segunda-feira, 31 de agosto de 2015

EX-MACHINA (2015) de Alex Garland



 O tema da inteligência artificial já foi abordado infindáveis vezes pelo cinema de ficção-científica, sendo que, a uma primeira análise, haverá pouco de original ou interessante na premissa do primeiro filme realizado por Alex Garland. Agarrando nos clichés e temáticas usuais deste tipo de filme, o realizador e argumentista consegue criar na sua estreia como realizador um dos filmes essenciais de ficção-científica neste panorama contemporâneo.

 A sequência inicial do filme imediatamente cria uma atmosfera pesada de frieza e precisão formal. Observamos Caleb (Domnhall Gleeson) no que parece ser o computador do seu emprego. Sabemos pouco, mas descobrimos que o protagonista ganhou uma oportunidade única na sua empresa. Tudo isto é feito sem diálogo, apenas este aparecendo quando Caleb chega ao fim de uma viagem de helicóptero, chegando à reclusa residência do chefe, criador, deus, da sua empresa, Nathan (Oscar Isaac).

 Sob as indicações e observações de Nathan, Caleb vai testar Ava (Alicia Vikander), a mais recente criação do cientista, um aperfeiçoamento da inteligência artificial sob a forma de um robot humanoide claramente feminino. Desta premissa do teste, o filme desenvolve-se numa estrutura rígida, acompanhando e sendo ritmado pelas conversas diárias entre Caleb e Ava. Como seria de esperar, questões de ética e moral começam a emergir ao longo da narrativa de Caleb, sendo que observamos a atração que ele tem por Ava. Um jogo de manipulação, vitimização e poder tem início entre os três protagonistas, sendo que o final é extremamente previsível, mas não por isso menos forte no seu impacto.

 Ava é, obviamente, uma criação com propósitos sexuais. Enquanto as suas mãos delicadas e face estão cobertas de “pele”, o resto do seu corpo ou está definido pelos volumes de uma espécie de rede cinzenta, como o peito de Ava, ou está com os seus complexos mecanismos visíveis. Nunca duvidamos que Ava seja humana, ela é sempre apresentada como um mecanismo, sempre a fazer ruídos mecânicos e num estado perverso de quase permanente nudez. O seu design é uma perfeita visão da mulher tornada objeto sexual, aqui com a inumanidade do termo objeto trazido a um extremo perturbante.

 O resto do desenho do filme é igualmente exímio, criando um mundo frio e geometricamente preciso. O uso de paredes de vidro e superfícies limpas confere uma espécie de serenidade desumana a toda a obra. A calma absoluta refletida na cenografia como que uma opressão constante em que a beleza e harmonia parecem expostas na sua inerente desumanidade. Até a música e o som parecem seguir o mesmo caminho, absorvendo o filme numa paisagem sonora que vai fugindo da melodia e se afunda num som quase hipnótico. O filme, quase sempre calmo e friamente distante, ganha uma qualidade perto do sonho, um pesadelo incrivelmente belo e polido. As conversas entre Caleb e a figura de Ava são particularmente bons exemplos da enervante serenidade do filme, mesmo em termos visuais, com os reflexos luminosos no vidro a separarem as duas identidades. Uma racha torna-se um grito de violência eminente e uma parede torna-se um inegável símbolo de aprisionamento.

 A figura desnuda de Ava é controlada e aparentemente manipulada pelos dois protagonistas masculinos, existindo como que um objeto sem iniciativa própria ou consciência de si mesma num mundo dominado por homens. Ao longo do filme vemo-la ser definida pelo olhar dos dois homens ora como experiência, criação, escrava sexual, vítima, donzela indefesa, ou mesmo predadora. Os dois homens objetificam-na mesmo quando olhando para ela romanticamente, ambos a tornam num elemento de uma narrativa individual e o filme parece jogar com essas mesmas narrativas, inequivocamente ligadas a questões de género, e julga duramente ambas as figuras masculinas pelo seu comportamento. Mesmo o aparentemente inocente e heroico Caleb parece-nos, pelo final do filme, uma figura de poder e privilégio patriarcal. Enquanto tornadas em fantasias na mente dos seus “mestres”, as duas figuras femininas do filme, incluindo a “criada” de Nathan, Kyoko (Sonoya Mizuno), são apresentadas como sobreviventes silenciosamente em revolta.

 A principal arma nesta revolta é a sua condição como objetos sexuais, explorada por Ava como modo de manipulação. A sexualidade e a ideia de género parecem existir no filme como que num registo performativo. Em Ava, uma existência humana, mas nova e artificial, o género é algo que ela interpreta, manipula e aprende. Ao longo do filme, ela interpreta os seus papéis fantasiosos da perspetiva masculina, acabando por se apresentar no final, sozinha, olhando-se a si mesma ao espelho, num belíssimo momento de genuíno fascínio e inocência na exímia performance de Alicia Vikander.

 A atriz não está sozinha na sua brilhante prestação, sendo que o trio central do filme apresenta aqui o melhor trabalho que até agora vi nas suas respetivas filmografias. Gleeson é incrivelmente fácil de observar como um confuso e inocente herói relutante. Uma figura meio arquetípica, meio cliché, aqui reduzida e dissecada até se deixar no final, um homem patético e perdido. O facto de o ator nunca salientar a crítica implícita no texto e realização, comportando-se como o sofredor herói romântico ao longo do filme, ajuda a criar a atmosfera de desconforto constante para a audiência, cuja reação instintiva para com a sua figura é a de empatia e identificação.

  Mas é Isaac que completamente domina o filme para mim, com o seu aspeto que grita “génio louco megalómano” e uma atitude enervantemente afável. A camaradagem da figura descontraída de Nathan parece mais apropriada a um membro de uma fraternidade num filme de Hollywood que a principal figura antagónica deste filme de ficção-científica. A manipulação inerente ao papel de Nathan nunca está particularmente oculta mas há algo de verdadeiramente bizarro e erraticamente agressivo na sua presença. Claro que não poderia mencionar o trabalho de Isaac sem referir o momento mais absurdamente memorável do filme, em que Isaac e Mizuno iniciam um número de dança aparentemente espontâneo.

 O filme, apesar dos meus profusos elogios, tem os seus problemas, nomeadamente no que diz respeito ao seu diálogo. É bastante sentido nas repetidas conversas entre Caleb e Ava que o realizador pretendia algo profundo e inequivocamente fascinante e que capturasse a atenção da audiência, mas o uso de fórmulas e arquétipos deste tipo de cinemas prova-se tanto uma bênção como um problema difícil de resolver. Há algo de cansativamente previsível no filme, que ao mesmo tempo lhe confere um sentido de tragédia inevitável. Haverá filmes muito semelhantes a este que falam de temas iguais ou parecidos e que mostram muito mais inovação ou perspicácia, mas julgando este filme individualmente, é difícil negar a qualidade, mesmo que puramente formal, de Ex-Machina.


domingo, 30 de agosto de 2015

HÖSTSONATEN (1978) de Ingmar Bergman


 Ontem foi o centenário do nascimento de Ingrid Bergman e devido a isso gostaria de celebrar o seu trabalho, se bem que com um dia de atraso. Decidi escrever então sobre o que eu considero o filme em que ofereceu a sua mais milagrosa prestação.




 Höstsonaten foi o último filme de Ingrid Bergman, essa lenda do cinema que passou do estrelato no seu país natal da Suécia a uma figura essencial na história do cinema de Hollywood. Neste filme, a atriz trabalhou com a outra grande lenda do cinema sueco, Ingmar Bergman. Esta foi a única colaboração destes dois monumentos cinemáticos e com a sua intensidade fulminante e mestria opressiva, há que admitir que apesar de apenas existir um filme conjunto dos dois, é uma das obras-primas na filmografia de ambos estes astros da história da sétima arte.

 O filme é uma das obras mais intensamente emocionalmente insuportáveis na filmografia de Bergman, lembrando Viskningar och rop na sua implacável crueldade e foco na história de angústias e ressentimentos acumulados numa família de mulheres. Aqui, Charlotte (Ingrid Bergman), uma consagrada pianista, visita a sua filha Eva (Liv Ullmann), após a morte do companheiro que tinha vivido com ela nos passados 13 anos da sua vida. Eva vive com o seu marido, Viktor (Halvar Björk), isolada numa paróquia bem longe dos palcos internacionais conhecidos da mãe, assim como cuida da sua irmã, Helena (Lena Nyman), uma figura doente e frágil que no filme parece um símbolo pulsante da mortalidade humana. Observamos a chegada da matriarca, a interação entre os habitantes da casa, e finalmente somos testemunhas de uma noite agonizante de acusações de Eva para com sua mãe.

