sexta-feira, 21 de agosto de 2015

BADLANDS (1973) de Terrence Malick



 Em 1973 uma das mais singulares vozes da história do cinema emergiu com o filme Badlands. Falo, pois claro, do seu realizador, produtor e argumentista, Terrence Malick, que, para mim, é o melhor e mais fascinante realizador americano ainda em atividade. Um visionário e criador de alguns dos mais imersivos e espirituais filmes do cinema, este autor contemporâneo apareceu aqui com a sua primeira longa-metragem. Com um estilo já magistralmente dominado, e uma voz que parece mais próxima da filosofia e do lirismo literário que do usual produto de Hollywood, Malick apresentou aqui uma das mais excitantes estreias de um autor no mundo do cinema.

 O filme em questão, o primeiro de uma série do que eu considero perfeitas obras-primas cinematográficas, usa como base uma história de origens verídicas. Entre Dezembro de 1957 e Janeiro de 1958, nos estados do Nebraska e Wyoming nos EUA, Charles Starkweather e a sua namorada, Caril Anne Fugate, assassinaram onze pessoas, entre elas o pai de Caril, antes de ambos serem apanhados e condenados. No caso de Starkweather, este acabou por receber a pena capital, ao contrário de Fugate que 17 anos depois, foi libertada.

 O cinema americano, em 1973, já tinha anteriormente visto filmes com narrativas semelhantes, seja o experimentalismo classicista de Gun Crazy ou a violência revolucionária de Bonnie and Clyde, mas o filme deste licenciado em filosofia tem uma abordagem completamente diferente de tudo o que tinha sido antes visto na transposição para filme deste tipo de narrativa americana. 

 Pois sim, esta é uma narrativa invariavelmente americana, e Malick parece usar a história do casal como uma base para o seu filme, do mesmo modo que realizadores como Fritz Lang usaram os mitos europeus ou a ópera Wagneriana como base para o seu trabalho. Badlands advém do mito americano, o do outlaw, a do anti-herói criminoso. E não é só a base da narrativa que parece incorporar em si uma certa mitologia americana, mas também as paisagens que preenchem o filme com a sua beleza e presença esmagadora. A paisagem, especialmente o deserto, tornada ambiente mitológico e onírico.
 O modo como Malick filma a paisagem, em qualquer um dos seus filmes, consegue ser infinitamente mais relevante que o modo como ele estrutura os filmes, ou mesmo como dirige os seus atores. Aqui a paisagem ainda não adquiriu bem a beleza pitoresca e quase acima da natureza que vemos em Days of Heaven ou The Tree of Life, mas a sua presença é tão enfatizada como nessas obras posteriores.

 Estando o filme mais ou menos estruturado em quatro fases (os subúrbios, a liberdade onírica da natureza, os subúrbios de novo, e a fuga pelo deserto), no contraste entre os visuais destas fases encontra-se grande parte do jogo visual do filme. Na primeira e terceira, o ambiente de interiores suburbanos é constante, enchendo o frame de detalhes visuais, quase que ruidosos na sua presença. Padrões em papel de parede, ferramentas presas nas paredes, etc. A câmara quase que reprimida quando comparados os modos de filmar o interior habitacional do exterior natural. Na segunda e quarta fase da estrutura, Malick liberta qualquer restrição da sua câmara, do seu olhar, afastando-se e capturando a paisagem na sua dimensão esmagadora face ao elemento humano.

 O horizonte do deserto parece impor-se na composição de Malick, as figuras humanas aqui acrescentos desconcertantes. O azul do céu e o castanho e dourado da terra formam uma pintura viva, uma presença tão forte como o casal de outlaws. Mais do que a paisagem existir como extensão da figura humana do filme, os humanos parecem existir como que obstáculos à magnificência natural, a sua violência e primitivismo deliberado, uma extensão da paisagem que os envolve. A floresta também envolve e contrasta com o deserto, se bem que de modo menos forte, com as suas folhagens e ramos que enchem o plano e obscurecem por vezes a totalidade dos corpos humanos. Sissy Spaceck é quase uma ninfa artificial neste mundo natural, enquanto Michael Sheen emerge como um guerreiro de arma na mão, uma manifestação desajeitadamente humana da violência e crueldade que em Malick parecem ser parte integral da Natureza.

 Mencionados agora os nomes dos dois atores que protagonizam a história talvez fosse benéfico falar um pouco das personagens de Kit e Holly, assim renomeados e diferenciados dos seus correspondentes verídicos. Mas mais figuras ou cifras que personagens, os protagonistas do filme são imagens que flutuam sobre a sua própria realidade, acima do mundo que habitam. Na distanciação da sua realidade, o casal parece apenas existir como extensão do olhar do filme, mais do que como o sujeito do olhar do filme.

 A exploração do indivíduo heroico é assim dizimada pela abordagem de Malick. O Clyde Warren Beatty uma miragem distante face à abordagem de Sheen. Nas mãos deste realizador e seus atores, estas figuras são esvaziadas da sua humanidade. Imagens apáticas e inexpressivas, vácuos sob a forma de humanos. Dois sonâmbulos, que percorrem a narrativa do filme, apáticos à extensão dos seus atos ou à realidade em que se inserem. Os heróis de outrora são aqui despidos de tais glorificações, mas Malick também não parece exibir um julgamento moral ou ético sobre os atos dos seus protagonistas. Nem Malick, nem os seus atores, há que dizer.

