segunda-feira, 31 de agosto de 2015

EX-MACHINA (2015) de Alex Garland



 O tema da inteligência artificial já foi abordado infindáveis vezes pelo cinema de ficção-científica, sendo que, a uma primeira análise, haverá pouco de original ou interessante na premissa do primeiro filme realizado por Alex Garland. Agarrando nos clichés e temáticas usuais deste tipo de filme, o realizador e argumentista consegue criar na sua estreia como realizador um dos filmes essenciais de ficção-científica neste panorama contemporâneo.

 A sequência inicial do filme imediatamente cria uma atmosfera pesada de frieza e precisão formal. Observamos Caleb (Domnhall Gleeson) no que parece ser o computador do seu emprego. Sabemos pouco, mas descobrimos que o protagonista ganhou uma oportunidade única na sua empresa. Tudo isto é feito sem diálogo, apenas este aparecendo quando Caleb chega ao fim de uma viagem de helicóptero, chegando à reclusa residência do chefe, criador, deus, da sua empresa, Nathan (Oscar Isaac).

 Sob as indicações e observações de Nathan, Caleb vai testar Ava (Alicia Vikander), a mais recente criação do cientista, um aperfeiçoamento da inteligência artificial sob a forma de um robot humanoide claramente feminino. Desta premissa do teste, o filme desenvolve-se numa estrutura rígida, acompanhando e sendo ritmado pelas conversas diárias entre Caleb e Ava. Como seria de esperar, questões de ética e moral começam a emergir ao longo da narrativa de Caleb, sendo que observamos a atração que ele tem por Ava. Um jogo de manipulação, vitimização e poder tem início entre os três protagonistas, sendo que o final é extremamente previsível, mas não por isso menos forte no seu impacto.

 Ava é, obviamente, uma criação com propósitos sexuais. Enquanto as suas mãos delicadas e face estão cobertas de “pele”, o resto do seu corpo ou está definido pelos volumes de uma espécie de rede cinzenta, como o peito de Ava, ou está com os seus complexos mecanismos visíveis. Nunca duvidamos que Ava seja humana, ela é sempre apresentada como um mecanismo, sempre a fazer ruídos mecânicos e num estado perverso de quase permanente nudez. O seu design é uma perfeita visão da mulher tornada objeto sexual, aqui com a inumanidade do termo objeto trazido a um extremo perturbante.

 O resto do desenho do filme é igualmente exímio, criando um mundo frio e geometricamente preciso. O uso de paredes de vidro e superfícies limpas confere uma espécie de serenidade desumana a toda a obra. A calma absoluta refletida na cenografia como que uma opressão constante em que a beleza e harmonia parecem expostas na sua inerente desumanidade. Até a música e o som parecem seguir o mesmo caminho, absorvendo o filme numa paisagem sonora que vai fugindo da melodia e se afunda num som quase hipnótico. O filme, quase sempre calmo e friamente distante, ganha uma qualidade perto do sonho, um pesadelo incrivelmente belo e polido. As conversas entre Caleb e a figura de Ava são particularmente bons exemplos da enervante serenidade do filme, mesmo em termos visuais, com os reflexos luminosos no vidro a separarem as duas identidades. Uma racha torna-se um grito de violência eminente e uma parede torna-se um inegável símbolo de aprisionamento.

 A figura desnuda de Ava é controlada e aparentemente manipulada pelos dois protagonistas masculinos, existindo como que um objeto sem iniciativa própria ou consciência de si mesma num mundo dominado por homens. Ao longo do filme vemo-la ser definida pelo olhar dos dois homens ora como experiência, criação, escrava sexual, vítima, donzela indefesa, ou mesmo predadora. Os dois homens objetificam-na mesmo quando olhando para ela romanticamente, ambos a tornam num elemento de uma narrativa individual e o filme parece jogar com essas mesmas narrativas, inequivocamente ligadas a questões de género, e julga duramente ambas as figuras masculinas pelo seu comportamento. Mesmo o aparentemente inocente e heroico Caleb parece-nos, pelo final do filme, uma figura de poder e privilégio patriarcal. Enquanto tornadas em fantasias na mente dos seus “mestres”, as duas figuras femininas do filme, incluindo a “criada” de Nathan, Kyoko (Sonoya Mizuno), são apresentadas como sobreviventes silenciosamente em revolta.

 A principal arma nesta revolta é a sua condição como objetos sexuais, explorada por Ava como modo de manipulação. A sexualidade e a ideia de género parecem existir no filme como que num registo performativo. Em Ava, uma existência humana, mas nova e artificial, o género é algo que ela interpreta, manipula e aprende. Ao longo do filme, ela interpreta os seus papéis fantasiosos da perspetiva masculina, acabando por se apresentar no final, sozinha, olhando-se a si mesma ao espelho, num belíssimo momento de genuíno fascínio e inocência na exímia performance de Alicia Vikander.

 A atriz não está sozinha na sua brilhante prestação, sendo que o trio central do filme apresenta aqui o melhor trabalho que até agora vi nas suas respetivas filmografias. Gleeson é incrivelmente fácil de observar como um confuso e inocente herói relutante. Uma figura meio arquetípica, meio cliché, aqui reduzida e dissecada até se deixar no final, um homem patético e perdido. O facto de o ator nunca salientar a crítica implícita no texto e realização, comportando-se como o sofredor herói romântico ao longo do filme, ajuda a criar a atmosfera de desconforto constante para a audiência, cuja reação instintiva para com a sua figura é a de empatia e identificação.

  Mas é Isaac que completamente domina o filme para mim, com o seu aspeto que grita “génio louco megalómano” e uma atitude enervantemente afável. A camaradagem da figura descontraída de Nathan parece mais apropriada a um membro de uma fraternidade num filme de Hollywood que a principal figura antagónica deste filme de ficção-científica. A manipulação inerente ao papel de Nathan nunca está particularmente oculta mas há algo de verdadeiramente bizarro e erraticamente agressivo na sua presença. Claro que não poderia mencionar o trabalho de Isaac sem referir o momento mais absurdamente memorável do filme, em que Isaac e Mizuno iniciam um número de dança aparentemente espontâneo.

 O filme, apesar dos meus profusos elogios, tem os seus problemas, nomeadamente no que diz respeito ao seu diálogo. É bastante sentido nas repetidas conversas entre Caleb e Ava que o realizador pretendia algo profundo e inequivocamente fascinante e que capturasse a atenção da audiência, mas o uso de fórmulas e arquétipos deste tipo de cinemas prova-se tanto uma bênção como um problema difícil de resolver. Há algo de cansativamente previsível no filme, que ao mesmo tempo lhe confere um sentido de tragédia inevitável. Haverá filmes muito semelhantes a este que falam de temas iguais ou parecidos e que mostram muito mais inovação ou perspicácia, mas julgando este filme individualmente, é difícil negar a qualidade, mesmo que puramente formal, de Ex-Machina.


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