 O filme, no entanto, longe dos infernos emocionais e psíquicos em que se emaranha no seu desenvolvimento, inicia-se e encerra-se com cenas bastante semelhantes na sua teatralidade e abjeta frieza. Aquando do início ouvimos Viktor descrever em pormenor a sua mulher, ele assegura-nos, olhando diretamente para a câmara, que a compreende e percebe totalmente. No entanto, a sua presença no resto do filme, é a se uma figura fugaz e passageira, como que um fantasma que assombra a casa na sua falta de importância. É difícil visualizar tal ligação entre marido e mulher e Bergman, esse mestre do terror existencialista, e parece-nos que neste mundo tal entendimento é uma impossibilidade. A câmara é particularmente perspicaz e precisa, mostrando o marido de costas para a figura desfocada da mulher. Tal entendimento entre humanos, tal compreensão entre indivíduos parece ser uma mera ilusão, uma intelectualização forçada da condição de existir com outros que não nós. A impossibilidade é tão clara que a própria imagem parece troçar do discurso.

 Tal jogo visual é comum em Bergman e aqui é particularmente eficaz. Há uma simplicidade enganadora no filme, que está superficialmente longe dos ostentosos triunfos visuais e formais de Persona ou Fanny och Alexander. Desde as roupas das figuras à cor do céu e das folhas das árvores o filme é mergulhado numa confortável atmosfera outonal. As cores são quentes e convidativas, muitas vezes as figuras parecem vestir-se coordenadas com o cenário, criando uma beleza omnipresente, uma harmonia opressiva na sua precisão. No entanto, tal atmosfera decididamente outonal traz consigo conotações impossíveis de ignorar. O outono e suas paisagens de árvores despidas é uma estação muitas vezes associada com a mortalidade, como se a beleza do filme escondesse quão moribundas as figuras do filme estão. A morte, um espectro presente em cada movimento de Charlotte, cuja proximidade do fim parece fazer dela uma figura particularmente resistente a participar nos jogos de ressentimentos da filha. Também na sua escolha de atriz em fim de carreira, o realizador parece ter encontrado algo de celestialmente belo e inequivocamente moribundo em simultâneo.

  Numa outra cena do filme, quando a sua filha prevê que a Charlotte irá descer para jantar envergando trajes negros e interpretando o papel da viúva chorosa, a figura que emerge não é a da viúva mas a de Ingrid Bergman, estrela de cinema e presença luminosa. Ela desliza pelo espaço envergando um vestido que queima a imagem com a intensidade da sua cor vermelha e a sua postura é uma de segurança e jovialidade opressiva. A imagem da estrela é usada pelo filme brilhantemente, mostrando Ingmar Bergman num jogo quase nunca visto no seu cinema. Apesar de trabalhar muitas vezes com atores tornados célebres ou pelo menos conhecidos, o realizador raramente utilizava a persona da estrela nos seus filmes, mas aqui a presença de Ingrid e sua carga e impacto como uma lenda de Hollywood e do cinema internacional, cheia de controvérsias no seu passado, mostra-se inegavelmente inseparável da exploração do realizador sobre a personagem dentro do filme.

 Voltando a essa previsão errónea da indumentária da mãe, Eva, ao longo do filme, volta a fazer previsões ou a presumir coisas que não se registam. A sua visão do mundo cuidadosamente desenvolvida, intelectualizada e friamente assimilada parece sofrer de uma qualidade inequivocamente humana. Como ser humano, ela prova-se incapaz de olhar e entender o ser humano à sua frente. Mãe e filha, marido e mulher, um jogo de figuras sozinhas no mundo a tentar perceber a sua posição nele e a sua relação com as outras figuras solitárias. No seu momento de expressão assegurada, o clímax da noite de acusações que instiga sobre a sua mãe, Eva parece não ouvir os gritos da irmã desesperada, como que ao ganhar a voz para confrontar a mãe, ela tivesse ficado completamente surda e isolada ao resto da existência e necessidade humana que a envolve. O egoísmo da realização e exploração pessoal tornados antagónicos da empatia e básica solidariedade para com o próximo.

 Essa discussão, que consome grande parte do filme, é um dos momentos mais inesquecíveis de toda carreira do mestre sueco. Anos de história pessoal são trazidos ao de cima. Eva, como que uma filósofa amargurada assimilou todo o seu sofrimento em argumentos intelectualmente opressivos e tudo descarrega na sua mãe. Charlotte, face à sua filha parece uma rainha gelada tornada vítima indefesa. Eva é maioritariamente estática nesta noite de horrores, enquanto Charlotte se vai movendo pelo espaço, até desabar derrotada. A empatia é uma sombra distante e Bergman parece criar uma ode perversa ao poder humano de infligir dor noutros humanos.

 Ambas as atrizes são verdadeiras forças da natureza. Bergman é um poço infindável de elegância e frieza jovial nos seus primeiros momentos, mostrando uma leveza cruel nas suas atitudes e um constante julgamento silencioso da sua filha. O momento em que Bergman mantém a sua câmara na atriz enquanto Charlotte ouve a sua filha tocar piano de modo pueril, é de uma crueldade subtil e absoluta. A desilusão, gozo, desapontamento e a máscara da felicidade e gentileza forçada que transparecem na expressão de Ingrid Bergman são um verdadeiro testamento ao seu magistral trabalho. Quando a vemos sucumbir às acusações implacáveis da sua filha as máscaras e superioridades da figura maternal vão-se gradualmente dissipando, deixando no final uma figura emocionalmente estilhaçada, uma sombra de uma lenda, uma estrela caída e horrivelmente extinta da sua luz.

 Ullmann é igualmente impressionante, criando uma figura aparentemente inofensiva que da sua dor e angústia palpável emerge momentaneamente como uma figura vampírica, uma agressora violenta e imparável no seu ataque. A criança que em tempos foi parece assombrar o trabalho da atriz, cujas primeiras altercações com a mãe parecem transpirar de um respeito infantil pela sua figura maternal que vemos desaparecer e revelar o ressentimento absoluto que a consome. Há uma superioridade visceral no seu ataque, algo talvez originário do facto de que Eva nunca viu o seu filho crescer, tendo este morrido em criança. A tragédia e amargura que a consomem parecem despontar como discursos cuidadosamente escritos e preparados, ou como filosofias pessoais curadas e aperfeiçoadas ao longo de anos de solidão. Eva, como uma intelectual, filosofa, pensadora sobre a crueldade e condição humana com uma particular fixação na sua infância e relação com os pais, parece emergir como uma representação do próprio Bergman.

 Eu diria, aliás, que ambas as mulheres centrais ao filme, parecem agir como realizadoras da sua visão sobre si mesmas. Cenas como o monólogo de Charlotte enquanto sozinha no quarto ou as acusações de encenar a sua tristeza por parte da filha, são bons indicadores disto. No entanto, eu diria que são os flashbacks que realmente conferem essa impressão à audiência. Imagens rígidas e belas na sua estaticidade teatral em que vemos visualizadas as histórias pessoais das duas protagonistas. Em Charlotte ela é uma figura sofredora que se impõe, por exemplo, como um ponto colorido num quarto de hospital branco, a morte do seu companheiro deixando de ser sobre o morto e sim sobre a martirização idealizada de Charlotte.

 A precisão e frieza desses tableaux é algo que se estende ao resto do filme. Há uma delicadeza e elegância no filme que parece movimentar-se com o ritmo estudado de uma sonata. A técnica de Bergman tão aperfeiçoada e magistral na sua eficácia perfeita como um músico prodigioso em pico de carreira. Aqui os músicos da sonata são os quatro humanos enclausurados na casa em que o filme decorre, tocando a melodia do sofrimento humano composta por Bergman num dos seus mais belos filmes. Ver Höstsonaten é olhar o ser humano pelos olhos de Bergman e chorar. É olhar um ecrã e ver nele nós mesmos, a nossa solidão existencial, e a possibilidade inesgotável que temos para a crueldade.


sábado, 29 de agosto de 2015

CAT PEOPLE (1942) de Jacques Torneaur



 Quando escrevo e publico estes meus textos, no título incluo sempre o nome do seu realizador, como que lhe atribuindo a autoria do filme. Normalmente não me questiono acerca de tal escolha, mas com este filme, quase que me sinto injusto ao apenas incluir o nome de Torneaur e não o nome de Val Lewton, o produtor do filme. Lewton, um imigrante originário do que agora é a Ucrânia, que liderou uma das unidades de produção dos estúdios RKO depois de ter abandonado uma posição como argumentista para a MGM. Na RKO, este produtor ajudou a criar uma série de filmes de terror ditos de série B. Esses seus filmes prevalecem hoje em dia, sendo por muitos considerados, incluindo por mim, como algumas das melhores obras do género.

