quinta-feira, 30 de julho de 2015

MADAME BOVARY (2014) de Sophie Barthes



 O que é que faz de um filme uma adaptação de uma obra de literatura? Uma transladação eficiente das intenções do autor literário para uma plataforma cinematográfica? Uma exploração nova por parte do autor do filme sobre a obra, criando uma obra independente da sombra do livro em si? No caso de uma obra como Madame Bovary, uma representação da psicologia das figuras literárias?

 Não quero afirmar desde já que a adaptação de Sophie Barthes da obra máxima de Gustave Flaubert, é uma boa adaptação literária em filme, mas quero desde já apontar para o facto que o filme desta realizadora (a primeira mulher a filmar esta tão adaptada obra) de certo modo falha todos os parâmetros acima referidos.

 Mas falha de um modo fascinante, não parecendo de todo ter como sua intenção suceder a nenhum desses parâmetros.

 Isto é possibilitado, em parte, por um guião que corta partes aparentemente essenciais da obra, como o facto de eliminar o final do livro, ou mesmo a filha do casal no centro do enredo. O outro elemento fulcral para esta minha conclusão acerca do filme é o modo como o filme observa e representa a figura central de Emma Bovary.

 Nas mãos de Barthes e da sua atriz principal, a australiana Mia Wasikowska, Emma Bovary nunca deixa de ser uma completa cifra para a audiência, algo a ser observado à distância com um olhar e motivações impenetráveis tanto pelo observador como, em certos momentos, pela própria personagem. Um momento em que Wasikowska se olha n um espelho lembra um momento semelhante em New York, New York (1977) em que Martin Scorsese dirigiu Liza Minnelli, indicando-lhe que apenas pensasse em não pestanejar os olhos, criando um olhar vítreo e impenetrável no produto final do filme. Tal como nesse momento do filme de Scorsese, persiste sobre Madame Bovary uma aura de estranheza em relação à sua figura central assim como uma aparente relutância de todos os envolvidos para interpretar, explorar ou resolver a personagem de Emma Bovary.

 O trabalho de Wasikowska é essencial no sucesso de tal retrato distante e essencialmente superficial de uma tão célebre figura literária que lembra o seu semelhante trabalho em Jane Eyre de Cary Fukunaga. Enquanto nesse filme, a atriz parecia conter no seu olhar uma vida interior nunca expressa pelas suas ações, neste filme o contrário existe, sendo que temos uma figura cheia de ações e reações externas cuja interioridade nos é completamente inacessível. Muitos dirão que isto é um defeito inabalável do filme, mas para mim uma interpretação assim confere algo especial ao filme, algo que o separa da infinidade de adaptações banais desta mesma obra que se espalham pela história do cinema como ervas daninhas a tentarem fazer-se passar por rosas.

 Ao negar a exploração ou mesmo a visibilidade ou mera compreensão de Emma, o filme nunca cai nos erros de simplificação ou interpretação forçada que atormentaram e afetaram outras mais célebres adaptações da obra de Flaubert, como o sufocante trabalho de Claude Chabrol de 1991. A distância que mantém da sua protagonista é também imensamente ajudada pelas escolhas textuais brevemente mencionadas anteriormente, mas também pelas escolhas de Barthes no que diz respeito ao restante trabalho de ator do filme, assim como aos aspetos formais do filme.

 Uma das escolhas mais discutidas da realizadora, foi o facto de esta ter decidido usar um elenco com sotaques deliberadamente díspares, não existindo, de todo, o normal sotaque inglês de filmes de época. Pondo logo de parte o facto que este é um filme passado em França no século XIX, e não em qualquer país de língua inglesa, há que observar o modo como tal escolha contribui para o jogo de distanciamento que parece caracterizar o filme. Isto é particularmente evidente quando temos cenas com um elenco maioritariamente a utilizar sotaques americanos, alguns deles com um toque de contemporaneidade que parece sempre chocar com todo o ambiente envolvente. A própria linguagem parece distanciar-se da narrativa, das personagens, da própria realidade em que os eventos do filme se desenrolam.

 Esse distanciamento da realidade dentro do próprio mundo do filme nunca é melhor expresso do que quando observamos os figurinos de Emma Bovary em relação ao mundo que a rodeia. O trabalho dos figurinistas deste filme (Christian Gasc e Valérie Ranchoux) em obras como Adieux à la Reine, deixou-me no passado bastante insatisfeito, mostrando um certo amadorismo e estilização desajeitada que nunca pareciam corresponder às produções onde se inseriam. Tal não acontece aqui.

 Visualmente, é impossível não olharmos para a figura de Emma sem nos apercebermos da sua desconexão com tudo o que a rodeia. Enquanto o resto do elenco do filme parece trancado numa estética de elegante reprodução de vestuário de época, um tanto ou quanto banal e tradicional, a figura de Wasikowska emerge constantemente como um figura estranhamente estilizada e colorida no meio do filme. As suas roupas parecem emergir de um filme completamente diferente, especialmente no que diz respeito à cor, sendo que em quase todos os planos em que se encontra presente, a figura de Wasikowska rasga a composição como uma pincelada de cor ácida e agressiva, quebrando e desequilibrando até as mais idílicas e pastorais imagens atraentemente capturadas pela fotografia de Andrij Parekh.

  Bovary é assim quase que incompreensível tanto para si, como para a audiência, como para o próprio mundo físico que a rodeia. Ora um insecto colorido ora uma flor tropical no meio de uma paisagem classicamente romântica. A distância, até visual, que Barthes insiste em impor à sua protagonista faz desta adaptação, não perfeita ou particularmente excitante, mas faz dela uma adaptação diferente. Quando falamos de uma obra que já foi tantas vezes adaptada, um pouco de surpresa e um pouco de variedade de intenções é muito mais do que a grande maioria deste tipo de adaptações de obras literárias de prestígio tem para oferecer.

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