terça-feira, 11 de agosto de 2015

CABARET (1972) de Bob Fosse




 Poucos géneros cinematográficos são mais associados com o artifício de Hollywood que o musical, essa confeção por natureza anti naturalista que teve a sua génese no início do cinema sonoro, durante a Depressão que varreu a economia mundial e que levou os cinemas americanos a se refugiarem em alguns dos filmes mais escapistas que a dita indústria do cinema já alguma vez criou.

 É um género que, no ocidente, é maioritariamente sinónimo do cinema americano, com algumas exceções notáveis, e que parecia chegar ao fim dos seus anos de glória com a chegada da Nova Hollywood que caracterizou o final dos anos 60 e os anos 70. Neste novo mundo de possibilidades cinemáticas, o filme musical era algo semelhante a um fóssil em movimento, uma bizarra lembrança de tempos passados. Alguns filmes deste género continuaram a ser feitos nestes anos, mas poucos alcançaram grande sucesso até à chegada do fenómeno que foi Grease em 1978, e a grande maioria destes filmes refugiava-se no estilo da antiga Hollywood, parecendo recusar-se a aceitar as novas técnicas e estéticas absorvidas pelos autores americanos das suas influências maioritariamente europeias.

 Cabaret foi uma exceção a este panorama do filme musical. Adaptado de um espetáculo musical, que por sua vez havia sido baseado na peça I Am Camera, que também ela tinha sido uma adaptação teatral do livro The Berlin Stories de Christopher Isherwood, sendo que da obra de Isherwood o filme de Fosse se preocupa principalmente com uma das histórias contidas em Goodbye Berlin, um dos dois romances de The Berlin Stories. A história de Isherwood de que falo é simplesmente intitulada Sally Bowles, sendo a origem da personagem interpretada neste filme por Liza Minnelli.

 Sally Bowles é, neste filme, uma boémia cantora americana cujo trabalho no Kit Kat Klub na Alemanha de Weimar confere ao filme o seu principal espaço. A sua, é uma presença da mais pura decadência, a sua sexualidade é livre e para muitos amoral, é egoísta, egocêntrica e acima de tudo desesperada. Fosse venera esta criação com a sua câmara, tornando Sally no coração pulsante do filme, sendo que mesmo quando fora de cena a sua presença parece-se sentir, especialmente quando em cena encontramos o segundo protagonista do filme, Brian Roberts interpretado por Michael York, numa clara adaptação do próprio Isherwood.

 Brian, um escritor inglês bissexual e introvertido aquando da sua chegada, é como uma traça atraída para a chama que é Sally. A sua relação serve como enredo principal à maior parte do filme, sendo que outras personagens, muitas delas retiradas da obra de Isherwood, e o avançar da imparável força da história preenchem o resto do filme, que, como seria de esperar, encontra o seu final com a partida de Brian sozinho, de volta a Inglaterra, e com a subida ao poder do partido Nazi.

 Logo com esta breve descrição podemos observar como o enredo e temática deste filme nada têm de semelhante com os modelos antigos de musicais escapistas de Hollywood. Muito mais próximos dos seus filmes contemporâneos, especialmente na sua franqueza sexual e na sua flexibilidade moral, do que das obras da era dourada dos estúdios.

 Se bem que o filme não se esquece completamente das origens tanto do seu género cinematográfico como do seu realizador cuja carreira havia começado e continuava no teatro musical, e cujo trabalho em cinema também abrangia o que chamaríamos de musicais no modelo clássico. Não tanto como uma homenagem, talvez mais como uma desconstrução típica dos assimilacionistas da Nova Hollywood, Fosse escolheu para o papel central de Sally, Liza Minnelli, a filha de um dos maiores ícones da era dourada de Hollywood, Judy Garland. Scorsese usaria Minnelli num modo semelhante no seu New York, New York de 1977, mas Fosse parece ir mais longe que o próprio Scorsese no aproveitamento da carga histórica que Minnelli carregava nos seus ombros. Filha de Garland e de Vincent Minnelli, um dos mais importantes realizadores de musicais nessa dita era dourada, a atriz que aqui interpreta Sally, era um símbolo vivo desse mesmo mundo do cinema musical. Ao invés de a retratar como uma estrela acima da nossa realidade com soft focus constante, ou números musicais cheios de glamour, Fosse segue outro caminho.