 Em grande parte destes seus filmes de terror, Lewton oferece um filme que mais que um filme de terror parece inicialmente apresentar-se como um drama normal. Cat People, por exemplo, inicia-se num registo de um romance trágico. Vemos Irena (Simone Simon) e Oliver (Kent Smith) conhecerem-se no jardim zoológico, onde Irena visita quase obsessivamente uma pantera e a desenha. Os dois imediatamente parecem sentir uma ligação, um meet cute clássico, e rapidamente estão a tomar chá em casa de Irena, onde ela reconta uma história da sua terra natal na Sérvia. Essa lenda de satânicos que se transformam em felinos assombra o resto do filme, sendo que a possibilidade de ser uma dessas criaturas atormenta toda a existência de Irena, que, mesmo depois de se casar com Oliver, recusa-se a beijar ou ter qualquer relação íntima com o seu amado. O seu medo de que a paixão irá libertar a besta dentro de si vai criando uma espiral doentia de repressão que vai tornando cada vez mais frágil e neurótica a figura da protagonista. Com um casamento perturbado e tenso, Oliver vai-se aproximando de uma colega de trabalho, Alice (Jane Randolph), despoletando os ciúmes de Irena. Neste ambiente de dúvidas e tensão, tanto matrimonial como sexual e identitária, o terror que torna o filme célebre começa a revelar.se.

O desejo sexual, e a ação da protagonista em relação a este, tornam-se aqui a chave do seu comportamento e do conflito do filme. Muitas vezes no futuro este tipo de mecanismo narrativo e temático seria utilizado por filmes de terror, mas raramente com o mesmo tipo de delicadeza que aqui se encontra. É difícil detetar a delicadeza de que falo no diálogo, muitas vezes óbvio, mas no tratamento da sua protagonista, o filme parece encontrar empatia e uma figura aterrorizada da sua própria natureza. Os moralismos comuns, que ditam o funcionamento do cinema de terror, parecem aqui escondidos. Apesar de ser a antagonista do filme, o olhar do filme sobre a sua figura nunca é a do macabro interesse sobre um monstro, mas o de um melancólico olhar sobre uma figura trágica.

 A paranoia inflama toda a segunda metade do filme, sendo que, até ao final impingido pelo estúdio, nunca temos a certeza se estamos a observar uma manifestação do sobrenatural ou a demência psicótica de uma mulher reprimida com acesso à chave da jaula de uma pantera de jardim zoológico. O terror no filme depende, aliás, maioritariamente de uma dúvida constante e ameaçadora. As sombras que abundam no filme parecem ser manifestações visuais dessa dúvida, tornando impossível identificar a origem de sons exagerados de modo expressionista ou perceber se uma presença que persegue Alice na escuridão de uma rua urbana é Irena ou um felino monstruoso.

O facto de o filme ainda emergir como uma obra genuinamente assustadora, mesmo para uma cética audiência contemporânea, advém grandemente do trabalho de Torneaur, assim como do seu diretor de fotografia Nicholas Musuraca. As sombras que já referi são uma constante presença no filme, tornando o edifício do apartamento de Irena (um cenário reciclado de The Magnificent Ambersons) numa caverna de madeiras trabalhadas e sombras cortantes, ou uma rua noturna num pesadelo interminável. O uso de luzes extremamente intensas sobre os atores como numa sequência num atelier de arquitetura conferem ao filme um contraste chiaroscuro particularmente notável.

 Mas o som que acompanha esses visuais cristalinos, assim como os ritmos precisos da sua montagem, também se mostra essencial. Uma cena, numa piscina mal iluminada, não teria uma fração do impacto que tem não fossem os sons da criatura que emergem das sombras irregulares nas paredes do edifício. O olhar assustado da vítima tornado o olhar da audiência a partir de uma montagem que sugere um ponto de vista e um ritmo completamente tenso e aterrorizado. Tudo isto foi alcançado com um orçamento mínimo, fazendo com que muitos tentassem copiar as suas técnicas, se bem que sem a mão precisa e magistral de Torneaur esses outros filmes acabaram, muitas vezes, por se mostrar fracas tentativas de recapturar o sucesso desta obra-prima do terror clássico.

 Este tipo de filme está longe de ser um exercício do virtuosismo dos seus atores, mas isso não impede Simon de oferecer uma das melhores interpretações na filmografia da unidade de Lewton. A atriz francesa está bem longe de qualquer suspiro de naturalismo, parecendo sempre uma figura bastante amaneirada e artificial, mas isso combinado com a sua aparência confere-lhe quase que a presença de uma boneca de porcelana. Há algo de perversamente fascinante em observar a face redonda e olhos grandes e inocentes de Simon se impregnarem de dúvidas e nervosismos exagerados, como que se observássemos essa dita boneca implodir sobre si mesma. Este tipo de relação milagrosa entre uma atriz de certo modo limitada e um material e realizador exímio faz lembrar o modo como Hitchcock usou, anos mais tarde, a figura angélica e imaculada de Tippi Hendren como meio para explorar a psicose da protagonista de Marnie.

  Cat People é uma obra essencial na história do cinema de terror. Uma lembrança sensacional de como o génio artístico e criativo pode emergir das mais limitadas situações. Um filme B de um estúdio de Hollywood na sua era dourada, pode não ser um lugar lógico onde se procurar criatividade e ambições artísticas, mas neste filme existe uma beleza assombrosa que provém tanto da sua elegância como da sua pura eficiência. Uma maravilhosa peça de entretenimento e um dos mais importantes filmes de terror jamais criados.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

BANDE DE FILLES (2014) de Céline Sciamma



 Quando, recentemente, escrevi sobre o primeiro filme de Xavier Dolan, apontei como o seu estilo imaturo permitia ao filme existir como uma obra sobre a adolescência que vibrava com a mesma intensidade da sua personagem, um filme sobre um adolescente feito por um adolescente. Com o seu mais recente filme, a realizadora Céline Sciamma demostra uma abordagem bastante distinta. Aqui não existe volatilidade estilista nem ritmos erráticos, havendo, ao invés, uma maturidade e segurança que apenas poderiam existir no trabalho de uma criadora com uma certa maturidade estilística. Isto não impede o seu trabalho de ser um bom filme, sendo que ambas estas visões são obviamente válidas, oferecendo diferentes possibilidades.

 A protagonista do filme é Marieme (Karidja Touré), uma jovem afro-francesa de uma família de classe baixa. Ela vive com a sua irmã mais nova e com o irmão mais velho, muitas vezes agressivo e abusivo. A sua mãe é uma figura muito ausente do filme, aparecendo no seu trabalho nas limpezas, e pouco mais. O filme vai seguindo Marieme, especialmente no que diz respeito à sua relação com um grupo de raparigas que um dia a convida para irem a um centro comercial juntas. O gangue no centro do filme é liderado por Lady (Assa Sylla) e passam os seus dias a roubar, beber, a provocar lutas, e a se divertirem, gastando o dinheiro que vão acumulando com as suas atividades. Elas vestem-se de cabedal e joias baratas, parecem inspirar-se nas estrelas pop americanas e criticam o modo como todos os outros se vestem. Sob o olhar de Marieme, batizada de Vic por Lady, vemos a ideia sedutora de pertencer a um grupo assim.

 Pelo filme vemos Vic ou Marieme, ganhar relevância no grupo, desenvolver uma relação romântica com um amigo do irmão e progressivamente ir-se afundando no mundo das drogas. Mais do que julgar as ações da sua protagonista, o filme vai observando Marieme sem grandes moralismos, vendo a sua confusão e juventude a uma distância respeitosa e criando uma enorme atmosfera de empatia. Há até uma certa atmosfera de celebração, mesmo quando o filme se torna particularmente violento e até desconfortável. O filme é uma busca, uma procura, um caminho com um destino incerto e talvez inexistente. Mais do que procurar uma conclusão, o filme parece procurar a confusão e a reflexão da sua protagonista, evitando muitos clichés usuais de tais narrativas adolescentes.

 Um dos melhores aspetos do filme é o modo como demonstra a necessidade de Marieme de se integrar no grupo de raparigas. Há algo de confuso e perdido na figura da jovem protagonista, como se estivesse numa constante procura por um lugar, por uma identidade. Ao longo do filme essa fonte de identidade, de propósito, vai-se alterando, mas inicialmente, quando se começa a tornar parte ativa do gangue, o olhar da realizadora é particularmente exímio. Há algo de sedutor e atrativo na pertença, na aceitação dos pares e isso é magnificamente exposto pelo filme. Numa das mais belas cenas do filme, a música de Rihana acompanha as raparigas enquanto dançam num quarto de hotel que pagaram com dinheiro roubado. A cena começa abruptamente num grande plano de Lady, como se estivéssemos, de repente, num videoclip, mas à medida que nos afastamos vamos vendo quão maravilhosamente comum o momento pode ser, uma festa-de-pijama glorificada. Marieme começa por olhar o grupo separada da sua dança mas depressa as acompanha, juntando-se ao grupo. Fazendo parte dessa irmandade e tendo propósito e lugar.

 Nem todos os momentos do filme transparecem o génio da cena do quarto de hotel, mas o sentido de delicada observação de Marieme é omnipresente. Poucas vezes se vê uma sinergia tão potente entre uma personagem e um realizador. O filme é, formalmente, pouco original e simples, mas tem uma certa eficiência e clareza que lhe conferem uma certa elegância.