 Na sua abordagem à violência do filme, Malick olha distantemente o casal. As suas motivações são opacas, a sua psique uma impossibilidade. O retrato psicológico, sendo não existente, e o olhar moralístico do filme sendo negado pela abordagem do realizador, os atos violentos do filme parecem simplesmente acontecer. Um seguimento de acontecimentos observados e criados pelos seus protagonistas sonâmbulos com os seus olhares distantes e vagos.

 Há um onirismo bastante presente na obra de Malick e que aqui se faz sentir mais notoriamente que em qualquer outra das suas obras. Os seus protagonistas que existem como que flutuando acima do seu mundo, parecem, na sua apatia e no seu vazio, quase que sonâmbulos a sonhar as suas próprias existências. Mais do que tornar concreta a narrativa, o voz-off de Spaceck, no seu tom quase monocórdico e distante, confere ao filme a atmosfera de uma memória sonhada. Até a última imagem do filme parece advir disto mesmo. Sob o olhar de Holly vemos o céu dourado pelo sol, e preenchido por nuvens. Olhamos o mundo de cima, de tal posição que tudo parece desaparecer por detrás de um manto de névoa e luz, como se num sonho afastado do mundo real e concreto.

 Por muitos, o trabalho dos dois atores, poderia ser considerado uma mostra de inexperiência ou mesmo incompetência, mas penso ser necessário olhar o filme como uma totalidade antes de se querer dissecar as partes individuais do filme (como eu estou, talvez erroneamente a tentar fazer). Todo o onirismo e distanciamento existencial acima referido necessitam e advêm, em parte considerável, do modo vazio como Spaceck e Sheen interpretam estes papéis, mais arquétipos que humanos. O estilo de atuação aqui promovida pela visão de Malick parece mais próximo do trabalho de Bresson, Kubrick, ou mesmo do futuro trabalho de Todd Haynes, do que o naturalismo bruto e imediato que emergia como uma parte integra do Novo Cinema de Hollywood e seus principais autores.

 Até agora referi o uso de paisagem e o uso de atores, tendo brevemente referido a estrutura textual e narrativa do filme, mas penso ser essencial referir aqui o trabalho de Malick sobre o som e montagem desta sua primeira longa-metragem.

 No que diz respeito à montagem no cinema de Malick, filmes posteriores a este iriam cristalizar definitivamente a sua abordagem. Apesar disso, em Badlands, o fluir quase lírico das imagens e o uso constante, essencialmente nas fases do filme na floresta e no deserto, de imagens dispersas da Natureza como ramos ou água a correr, já se fazem sentir. A montagem é quase que uma manifestação da memória humana aqui, um sonho preso a uma certa realidade. Não se trata de simbolismos, ou ligações de significados de imagens como em Eisenstein, mas algo que vai para além disso. O seguimento de imagens e sons parece, por vezes, desafiar a lógica narrativa e causal das imagens do filme. Mais do que qualquer outro realizador desde Jean Renoir, Malick parece ter convertido o Impressionismo numa linguagem cinemática. Em Renoir as imagens e o movimento ocupavam-se principalmente desse dito impressionismo, em Malick isto é mais presente na montagem e no som. Os seus filmes são imersivos para a audiência, quase que a afundando numa experiência existencialista, e isto é principalmente obtido por esses aspetos aqui referidos. Badlands não representa o apogeu destes aspetos da obra do realizador, mas representa o início do que está para vir.

 Algo que, no entanto, parece emergir completamente formado e cristalizado nesta primeira longa-metragem é o uso de música no cinema de Malick. Aqui, a ênfase em música clássica é esmagadoramente estranho quando emparelhado com a imagética contemporânea e intensamente americana. Se os seus protagonistas parecem querer transmutar-se em primitivos inocentes quando na segunda fase da narrativa se escapam para viverem entre a Natureza, a música que acompanha a sua viagem cria um contraste abrasivo e desconcertante. A música de Erik Satie e Carl Orff transpiram de uma complexidade erudita, que nada tem a ver com a inocência vazia almejada pelo comportamento aparente das figuras do filme. Mais do que simplificar e intensificar a perceção linear do filme, a música de Badlands, complica a sua mesma perceção. A discordância cria a reflexão, cria o distanciamento e ao mesmo tempo, de modo bastante paradoxal, parece criar uma atmosfera ainda mais onírica e estranhamente imersiva. Perdemo-nos nas visões sonoras de Malick tal como Holly e Kit de parecem perder no seu olhar.

 O cinema de Malick é algo extremamente denso e complicado, ao mesmo tempo que é uma das mais belas obras do cinema mundial. Tenho medo de que a sua densidade me tenha tornado confuso e repetitivo, mas tal falta de meios para se exprimir por palavras um filme, parece ser apropriado a um filme como Badlands. Mais do que um filme, Badlands cria em si uma experiência quase espiritual. Um sonho existencialista, um pesadelo apático. O cinema de Malick chegaria a píncaros mais impressionantes que este seu filme, mas para uma estreia, Badlands é uma explosão cinemática, um grito de inovação e visão que anuncia a chegada de um novo mestre da arte.



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