sábado, 27 de junho de 2015

SEPPUKU (1962) de Masaki Kobayashi




O cinema japonês é algo pelo qual tenho um infindável fascínio. São várias as causas desta relação de religiosa admiração e devoção, mas gostaria de mencionar duas delas que, sob o meu muito pouco objetivo ponto de vista pessoal, marcam o cinema japonês como dois dos seus mais valiosos atributos em relação à produção cinematográfica ocidental, nomeadamente americana.

Um desses elementos está fortemente ligado à época da história do cinema nipónico em qual esta obra se insere. Falo do Japão do pós-guerra e sua produção cinematográfica, em que mestres como Kurosawa, Ozu e Mizoguchi chegaram aos mais altos píncaros da sua arte. Este filme foi realizado por outro mestre, o ousado e furioso Masaki Kobayashi, cuja filmografia inicial poderia ser muito facilmente reduzida à expressão “crítica sociopolítica”. É, na verdade, o modo como esta crítica é normalmente explorada no cinema japonês que me fascina. A sua dependência e harmoniosa relação antagónica com a sua rígida cultura e seus costumes. O seu uso de épocas passadas no comentário atual. A sua desconstrução dos rituais e costumes sobre os quais toda uma identidade cultural se assentava.

Se essa crítica é um elemento mais relacionado com o conteúdo e com a “mensagem” do filme, essa desdenhosa e vagamente simplista expressão, o outro aspeto do cinema nipónico que quero explorar brevemente neste texto tem muito mais a ver com o seu estilo visual. Estou-me a referir a uma enorme relação que existe no cinema japonês e o espaço, nomeadamente o modo como a figura humana se insere no espaço e este é retratado. Isto pode parecer algo que, de modo algum, se associa estritamente a uma obra nipónica, mas não consigo relembrar nenhum outro cinema nacional em que a arquitetura, por exemplo, tenha tão grandiosa importância na criação da experiência do filme.

Antes de me afogar totalmente numa dissecação da formalidade visual do filme, deveria, talvez, resumir um pouco a sua história. Ao contrário de outros filmes de que já aqui falei, penso que, neste caso, a história é algo inseparável da concretização e do soberbo impacto que o filme teve para mim.
O filme, tal como se deve entender pelo título, explora e desenvolve-se à volta do famoso ritual de seppuku, ou se preferirem harakiri. Esse suicídio ritualístico, que tanto se apoia em noções tradicionais de honra e dignidade pessoal, conceitos que, neste filme, se irão revelar um tanto ou quanto arcaicos e impossíveis de relacionar com a realidade do sofrimento humano.

Tsugumo Hanshiro (Tatsuya Nakadai) é um velho samurai, caído na ruína, e que aparece numa casa feudal em busca de condições que lhe permitam executar o ritual que lhe porá fim à vida. Aquando deste pedido é-lhe contado o relato de um jovem que terá tentado extorquir dinheiro ao senhor da casa dizendo que queria praticar o mesmo ritual. A sua espada havia-se revelado de bambu e o jovem teria sido obrigado a esventrar-se com essa mesma lâmina sem gume, uma morte de horrível sofrimento mas de suposta honra (no ritual de seppuku, o praticante deverá cortar o seu abdómen em cruz e apenas depois é que um segundo homem lhe porá fim à vida através da decapitação.). Este é um aviso que Hanshiro ignora, insistindo no ritual.

É revelado que ele seria o pai adotivo do jovem, de nome Motome (Akira Ishihama) e que, todo aquele enredo seria uma procura da vingança. Este seria o último ato de um homem que perdera o filho, a filha e o neto, tudo sob a sombra da suposta honra desumana pela qual o próprio protagonista se teria regido na sua passada existência como um samurai empregue por um senhor feudal.

Logo aqui, nesta breve explicação do enredo sobre o qual o filme se desenvolve, é possível perceber o caráter de crítica social e até de dissecação de costumes que é feito por Kobayashi nesta sua obra. Se outrora, a fúria social e política do autor, tinham sido bastante diretas, especialmente em obras como a sua célebre e colossal Ningen no jōken, aqui o seu ataque a uma sociedade japonesa contemporânea é filtrada, no modo que tantos outros nipónicos haviam feito, através da pátina do filme de época, nomeadamente o género japonês jidaigeki.