 As imagens têm um papel importantíssimo no filme, os figurinos e caracterização ajudam-nos a ver os modos como a protagonista vai criando a sua identidade, mudando a sua imagem. Primeiro para se assemelhar às outras raparigas, mas, mais tarde no filme, para se dessexualizar quando está a viver numa casa com dois homens. O modo como as personagens femininas se veste parece sempre balançar-se entre uma criança a brincar com roupas de adultos e um adulto a criar fachadas como armaduras para enfrentar o mundo. Durante algumas das cenas de maior violência do filme, o arrancar de uma peça de roupa a uma rapariga torna-se um troféu de guerra, e um corte de cabelo torna-se uma humilhação pública.

 Também a própria iluminação parece oscilar entre o naturalismo geral do filme e uma beleza interessantemente simples encontrada no mundo da protagonista. Um quarto de hotel iluminado de azul, ou um beijo escondido nas sombras a ser intermitentemente iluminado por uma luz automática, são ambos momentos de uma beleza subtil e não ostentosa.

 A acompanhar o magnificamente intimista trabalho da realizadora, temos um elenco formidável, sendo que a atriz principal é particularmente louvável. A sua expressão é limitada, os seus olhos tendem a fugir ao olhar dos seus companheiros de cena, há uma constante insegurança e confusão interna no seu trabalho por muito assertiva que Marieme possa parecer. O sentido de irmandade e camaradagem entre as raparigas do gangue é particularmente sublime.


 O filme é fantástico, disso não tenho dúvidas, mas não sei se lhe chamaria ambicioso, pelo menos no que diz respeito à sua forma. Há algo de inequivocamente limitado na sua visão, algo de específico que é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. A clareza e direção firme da realização são louváveis, conseguindo apesar disto obter momentos emocionalmente fortes, sem nunca cair no melodrama ou dramatismo forçado, mas há uma certa falta de criatividade e originalidade que não me deixa completamente celebrar o filme. De qualquer modo, o seu olhar não moralista, direto, simpatético e gentilmente humano sobre a vida de uma jovem a tentar descobrir o seu lugar no mundo fazem do filme uma experiência que talvez não seja essencial e imperdível mas que é certamente interessante e portadora de uma delicada beleza.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

PHOENIX (2014) de Christian Petzold



 O último filme de Christian Petzold parece aparecer como que transplantado de uma época passada. O filme é um film noir de ímpetos e ambições classicistas, situado na Alemanha a seguir à segunda Guerra Mundial e com Nina Hoss a regressar como protagonista de Petzold, continuando a sua frutífera relação profissional.

 Hoss é aqui Nelly Lenz, uma antiga cantora de cabarets e sobrevivente do Holocausto que regressa a Berlim após ter sofrido uma reconstrução facial. Nem ela mesma se consegue reconhecer na sua nova face, sendo que quando descobre o seu marido, Johnny (Ronald Zehrfeld), ele não a reconhece apesar de ver nela uma parecença com a sua mulher. É esta fala de reconhecimento que despoleta o enredo do filme, indiscutivelmente inspirado pelas heranças noir de outrora, como um Vertigo nas ruínas de Berlim. Johnny decide usar Nelly, cuja identidade ele desconhece, para reclamar a herança da mulher, transformando a estranha na imagem da sua supostamente falecida mulher. O esquema vai-se tornando cada vez mais obsessivamente convoluto, à medida que surgem dúvidas sobre o papel de Johnny na detenção de Nelly pelos Nazis.

 Com estes jogos de dúvidas, mistérios e personas falseadas, o filme vai tornando o romance central num quieto e silencioso thriller psicológico, com Nelly no seu pulsante centro. Na periferia do casal, temos ainda Lene (Nina Kunzendorf), uma amiga judia e rica de Lenny que a ajuda no seu tempo de necessidade. Seguindo a tradição noir, a amiga nutre uma obsessão romântica pela sua protegida, querendo afastá-la do espectro do marido e fugir com ela para Israel. O filme parece destinado à inevitável tragédia mas, num gesto de soberba reticência, a obra termina com o reconhecimento, uma troca de olhares cheia de informação não vocalizada, uma mostra de elegante ambiguidade e ambição estrutural.

 Pela minha descrição já deverão ter-se apercebido da minha afeição pelo texto, baseado no romance Le Retour des cendres de Hubert Monteilhet, cujo toque ora de noir ora de pulp fiction resulta numa criação deliciosamente anacrónica. O filme parece emergir, como já disse, de uma época passada, sendo que a sua recusa de conclusão é um dos poucos elementos que me parecem fugir à usual negrura e niilismo das conclusões desses filmes noir que tanto refiro. Para além de tudo isto, há que ainda mencionar o modo como o guião, por muito convoluto e exuberantemente dramático que possa ser, tem em si uma certa elegância e é surpreendentemente direto na sua abordagem do enredo, criando uma obra tão requintadamente lúgubre como clara.

 Mas para além do seu enredo, há algo de perfeitamente fascinante nas explorações do filme. Nelly é ensinada não só a representar a sua imagem passada, mas também a imagem da vítima do Holocausto. Há algo de perversamente curioso no modo como Johnny cria uma idealização quase romântica de uma vítima de um dos maiores crimes da Humanidade. Se o filme fosse um pouco mais ambicioso seria possível torná-lo em algo reminiscente do trabalho de Fassbinder, uma reflexão sobre a natureza da Alemanha como uma Nação. Dos escombros de Berlim emerge esta história, uma história de vitimização, ficção e negação. A Alemanha de Johnny encontra-se numa desculpabilização sintomática, uma reinterpretação do passado como se um encenador da realidade ele se tratasse. Uma Nação em negação dos seus crimes passados. É pena, que apesar de tudo isto, o filme nunca chegue a realmente aproveitar estas possibilidades ideológicas, deixando-se ficar relativamente preso aos prazeres mais sanguíneos do seu suculento enredo de mistério, o que não é, para ser sincero, algo decididamente problemático.

 Mas, tirando esse texto, há pouco no filme que aproveite a rica herança estilística desse cinema passado, o que não seria razão de queixa não fosse o desenxabido e francamente desinteressante tratamento de Petzold a este material tão suculento e cheio de possibilidade. Ele é direto e claro, mas sem a exuberância dramática do enredo e também sem uma austeridade ou ponto de vista minimamente interessante. O filme é realizado como um simples e comum filme de prestígio europeu e isso é horrivelmente desapontante quando conseguimos tão claramente ver a possibilidade de grandeza que se encontrão escondidos nas sombras da obra final.

 Os cenários e figurinos mantêm-se numa recriação de época que consegue indicar alguma da sofisticação estilística que o filme parece reclamar para a sua história, mas para além disso há pouco que elogiar na concretização técnica do filme. A fotografia é competente e agradável ao olhar sem se aventurar por qualquer sofisticação visual. O mesmo se pode dizer da banda-sonora que, para um filme que tanta importância coloca no passado de Nelly como cantora, é tristemente medíocre, havendo sempre um espectável piano a sublinhar os momentos mais emotivos do filme.

 Mas uma fraca realização não impede o filme de ter um certo impacto. A acompanhar o delicioso enredo temos um elenco geralmente forte. Hoss, no papel central, é particularmente impressionante, aplicando a clareza e quietude de Petzold sem cair na banalidade do seu realizador. Nelly é um constante poço de ansiedades e temores, uma mina sempre em perigo de explodir ou de implodir sobre si própria. Tal como Kim Novak aproveitou tal papel em Vertigo, Hoss mostra-se maravilhosa nos seus jogos de identidade e mentira.

 É um drama de prestígio simples e direto. É difícil chamar-lhe um mau filme, mas, talvez pior que ser mau, o filme é uma desilusão. A promessa de um filme verdadeiramente milagroso infecta cada momento do filme, não esquecendo, no entanto, a sua história deliciosa ou a fascinante e misteriosa protagonista.


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

LA FAMILLE BÉLIER (2014) de Eric Lartigau



 Tenho de admitir que as minhas expetativas não eram particularmente positivas em relação a La Famille Bélier. Depois de ser exposto aos trailers do filme e ter até lido algumas coisas sobre o filme, parecia-me que apenas me esperava mais um filme forçosamente inspirador, cliché e irremediavelmente sentimental. Estes não são os melhores pensamentos para se ter quando se vê um filme pela primeira vez, mas admito que nem as minhas baixas expetativas eram suficientemente baixas para o filme que tive de aguentar durante 104 minutos.