 Veja-se o último número musical de Minnelli, filmado dentro do Kit Kat Club tal como todos os momentos musicais do filme excetuando Tomorrow Belongs To Me. Neste final da personagem de Sally, Minnelli canta a canção Cabaret, tanto para a audiência dentro como fora do filme, mas mais importante ainda, ela claramente canta a canção para si mesma. Vestida com um figurino anacrónico e de materiais baratos e gesticulando em movimentos bruscos e exagerados com as mãos estendidas como garras suplicantes à audiência, a atriz assemelha-se a um animal amedrontado. Os seus olhos estão muitas vezes arregalados, a sua expressão quase maníaca, Minnelli parece passar todo o número no limiar entre uma performance energética e um ataque de pânico.

 Muitos poderiam apontar para o facto da atriz e cantora usar este mesmo estilo noutros contextos fora do filme, sendo este o seu estilo de atuação, mas o que me interessa aqui é o modo como Fosse usa Minneli e este tipo de registo precisamente neste final. A letra da canção varia entre o triste e mórbido com o relato da morte de uma amiga decadente da cantora, e um apelo esperançoso e exuberante, dizendo que a vida é um cabaret, sendo que quando Minnelli canta estas passagens, esticando os braços para afrente como que em súplica, não é a audiência que Sally parece querer convencer, mas sim a si própria. Depois de um aborto, dos seus amantes a deixarem, rodeada de nazis na audiência, e ainda presa a um trabalho num cabaret de segunda categoria, Sally é uma imagem do desespero animalesco do ser humano convertida em estrela cantante. Estamos bem longe de Meet Me in St. Louis ou mesmo de A Star is Born quando observamos esta performance sem grandes adornos formais por parte da realização. Aqui temos um musical para uma nova Hollywood.

 Interessantemente, eu nem chegaria mesmo a dizer que esse seria o melhor momento do filme nem o mais emblemático, sendo que provavelmente escolheria para tal título o revelar que a canção Tomorrow Belongs to Me, inicialmente cantada em grande plano por uma face de um jovem loiro, se trata de uma inspiradora melodia nazi, ou mesmo os números grotescos de Joel Grey. Mas este filme, apesar de ser um musical, não é apenas interessante nos seus momentos musicais. A recreação da República de Weimar por Fosse é particularmente fascinante. Um mundo de decadência assombrado pelas sombras do futuro que a audiência sabe que se aproximam. Por muito belas que algumas imagens possam ser, alguns cenários ou figurinos, Fosse parece sempre acrescentar algo de exagero ou grotesco que lhes retira a sua simples beleza. O mundo de Cabaret é, subsequentemente, um mundo podre, numa lenta marcha para um inferno ainda pior que aquele vivido pelas suas personagens. Quando descobrimos, por exemplo, que uma das personagens mais simpatéticas e até cómicas, é judia, é impossível não conjeturar durante o resto do filme qual será o seu horrível destino. Nunca vemos tal destino, mas a sua presença é sentida no final do filme.

 O filme termina com um número e uma imagem que são quase um duplicado do início do filme. Em ambos os casos estamos dentro do clube, sendo guiados por Joel Grey no papel de Emcee, o mestre-de-cerimónias, uma figura ora cómica, ora ameaçadora. Na sua presença, Fosse e Grey parecem criar uma personificação da própria República de Weimar, uma criação decadente, moralmente dúbia, libertina e muitas vezes com sombras de algo sinistro. É ele que inicia o filme com um grotesco grande-plano do seu reflexo distorcido por um espelho, indicando logo à partida um mundo distorcido e errado. Também o último plano do filme inclui um espelho, neste caso no final do último número musical deste mestre-de-cerimónias. Neste reflexo distorcido, não é o sorriso sinistro de Grey que vemos, mas sim a presença de oficiais nazis no cabaret.


 O amanhã deste filme pertence ao sofrimento e crueldade dos anos que se seguirão para as personagens. Ao invés de nos dar esperança, Fosse apaga qualquer hipótese desta existir. Em Cabaret temos um novo tipo de musical, um musical para um novo mundo para o qual o classicismo dos anos dourados dos estúdios já não fazia sentido. Rude, cru, libertino, franco, grotesco e inovador, uma experiência sem grande alegria reservada para a audiência que não deixa de ser delirantemente intoxicante. Talvez o melhor filme da curta filmografia de Bob Fosse, o que é uma afirmação com grande peso por detrás quando consideramos que Fosse é o génio por detrás doutro marco na história do cinema musical, All That Jazz.


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