terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

AMERICAN SNIPER (2014) de Clint Eastwood




 Antes de dizer o que quer que seja sobre este filme, há dois pequenos detalhes que deveria apontar. Eu tenho um admitido desagrado com a maior parte da obra de Clint Eastwood e olho sempre para o seu estilo classicista mas estranhamente relaxado apesar da sua sufocante seriedade, como um dos mais intragáveis trabalhos atribuídos a um realizador por muitos considerado uma lenda viva e “um dos grandes”. Segundo, antes de ver o filme, um dos meus maiores receios em relação a esta obra seria a flagrante exaltação patriótica e jingoísta que o tema e a ideologia política do realizador pareciam querer indicar. Por um lado o filme confirmou estes receios, por outro, o filme mostrou um lado um pouco surpreendente no modo de abordar esta temática pela parte do realizador veterano.

 O filme aborda a vida de Chris Kyle (Bradley Cooper), um membro dos Navy SEALS americanos, um sniper, e um veterano de guerra que acabou por encontrar a sua morte nas mãos de outro veterano traumatizado pela sua experiência nesses mesmos conflitos bélicos que elevam este tipo de homens ao estatuto de heróis da sua pátria. E há que apontar que a pátria é um elemento importantíssimo neste filme que tem como protagonista um admitido patriota, cujo patriotismo cego é algo que me colocou logo numa posição de falta de confiança para com a abordagem do filme dos seus temas.

  Mas é realmente nessa abordagem que Eastwood consegue alcançar algo de uma certa surpresa, mostrando o patriotismo bidimensional e cego de Kyle, assim como as suas crenças em que a violência e o homicídio são justificados para a proteção da sua pátria, sem fazer particulares julgamentos, positivos ou negativos. Aliás, para além de uma certa exploração do seu trauma e das marcas que a guerra deixa na psicologia danificada de Kyle, Eastwood mantém-se um pouco afastado da mente e da subjetividade do seu protagonista, observando o seu comportamento mais do que avaliando-o de um modo significativo. O argumento, por exemplo, mostra o modo como essa ideologia de justificação sistemática de violência terá origem na infância de Kyle, no seu pai em particular, mas quase que se reduz a mostrar esta influência paterna, deixando principalmente à audiência o juízo moral e ético que seria de esperar estarem presentes na execução do filme da parte de Eastwood.

 Mas, por muito defensível que seja a objetividade aparente de Eastwood existe, especialmente devido ao argumento e à estrutura do filme, uma grande defesa, ou mesmo glorificação de Kyle e da sua posição como um sniper, elevando, especialmente nos seus últimos momentos, Kyle a um mártir de uma guerra, um herói destruído pelo mal do mundo. Os momentos finais entre Kyle e a sua mulher, Taya (Sienna Miller), e os seus filhos, são particularmente notórios no modo como flagrantemente santificam este carneiro antes de este ser sacrificado num momento off screen, de que apenas temos conhecimento devido ao texto que aparece no ecrã, um apontamento textual que parece marcar presença em todos os filmes de cariz biográfico ultimamente.

 Outros momentos do filme, em contraposição a essa glorificação, parecem propor um ponto de vista nunca completamente explorado pelo realizador. Veja-se o modo como, numa sequência inicial, o filme passa do assassinato de uma mulher e de uma criança, dois bombistas, por Kyle, para uma cena de Kyle, em criança, a caçar com o seu pai, contrapondo o soldado que mata pela pátria, a um caçador que mata por prazer, ou ainda mais longe, contrapondo e comparando o modo como Kyle mata seres humanos com o modo como este mata animais. Isto acaba por não ter grande seguimento pois, como já disse, mais do que interessado em explorar os labirintos morais e éticos da figura de Chris Kyle, Eastwood parece mais empenhado em apresentar a sua figura, a sua persona, a sua vida, neste filme, observando-o sem grandes complexidades ou juízos.

 Por vezes, existem momentos que denunciam um pouco de jingoísmo que deixa um péssimo gosto na boca do espetador, como o modo como as vítimas e ataques terroristas são sempre mencionados especificamente como americanos e o próprio modo como o filme parece sempre tão pouco interessado em explorar o dito inimigo, reduzindo-o a uma ameaça monstruosa e indefinida assim como inumana e impessoal. Isto apenas corrobora essa falta de complexidade temática que já mencionei, essa redutividade apresentada pelo guião que, para ser sincero, não poderia ser mais banal na sua estruturação ou no modo de organizar e contar os momentos da vida de Kyle, focando-se grandemente na sua relação com a mulher, em grande parte para poder explorar, mais à frente no filme, o trauma de Kyle sentido já na segurança da sua pátria.

 O estilo de Eastwood, continua bastante simplista, prendendo-se a uma eficiência banal e a uma seriedade austera e, por vezes, sufocante. A única coisa a realmente apontar de interessante na conceção visual do filme é a sua fotografia que, apesar de arenosa e pouco colorida, não apresenta a dessaturação cromática que parece empestar todos os últimos filmes deste realizador, e que parecem sempre denunciar um realizador apreciador de uma seriedade e austeridade visual com um ódio à cor e que talvez estivesse melhor a realizar filmes em preto-e-branco, sendo que o desastre Jersey Boys é talvez o mais indefensível exemplo dessa estética de Eastwood. A montagem e o trabalho de som também são eficazes, mas nada de avassalador ou, francamente, merecedor dos laureais que tem estado a receber nesta temporada de prémios cinematográficos.

 No centro de tudo isto encontra-se a performance de Bradley Cooper, por este papel nomeado para um Óscar da Academia, e que é perfeitamente eficiente na sua representação de um homem simples, com códigos morais e éticos simples, inserindo a complexidade e expressividade necessárias em momentos chave do filme, sem oferecer a Eastwood nenhuma interpretação explosiva ou demasiado distrativa. Eastwood parece querer simplesmente observar Kyle, e Cooper parece estar perfeitamente em sintonia com esse registo, talvez um pouco pobre em criatividade. Miller também se revela como uma escolha sólida, se bem que o modo como o papel é escrito não lhe confere grande complexidade psicológica, mas, tal como Cooper, ela cumpre o seu papel no filme com a eficiência precisa para o funcionamento básico do filme.

 Com tudo isto dito, apesar de surpreendentemente seco e objetivo, o filme acaba sempre por revelar uma ideologia um tanto ou quanto jingoísta, e os momentos finais do filme trazem mais uma glorificação heroica do protagonista que um grito de protesto em relação aos horrores da guerra, cujo impacto, na perspetiva deste filme, é apenas importante na medida em que afeta irreparavelmente os heróis americanos, esses soldados patriotas que sofrem e morrem pela sua pátria, algo aparentemente inquestionável e necessário para a ordem do mundo. Não vou fazer mais juízos, tenho medo que as minhas próprias ideologias políticas influenciem em demasia a minha opinião deste filme, cujo estilo, independentemente de qualquer mensagem politica, me deixa muito a desejar como básico e funcional cinema americano.


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