  Primeiro há que falar um pouco da narrativa do filme, proveniente de um texto que, não me perguntem como, precisou de quatro diferentes argumentistas para ser escrito. Paula (Louane Emera) é uma jovem adolescente a viver numa comunidade rural em França, sendo que a jovem é a única pessoa na sua unidade familiar que consegue ouvir, sendo os seus pais, Gigi (Karine Viard) e Rodolphe (François Damiens), e o seu irmão mais novo, Quentin (Luca Gelberg, surdos. Os pais, em particular, parecem completamente dependentes da filha para agir como tradutora e intérprete.

 Apesar de a sua família ser incapaz de apreciar esse seu talento, Paula tem uma bela voz de canto que é descoberta numa aula de coro em que a protagonista se tinha inscrito para se aproximar do rapaz pelo qual nutre uma inocente paixoneta de adolescente. Oportunidades são reveladas e Paula tem de escolher entre ir estudar canto para Paris ou permanecer com a sua família que tanto parece depender da sua audição. Não sei se seria um spoiler revelar o final, mas o filme é tão básico e cliché que penso que já deve ser bastante claro como o filme termina. Um final lamechas e inspirador, tudo acaba bem, e a audiência deve sair do cinema com umas lágrimas nos olhos e umas horas bem passadas numa comédia francesa.

  O que eu pensava tratar-se de um filme com propósitos inspiradores e de promover as ideias de igualdade etc., devido à publicidade e textos sobre o filme, acaba por ser apenas uma pobre tentativa de capitalizar a popularidade da jovem protagonista, uma antiga concorrente do The Voice francês. Sendo assim, é um pouco injusto olhar o filme e examinar e criticar a sua representação de uma família maioritariamente surda, visto que o filme não parece fazer tenções de representar a comunidade em geral, mas é difícil fazer evitar tal julgamento quando confrontado com o filme.

 O facto da família de Paula ser surda é apenas um dispositivo narrativo para salientar quão especial e diferente o bonito floco-de-neve que é a nossa protagonista tão talentosa, e ao mesmo tempo injetar humor no filme. Humor que consegue, apesar do seu tom leve, ser incrivelmente desconfortável de observar. Os pais, em particular, são reduzidos a duas caricaturas ridículas cuja surdez é uma constante fonte de gozo. Quer seja numa cena em que a filha tem de traduzir os conselhos de um médico em relação aos fungos genitais da mãe, a outra cena em que, devido à sua surdez, os dois têm sexo enquanto uma das amigas da filha está em casa e fazem um barulho imenso que se consegue ouvir por toda a parte.

 Mas não é só a sua surdez que é tornada numa pobre piada. As duas figuras paternais comportam-se mais como adolescentes petulantes do que como adultos responsáveis. A mãe, em particular, nas mãos de Karine Viard é um cartoon em forma humana, como se a atriz tivesse olhado os Loony Toones e decidido que iria imitar as personagens que via, exagerando ainda mais o seu comportamento. O único momento em que a atriz se assemelha a uma presença minimamente plausível ou mesmo suportável, é uma cena marcadamente dramática e até um pouco cruel, cuja carga emocional nunca parece ser completamente justificada pelo resto do filme.

 Muito disto seria perdoado se o filme tivesse alguma piada, mas tentar encontrar comédia neste filme é equivalente à procura de um glaciar no meio de um deserto africano. O filme depende muitas vezes de humor crasso e pueril que, para além de estar pejado de clichés e fórmulas cansativas, é mais desconfortável e ofensivo na sua estupidez que verdadeiramente divertido. Eu sei que o humor é algo particularmente subjetivo e que alguém talvez encontre neste filme o píncaro da comédia cinematográfica, mas, para mim, acho plausível afirmar que já consegui encontrar mais divertimento nos dramas de Ingmar Bergman.

 Em termos de realização e estilo, o filme é praticamente não-existente. Qualquer pessoa podia tê-lo realizado, sendo que o filme caminha o difícil caminho entre a absoluta banalidade medíocre e a incompetência técnica, sendo que a montagem do filme é particularmente desastrosa.

 O elenco de modo geral é incrivelmente medíocre, sendo que apenas Luca Gelberg e Roxane Duran, como o irmão e melhor amiga da protagonista, é que despertaram em mim qualquer sombra de aprovação ou positivismo. Apesar de ter ganho o César para Revelação Feminina do ano passado, Louane Emera apenas mostra um mínimo de carisma e competência, parecendo mais apropriada a um papel em um filme televisivo do Disney Chanel que a uma das mais altas honras do cinema francês.

 O filme é uma experiência sem nada para oferecer, um star vehicle sem grande estrela no seu centro. O humor é inconsequente ou, por vezes, ativamente ofensivo e desconfortável. Mas, mais que toda essa coleção de mediocridade e incompetência, o filme é incrivelmente aborrecido. É um filme mau, mas a sua falta de ambição e completo apoio em clichés baratos faz dele uma experiência abismal, nem chega a ser tão mau que é bom, é apenas um triste exemplo de mediocridade cinemática.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

THE DISAPPEARANCE OF ELEANOR RIGBY (2013) de Ned Benson



 Com a disputada distribuição e edição de Snowpiercer e o que foi feito a este projeto de Ned Benson, a Weinstein Company parece estar a tornar-se cada vez mais infame, já não fosse a reputação que tem vindo a adquirir ao longo dos anos com as suas selváticas campanhas para os Óscares. Interessantemente, a distribuição deste filme não parece ter recebido tão mediática atenção como recebeu a do filme de Joon-ho Bong. Isto dever-se-á, sem dúvida, ao facto de que a reedição de The Dissapearance of Eleanor Rigby: Him e de The Dissapearance of Eleanor Rigby: Her em The Dissapearance of Eleanor Rigby: Them parece ter sido feita pelo seu próprio realizador, sem quaisquer polémicas. Apesar disto é, sem dúvida, uma tragédia de má distribuição que a maior parte das audiências mundiais terão primeiro visto Them, antes de poderem visionar Her e Him, tendo eu sofrido o mesmo tipo de experiência.

  Estes três filmes são, na verdade, versões diferentes do mesmo projeto, desenvolvendo-se os três à volta de um casal, Conor (James McAvoy) e Eleanor (Jessica Chastain), a lidarem, ou melhor a fugirem, de uma perda pessoal, de uma tragédia familiar. O título do filme deriva do desaparecimento de Eleanor no início dos três filmes, que se refugia na casa dos pais (Isabelle Huppert e William Hurt) para se ausentar da presença do seu marido, cujo comportamento, face ao evento que aconteceu antes do filme e que marca todo o comportamento dos protagonistas, a tem distanciado cada vez mais dele. Depois do seu desaparecimento observamos os dois membros do casal ora a fugirem ora a perseguirem o outro, dois humanos confusos e perdidos no seu próprio luto. Eleanor decide voltar a estudar, Conor vê os seus esforços para manter o seu restaurante caírem por terra na face do fracasso, e ambos veem-se mais próximos da sua família do que teriam estado em anos, especialmente Conor com o seu pai (Cirian Hinds).

 A originalidade deste drama vem do modo como Benson o desenvolveu em dois filmes diferentes, filmando-os sobre duas diferentes perspetivas dos mesmos eventos e da mesma relação. Him na perspetiva de Conor e Her na de Eleanor. E isto não se trata de apenas olhar momentos diferentes na vida deste casal que passa a maior parte do filme separado, mas também acaba por se revelar como sendo um exercício em olhar os mesmos acontecimentos de duas perspetivas subjetivas bastante diferentes, sendo que em certas ocasiões vemos uma cena revelar reações diferentes de cada um dos protagonistas em cada um dos filmes.

 Uma cena, num carro à chuva entre os dois, é particularmente interessante no modo como é diferente em ambas as versões. Em Her vemos muito mais arrependimento e vulnerabilidade de ambos os partidos, em Him observamos uma muito maior frieza e agressividade silenciosa da parte de ambos. O modo como cada filme olha o outro membro do casal é particularmente fascinante. Em Her, Conor parece sempre um intruso, uma presença perturbadora para este filme que tanto parece querer observar proximamente, mas reticentemente, Eleanor, chegando a níveis de intimidade psicológica conseguida a partir do simples trabalho de ator que Him nunca faz com o seu protagonista. Nesse outro filme, Eleanor aparece-nos quase como um espectro, uma cifra indecifrável, pondo-nos na mente de um marido que de repente parece não conseguir reconhecer a sua mulher. Numa cena perto do final do filme em que Conor acorda no seu apartamento com Eleanor a observá-lo, é particularmente marcante no modo como Eleanor parece aparecer e desaparecer como um fragmento da imaginação de Conor, como uma assombração do protagonista.

 Existem outros aspetos interessantes nesta divisão, passando especialmente pelo modo como Benson filma os seus atores, enchendo o filme de cenas em que a câmara parece seguir o protagonista ao longo de ruas, recusando-se a desviar o seu olhar examinador. Mas estes filmes não são apenas feitos de uma análise de perspetivas dentro de um casal, Benson almeja muito mais que isto, enchendo o filme de reflexões sobre diferentes relações intrafamiliares, sobre a natureza da perda e do modo como diferentes pessoas lidam com isso, sem contar com a personagem de Viola Davis, uma professora de Eleanor, cujo objetivo no filme parece ser o de oferecer uma reflexão cómica e abrasiva sobre várias das suas temáticas como o casamento, a maternidade, ou mesmo o modo como uma inteira geração privilegiada parece presa ao ensino superior como modo de adiar a responsabilidade adulta da vida fora da condição de estudante.