O filme está longe de ser uma glorificação heroica da figura honrosa do samurai tradicional, pelo contrário, o filme apresenta-se como um dissecação subversiva dos seus costumes, do seu apoio na tão falada honra. Através de um olhar que se pode dizer humanístico, Kobayashi expõe estes arcaicos conceitos como ideias de inconcebível aplicação à complexidade da condição humana. Ao mesmo tempo que critica e quase acusa uma sociedade de massas subservientes a costumes antigos e anacrónicos e a uma força maior politica nunca questionada.

Será essa mesma rigidez de pensamento e essa frieza honrosa que se manifestam na gloriosa linguagem formal do filme. Olhe-se o uso da arquitetura, nomeadamente no principal cenário da casa de senhor feudal em que a maioria da ação decorre. O espaço é imediatamente definido através de uma profundidade estática em que linhas geométricas parecem impor-se a qualquer figura humana ouse coexistir com a estrutura espacial. Existe uma frieza, uma rigidez na apresentação, a câmara, inicialmente, raramente se move, reduzindo a audiência em outro silencioso membro desse ritual que nas cenas do flashback nos é exposto em toda a sua lúgubre visceralidade.

O primeiro flashback é, aliás, um ótimo ponto de análise da linguagem formal de Seppuku. Em termos de movimento, há uma notória evolução no trabalho de câmara durante esta sequência, desde a estaticidade rígida a um movimento quase suave e quase predatório, finalmente atingindo o seu auge aquando do ato de violência física. Violência que não é de todo atenuada pela falta de cor. O contraste entre o branco frio e luminoso e a viscosidade negra do sangue parece obter um impacto ainda mais violento do que se víssemos a vermelhidão desse líquido.

A própria roupa branca da vítima, um elemento do ritual, nos aparece como num elemento visual de extrema violência. A sua branca luminosidade uma ameaçadora imagem de pureza visual e ideológica que se parece sobrepor a qualquer apelo a humanidade e empatia. Quando este trajo é envergado pelo jovem samurai ele próprio parece reduzido a mais um elemento geométrico na composição espacial. Apenas outro conjunto de linhas subserviente a uma ordem externa à qual o seu sofrimento em nada é relevante.

Também o som exagerado e montagem, que vai crescendo em intensidade e brusquidão, se manifestam como reflexos estilísticos do conflito entre ordem e humanidade. Mas, apesar disso, para mim, nada resume melhor isso que a simples imagem do jovem Motome, vestindo a sua roupa branca e sentado sobre um geométrico tatami, cujas linhas regulares o parecem consumir e subverter á condição de mero objeto.

Contraste-se essa rigidez formalística apoiada numa certa austeridade pictórica, bem sentida na própria pintura japonesa, com as suas harmoniosas e simples composições, com as imagens do segundo flashback, em que a felicidade idílica do protagonista parece constantemente acompanhada de uma quebra na rigidez geométrica do seu ambiente. As linhas arquitetónicos não são, nem de longe, tão marcadas como no primeiro flashback e o início desta recordação do protagonista parece constantemente acompanhada do elegante mas desordeiro movimento que uma chuva de pétalas confere ao background das cenas. Outra manifestação destes movimentos está no crescente vento que se faz sentir ao longo do discurso do protagonista que ocupa a maioria do filme. Quando a sua batalha vingativa final se inicia, os efeitos do vento no movimento de elementos cénicos outrora estáticos é bem visível.

Não quero fazer parecer este filme um frio exercício de técnica e estilo formal, há que lembrar que como um filme de samurais e como uma história de vingança sanguinária, o filme continua a ser uma obra prodigiosa. Mas podemos admitir este valor de entretenimento e eficácia de enredo e ao mesmo tempo perceber a magistralidade técnica exibida no filme. O trabalho conjunto entre o espaço cenográfico, a fotografia, os figurinos, a música rítmicas e o próprio som expressivo resultam num milagre de técnica que quase envergonha a maioria das outras produções internacionais da época. Mas este estilo nunca é sobreposto à crítica social, pelo contrário trabalha com ela para criar o filme que podemos hoje ver.


O final é um final trágico, tal como se pode supor quando percebemos o caráter da história como a vingança de um homem que tudo perdeu. No final do filme a própria verbalização da palavra honra parece trazer consigo um impacto repugnante. Uma obra-prima de Kobayashi que poucos anos depois iria regressar a temas semelhantes no seu também incrivelmente prodigioso Rebelião de 1967.

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