, mesmo Charlie Cox com a sua charmosa presença. Mas é um filme de interessante maturidade, de refrescante foco, não numa vida inteira de glórias, mas num casamento falhado mas mesmo assim fascinante na sua resignação e perseverança ao longo dos anos.