 Este é um projeto, obviamente, cheio de ambições temáticas e estruturais que, infelizmente, vai admitidamente cair em muitos lugares comuns e desinspirados na sua narrativa. Mas qualquer ambição ou sombra de complexidade acaba por desaparecer quando editada num terceiro filme. Um filme que parece destruir qualquer propósito artístico do projeto original. Them elimina qualquer jogo de perspetivas díspares, arrasa com grande parte da intimidade retratista que Benson consegue alcançar na criação psicológica dos seus personagens nos dois filmes originais. O que resulta disto é um filme em que tudo o que era interessante no projeto original de dois filmes é extinto, e em que os problemas desse mesmo projeto são exacerbados, ao focar o filme numa narrativa problemática, especialmente em termos de ritmo, e que está sempre a cair em clichés outrora disfarçados pelo jogo de perspetiva.

 Um dos maiores problemas desta terceira versão vem grandemente dos problemas estruturais originários na fusão de dois filmes baseados no ponto de vista subjetivo dos seus protagonistas. Them acaba por tender em grande parte para as versões apresentadas em Him, o menos interessante dos dois primeiros filmes, especialmente no princípio e no final do filme, com as cenas que marcavam a vida na casa dos pais e na faculdade, como a grande parte de Her que acaba nesta fusão. Isto origina uma problemática apresentação de Eleanor que vai aparecendo no seu registo distante nas cenas com Conor para imediatamente estar num registo bastante mais próximo e íntimo nas cenas longe deste. Na referida cena do carro à chuva, a falta de perspetivas diferentes é particularmente problemática. Temos assim um filme confuso com as suas próprias personagens, com a sua própria narrativa, e em que a fusão de dois filmes separados cria uma grande inconsistência, em que os picos de originalidade do projeto anterior são erradicados.

 Para além de salientar os problemas do argumento, o terceiro filme também oferece uma litania de problemas aos atores, especialmente a Chastain que adquire com esta terceira instalação uma inconsistência de tom e uma certa confusão de registos e psicologias que não estava presente em Her e em Him. Mesmo assim isto não disfarça a qualidade do trabalho da atriz, que é aqui luminosa, especialmente em Her, e que consegue representar uma mulher perdida, confundida com as suas próprias reações e que vive num estado de contrastes, querendo afastar-se do passado e da sua perda, mas ao mesmo tempo agarrando-se à sua tragédia pessoal, de um modo que Conor não faz de modo tão explícito ou visível, criando uma barreira entre os dois. McAvoy também é bastante bom, mas não chega aos píncaros de Chastain, mas este é um elenco bastante eficaz na generalidade, mesmo nos papéis mais diminutos como Nina Ariadna como uma empregada no restaurante de Conor, ou a já referida Viola Davis.

  Apesar dos problemas criados pelo guião, este é um projeto de grande ambição, cujo elenco justifica o investimento da audiência. Him e Her parecem prometer uma nova e interessante voz no cinema americano, cujas ideias visuais e técnicas ainda parecem um pouco básicas mas cuja ambição temática e estrutural é óbvia, apesar do seu papel chave na criação do incrivelmente medíocre Them, cujo visionamento deveria ser evitado por qualquer pessoa interessada na criatividade ou na visão prometida pelo projeto original de Benson.


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

MAGNIFICENT OBSESSION AWARDS - 2014


 Com Setembro a aproximar-se a passadas largas, vem também aí o festival de Toronto e com ele o inevitável início da dita awards season, culminando tudo isto no ano que vem na cerimónia dos Óscares. Face a isto e seguindo o exemplo de muitos outros blogues de cinema, decidi mostrar aqui algumas das minhas escolhas no que diz respeito ao “melhor” do cinema do ano passado. Sei que venho um pouco tarde mas é sempre interessante compor tal listagem. Para as minhas escolhas decidi seguir-me pelos anos que estão associados aos filmes no IMDB, sendo que estreias de festivais contam e que muitos filmes que só tiveram distribuição este ano fazem parte destas escolhas. Nas categorias decidi seguir o modelo dos Óscares com algumas alterações como a combinação de ambas as categorias de som e a eliminação de algumas outras categorias que acho relativamente supérfluas. Bem, aqui estão as minhas escolhas (os “vencedores” são quem tem a imagem a ilustrar a sua categoria):



 Melhor Filme


Ma'a al-Fidda
Mommy
Mr. Turner
National Gallery
Plemya

 Cinco extraordinários filmes, bastante distintos entre si. Um deles, um documentário observacional sobre a mais famosa galeria de arte em Londres, uma brilhante reflexão sobre o consumo e apreciação de arte numa cultura e economia contemporânea. Outro, uma exaltação do amor maternal, um melodrama formalmente ambicioso e a explodir de energia.

 Apesar do meu usual ódio por filmes biográficos, aqui aparece um exemplo desses mesmos filmes, a biografia de William Turner tornada pintura quase impressionista ao retratar momentos soltos de uma vida, capturados com uma beleza magistral.

 Mas se a história do cinema avança com a inovação, então Plemya e Ma'a al-Fidda, são as grandes gemas desta seleção. O filme ucraniano olha a violência numa sociedade pós-soviética e os jogos de controlo, poder e violência que nesse mundo são jogados, nunca permitindo a audiência perceber completamente o filme ao não legendar a linguagem gestual ucraniana. Um filme que coloca o ser humano no centro em todo o seu fascínio e horrível fealdade. Mas o grande milagre do cinema no passado ano foi, para mim, o documentário sobre o estado atual da Síria construído a partir de vídeos postados na net e de filmagens trocadas por e-mail entre os dois criadores do filme. Uma obra para uma era da internet, um grito de angústia por uma nação em verdadeiro apocalipse, um poema sobre a humanidade desde o milagre do nascimento ao horror que o Homem cria sobre si mesmo. Um filme verdadeiramente inovador, comovente e indispensável.



Melhor Realizador

Wiam Bedirxan e Osama Mohamed por Ma'a al-Fidda
Xavier Dolan por Mommy
Bruno Dumont por P’tit Quinquin
Mike Leigh por Mr. Turner
Miroslav Slaboshpitsky por Plemya

 Bedirxn e Mohamed trazem ao seu filme tanto uma fúria e coragem poucas vezes vistas no panorama do cinema contemporâneo, assim como uma melancolia lírica sobre o estado da Humanidade atual. Retratam uma realidade coletiva a partir das suas perspetivas individuais e fazem algo de extraordinário, um grito em forma de filme.

 Também rico em gritos é o trabalho de Dolan, que com este filme parece chegar à final maturação do seu estilo, brincando com o formalismo da sua obra e levando o género do melodrama ao cinema contemporâneo com uma energia e ferocidade impossíveis de negar.

 Dumont cria um dos mais bizarros filmes do ano passado, misturando a tragédia inerente ao policial sobre um serial killer e misturando isso com algum do mais estranho humor que já vi em cinema. Por detrás de todas as visões ridículas e faces grotescas, existe no entanto uma pulsante humanidade no seu filme, algo que apesar de vislumbrado na sua obra passada nunca esteve tão maravilhosamente exposto como aqui.

 Leigh adapta o seu estilo à biografia, virando as costas às estruturas dramáticas do género e filmando o seu filme como pedaços de uma vida, colecionados num retrato, numa pintura em forma de filme. A sua perspicácia para o trabalho de atores junta-se a um absoluto domínio estético e artístico sobre a sua obra e protagonista.

 Finalmente, Slaboshpitsky eleva o seu filme a mais que uma simples experiência, usando o som, planos sequência e uma distanciação e tom glacial, para criar um dos mais perturbadores filmes dos últimos tempos. A barreira de comunicação força a audiência a olhar os humanos, examinar os seus comportamentos e observar à distância a sua crueldade e semelhança consigo próprios.



Melhor Atriz Principal

Marion Cotillard em Deux Jours, Une Nuit
Anne Dorval em Mommy
Julianne Moore em Maps to the Stars
Julianne Moore em Still Alice
Melisa Sözen em Kis Uykusu

 Julianne Moore domina esta lista com duas menções, duas interpretações que exploram dois caminhos antagónicos na carreira da atriz. Num filme vemos uma implosão progressiva do indivíduo abordado de forma naturalista e não forçosamente dramática. No outro vemos uma grotesca criação, brilhante na sua estilização bizarra e perturbante, perfeita para a sátira em que se inclui. Ambos os filmes têm a atriz como a sua salvação e em ambos os casos o génio da sua interpretação consegue elevar as obras.

 As restantes atrizes encontram-se em filmes mais ambiciosos e bem-sucedidos. Sözen encontra nas sequências prolongadas de Ceylan, uma presença melancólica avassaladora. Olhar para os seus olhos é quase doloroso em certas partes do filme, especialmente quando em cena com o protagonista masculino.

 Dorval pega na histeria melodramática de Mommy e grita, chora e sofre, sem deixar a sua criação cair na caricatura. No final é a sua escolha dolorosa e esperança desesperada que transparecem e ficam com a audiência.



 Cotillard, a minha favorita desta seleção, tem sobre os seus ombros todo o seu filme, sendo que a estrutura repetitiva e invariável foco na sua personagem, fazem de Cotillard um estudo naturalista de depressão, desespero e perseverança na situação económica da Europa atual. Nas suas mãos o ato de andar de autocarro e beber uma garrafa de água torna-se um dos mais belos momentos capturados pela câmara dos irmãos Dardenne.


Melhor Ator Principal

Haluk Bilginer em Kis Uykusu
Ralph Fiennes em Grand Budapest Hotel
Jake Gyllenhaal em Nightcrawler
Timothy Spall em Mr. Turner
Channing Tatum em Foxcatcher

 Com a única comédia desta seleção, Fiennes oferece a mais deliciosa confeção da sua carreira, criando no protagonista do filme de Wes Anderson, um homem que parece emergir do próprio requinte do seu ambiente. Um sonho meio ridículo de uma era pomposa e elegante que apenas vive na nostalgia do passado, Fiennes é uma joia cómica.

 Bastante longe de tais frivolidades adocicadas temos Gyllenhaal, qual inseto em forma humana, com olhos arregalados e tiques grotescos. Um predador insaciável e assustador, tanto na sua atitude formidável como na banalidade da sua aparência e ambição, Gyllenhaal consegue imbuir o seu psicopata com algo levemente infantil e curioso sem perder o desconforto constante da sua presença vampiresca.

 Bilginer é o centro egotista, egocêntrico e casualmente cruel do seu filme. As suas atitudes e confusão são a perfeita personificação da incapacidade humana de entender o outro ser humano. As cenas de diálogo prolongadas com o resto do elenco são particularmente louváveis, especialmente no que diz respeito à sua constante atitude de superioridade intelectual, moral e aristocrática.

 Spall e Tatum veem-se com a tarefa de interpretar figuras verídicas, ambos explorando brilhantemente a sua fisicalidade. Mas enquanto Tatum é uma besta bruta e quase primitiva na sua inocência e simplicidade, Spall encontra em Turner um poço de infindáveis contradições. Um artista e um animal, um homem delicado e um bruto abrasivo, uma figura grotesca e voraz e um velho melancólico, uma criação sem igual tanto na carreira do ator como do realizador que o guia aqui.


Melhor Atriz Secundária

Patricia Arquette em Boyhood
Jessica Chastain em A Most Violent Year
Suzanne Clément em Mommy
Rene Russo em Nightcrawler
Kristen Stewart em Clouds of Sils Maria

Arquette e Stewart dominam esta lista com um naturalismo relaxado que em ambos os filmes funciona como uma brisa de ar fresco. Stewart é uma quebra maravilhosa nas explorações cliché e forçosamente intelectuais do seu filme, parecendo existir noutra realidade do resto do seu elenco, sendo que quando desaparece perto do final do filme, é impossível a obra recuperar da sua ausência. Arquette evolui ao longo dos anos, evitando o melodrama fácil em que poderia ter caído e que não tem lugar neste filme, Talvez o melhor mesmo seja a sua aspereza e humor que nunca deixam a figura maternal tornar-se numa ideia distante, ou numa anotação passageira na vida do filho e na estrutura do filme.

 Clément, pelo contrário, envolve-se no melodrama de Mommy, emergindo com, talvez, a mais reticente das suas contribuições para a filmografia de Dolan. A sua gaguez e comportamentos bizarros conjugam-se com uma quietude surpreendente e falta de afetação, que faz da sua presença algo essencial para o delicado balanço do seu filme.

 Russo e Chastain, ambas interpretam figuras formidáveis tanto na sua aparência de uma beleza glacial, assim como no seu jogo de perceções e fachadas. Russo vai nadando entre poder e vulnerabilidade, deixando sempre uma sobra constante de voracidade curiosa transparecer. Chastain, pelo contrário, apresenta uma fachada digna de uma Michelle Pfeiffer, aquando de Scarface, mas vai dando vislumbres de alguém que aparenta muito mais controlo e frieza do que realmente possui.



Melhor Ator Secundário

Buddy Durress em Heaven Knows What
Ethan Hawke em Boyhood
Peyman Moaadi em Camp X-Ray
Mark Ruffalo em Foxcatcher
Andrew Scott em Pride

 Admito que Moaadi possa quase ser considerado um protagonista no seu filme, mas é o modo como este suporta e informa as atitudes da personagem de Kristen Stewart que realmente mostram o seu génio. Existe uma facilidade e falta de afetação no seu trabalho que conseguem evitar os clichés de filmes semelhantes, nunca fazendo do prisioneiro que interpreta uma figura santificada ou idealizada, deixando sempre uma arrogância e inteligência se mostrarem por entre os seus comportamentos, mesmo nos seus momentos mais agressivos e vulneráveis.

 Hawke e Ruffalo são particularmente brilhantes no modo como recusam o dramatismo dos seus papéis, encontrando-se em ambos os casos uma aparente falta de esforço por parte dos atores. Num caso, o humor fácil e progressivo cansaço e maturidade são impressionantes, tornando uma figura paternal em alguém que parece amadurecer, tentando ao mesmo tempo manter a aparência de despreocupação e charme de uma juventude passada. Ruffalo como a vítima central ao enredo do seu filme é uma tempestade silenciosa de amor filial e resignação feroz. Sendo que os seus melhores momentos são a sua comunicação extremamente física e tátil com o irmão e a desconfortável entrevista sobre o seu futuro assassino.


 Durress interpreta o que aparenta ser uma versão de si próprio, com uma facilidade assombrosa. Mais que os protagonistas na sua autocriada tragédia romântica, é a presença apática e casualmente desesperada de Durress que torna o mundo do filme uma experiência quase tátil e enervante. Por fim, Scott oferece uma visão de anos de mágoas e rejeições sob uma constante fachada de simpatia misturada com uma ligeira melancolia. Os seus rasgos de contentamento e nostalgia aquando da sua primeira visita à comunidade mineira são particularmente comoventes.


Melhor Argumento Original

Roy Andersson por En duva satt på en gren och funderade på tillvaron
Stephen Beresford por Pride
Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne por Deux Jours, Une Nuit
Bruno Dumont por P’tit Quinquin
Michel Rejtman por Dos Disparos

 Beresford consegue miraculosamente pegar na fórmula da história inspiradora verídica e criar um retrato de duas comunidades, recusando usuais narrativas heroicas e individualistas e criando uma maravilhosa teia de personagens eximiamente definidas e desenvolvidas, sem nunca descurar no que diz respeito à leveza e gentileza da sua comédia mesclada de amargura social.

 Com uma estrutura repetitiva, os irmãos Dardenne oferecem aqui, aquele que, para mim, é o seu melhor texto. Uma exploração ao mesmo tempo de uma figura a combater a sombra da depressão, assim como um retrato da economia Europeia e seu esquecimento dos humanos nela envolvidos.

 Mas são as três comédias negras nesta seleção, que realmente me prendem a atenção. Andersson encerra a sua trilogia com esta maravilhosa obra de segmentos interligados onde o desconforto e a condição humana são tornadas bizarra e muitas vezes absurdista comédia. Dumont cria uma trama que tanto é uma comédia, como um policial bizarro e uma tragédia humanista. Finalmente, Rejtman traz uma estranha apatia ao seu filme, onde o comportamento humano é algo quase incompreensível e estranhamente cómico. As ligações entre os vários membros do elenco lembram os filmes mosaico de Iñarritu, mas a negação do dramatismo, o humor negro e a apatia avassaladora, fazem do filme uma experiencia invulgar e tão divertida como friamente alienante.


Melhor Argumento Adaptado

Andrew Bovell por A Most Wanted Man baseado no livro de John Le Carré
Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Christopher McQuarrie por Edge of Tomorrow baseado no livro All You Need Is Kill de Hiroshi Sakurazaka              
Ebru Ceylan e Nuri Bilge Ceylan por Kis Uykusu baseado em contos de Anto Checkov
Gillian Flynn por Gone Girl baseado no seu livro
Antoine Lacomblez e David Oelhoffen por Loin des Hommes baseado no conto L'Hôte de Albert Camus

 Edge of Tomorrow talvez pareça ser uma estranha escolha, mas com o seu domínio exímio da lógica de um videojogo e seus jogos de ritmo e repetição, o filme consegue tornar-se um dos mais inteligentes filmes de ação dos últimos anos, sem descurar no que diz respeito ao entretenimento ou mesmo ao humor.

 Loin des Hommes adapta Camus eximiamente, expandindo um conto existencialista num western marcado por explorações morais e políticas.

 A partir de Checkov, o filme de Ceylan encontra na sua adaptação para o inverno turco, um apelo à empatia, assim como uma sofredora reflexão sobre a impossibilidade de um ser humano perceber o outro. Tudo isto, conseguido a partir de magistrais diálogos, que apesar do seu tamanho não perdem a atenção do seu público.

 Bovell segue o classicismo e elegância de Carré na sua história de amoralidade, espionagem e jogos políticos.

 Flynn adapta a sua própria obra numa brilhante exploração pós-moderna no próprio género do policial assim como da natureza do casamento, pelo caminho criando um dos filmes mais fervorosamente discutidos do ano passado.



Melhor Montagem

Xavier Dolan por Mommy
Jean Luc Godard por Adieux au Language 3D
James Herbert e Laura Jennings por Edge of Tomorrow
Julio Perez IV por It Follows
Frederick Wiseman por National Gallery

 Mommy demonstra o mesmo tipo de ritmo dos filmes passados de Dolan, sendo exuberante e errático, mas parando por vezes em momentos sublimes, deixando as sequências musicais respirar. O seu trabalho na sequência da fantasia da protagonista sobre o futuro do filho é particularmente impressionante, criando uma visão confusa e fragmentada como uma memória meio esquecido de um futuro imaginado.

 Godard também mostra uma energia formidável no seu último filme, criando uma mescla caótica de imagens e encontrando um humor refrescante por entre os seus usuais pretensiosismos. O autor envelhecido parece encontrar gozo nos lugares mais estranhos sem nunca perder o seu lado aventureiro no que diz respeito a forma e estrutura. Um momento em que combina dois movimentos de câmara opostos no mesmo plano em simultâneo é, talvez, o melhor uso de 3D na história do cinema, completamente apoiado na montagem e ritmo das imagens.

 Edge of Tomorrow aplica ritmos cómicos a alguma da melhor montagem de filme de ação do cinema recente. Há um ritmo fervoroso e enervante no filme, que marca ainda mais estrondosamente as ocasiões em que a montagem parece relaxar e deixar a audiência respirar e repousar. A sua qualidade repetitiva é particularmente bem acompanhada pela montagem.
 Numa semelhante mistura de comédia com tensão vem It Follows, uma magistral mescla de tensão conseguida a partir da suspensão dos momentos e planos, com uma certa ligeireza ritmada que cria uma falsa segurança e permite o lado humorístico do filme brilhar. A montagem é impossível de separar do efeito geral deste brilhante filme de terror.



 Como é possível pegar num ano de filmagens das atividades de um museu, fazer um filme com três horas, e conseguir que não haja um momento morto em toda a longa-metragem? Não tenho bem a certeza, mas Wiseman consegue-o sem nunca mostrar nada de vistoso. Montagem discreta e esplendorosamente eficaz. Há uma beleza estranha em tal elegância cinematográfica, aqui alcançada pela mão precisa de um dos grandes autores de documentários.


domingo, 23 de agosto de 2015

LOIN DES HOMMES (2014) de David Oelhoffen



 No seu mais recente filme, o realizador francês David Oelhoffen adapta um conto de Albert Camus, transformando uma exploração existencialista num western passado na Argélia no ano de 1954, no início da dita Guerra da Independência Argelina. As ideias centrais de Camus ainda se encontram no filme, assim como as suas figuras e situações, mas o filme expande sobre Camus, expandido também o espaço, passando da escola em que o filme se inicia e encerra e onde todo o conto se situa, para uma viagem pelo deserto Argelino.

 Essa viagem tem como protagonistas dois homens, Daru (Viggo Mortensen) e Mohammed (Reda Kateb). O primeiro é um professor francês argelino de pais espanhóis, um homem essencialmente sem pátria, a viver num país que o quer expulsar para outro onde ele não pertence. Em Daru, ideias de dever, honra e moralidade combatem entre si, especialmente quando confrontado com a tarefa de transportar o segundo protagonista ao longo do deserto depois de este ter ficado sobre a sua custódia. Mohammed inicia o filme como um homem condenado ao julgamento depois de ter morto os seus primos, tendo de seguida se entregue à polícia francesa. A sua viagem tem como destino esse julgamento perante a lei colonialista, sendo que pelo caminho tiroteios acontecem, uma visita a um bordel espanhol e encontros com membros de ambas as fações da Guerra que está prestes a despontar no mundo do filme.

 O western é um género essencialmente americano, se bem que ao longo da história do cinema, vários outros cinemas nacionais dele se apropriaram, quer sejam os famosos spaghetti westerns do cinema italiano, quer sejam os épicos de samurais de Akira Kurosawa. No caso deste filme, isto também se verifica, não só no que diz respeito ao enredo e à expansão sobre a história original, mas também na execução, que na sua clareza direta e modo de explorar a paisagem desértica faz lembrar os filmes de John Ford, essa divindade do western americano.

  Em substituição de Monument Valley temos o deserto Argelino, e tal como Ford filmava os seus mais célebres e populares filmes, a paisagem torna-se mito, quase que personagem dentro do filme. A viagem dos dois protagonistas, que textualmente é completamente presa a um tempo, lugar e momento político específico, é libertada de tais especificidades pelo primitivismo e aridez do deserto, transformando-se numa jornada quase intemporal. Existe uma natureza quase mitológica ao filme, um conto moral de outros tempos imemoriais, em que a Natureza se estendia em toda a sua majestade sobre a insignificância da figura humana.

 Momentos como o final de uma sequência em que os dois protagonistas acabam por matar um outro homem, mostram perfeitamente o uso do ambiente por parte do realizador, que faz o centro de um plano não os protagonistas que se afastam, mas sim as suas sombras distorcidas na parede rochosa. Há uma beleza quase violenta em tais imagens, mas o deserto nunca parece ser uma entidade ameaçadora como em Strangerland ou outros filmes semelhantes. Este tipo de controlo e clareza lembram o virtuosismo direto e enganadoramente simples de Ford e outros mestres do western.

 Mas se a mão que dirige o filme é segura e maquinalmente precisa, as figuras que interpretam os humanos dentro da história também o são. Mortensen, em particular, é uma escolha inspiradora para Daru. Um ator célebre pelo seu lado poliglota que já entrou em filmes falando mais de cinco línguas distintas, aqui aparece-nos como um homem sem pátria. Para os franceses é um árabe, para os árabes é um francês, e para si mesmo parece ser uma indefinição. Ao longo do filme ele parece querer se distanciar dos franceses, ao mesmo tempo que a sua jornada se trata de uma viagem pelo dever do controlo e lei francesa. Uma contradição que consegue ser brilhantemente humana e clara nas mãos do ator, que consegue até tornar o muito duvidoso e sentimentalista final em relativamente bem-sucedido.

 Kateb não é de menor relevância, mas o filme, tal como a sua origem literária, é muito mais focado na perspetiva de Daru. Sendo que o momento chave no conto de Camus é aqui apresentado como um choque formalístico quando Kateb olha diretamente para a câmara aquando da sua decisão. Quando o poder de escolha lhe é concedido, o filme para. Aqui não é o olhar de Daru que prevalece, mas sim um olhar mais omnipresente, mais esmagador, um olhar direto para os olhos do homem face à escolha entre a vida e a morte, a luta patriota ou o dever familiar. A abordagem pode ser um pouco cliché, especialmente quando face à escolha entre dois caminhos, a personagem é literalmente mostrada face a dois caminhos traçados no solo, mas, simultaneamente, continua a mostrar o estilo direto, eficaz e claro do resto do filme, uma abordagem até um pouco invulgar na sua utilização de um classicismo tão notório.

  Os outros elementos do filme como a música ou a cenografia seguem o caminho de eficácia simples e clara, se bem que a música por vezes parece oscilar entre verdadeira inspiração sonora e distrativo intruso a um filme que parece brilhar mais quando os sons do deserto se manifestam na sua glória naturalista sobre a banda-sonora do filme.


 As ambições talvez não sejam enormes, e o final deixa muito a desejar com a sua tentativa de concluir a viagem ideológica e emocional de Daru, no entanto, o filme é uma obra fascinante. A sua apropriação de elementos do western americano prova-se como uma escolha brilhante, tornando intemporal e quase mitológica uma história fortemente ligada à história do colonialismo francês. O passado colonial é assim tornado lenda, um conto intemporal de um mundo árido, visualmente longe da civilização contemporânea. O existencialismo de Camus torna-se então mito, mas o toque humanista tanto do realizador como do elenco permite a esse mito nunca perder de vista o seu elemento humano no centro tanto da sua exploração existencialista como da sua reflexão histórica e política.