domingo, 30 de agosto de 2015

HÖSTSONATEN (1978) de Ingmar Bergman


 Ontem foi o centenário do nascimento de Ingrid Bergman e devido a isso gostaria de celebrar o seu trabalho, se bem que com um dia de atraso. Decidi escrever então sobre o que eu considero o filme em que ofereceu a sua mais milagrosa prestação.




 Höstsonaten foi o último filme de Ingrid Bergman, essa lenda do cinema que passou do estrelato no seu país natal da Suécia a uma figura essencial na história do cinema de Hollywood. Neste filme, a atriz trabalhou com a outra grande lenda do cinema sueco, Ingmar Bergman. Esta foi a única colaboração destes dois monumentos cinemáticos e com a sua intensidade fulminante e mestria opressiva, há que admitir que apesar de apenas existir um filme conjunto dos dois, é uma das obras-primas na filmografia de ambos estes astros da história da sétima arte.

 O filme é uma das obras mais intensamente emocionalmente insuportáveis na filmografia de Bergman, lembrando Viskningar och rop na sua implacável crueldade e foco na história de angústias e ressentimentos acumulados numa família de mulheres. Aqui, Charlotte (Ingrid Bergman), uma consagrada pianista, visita a sua filha Eva (Liv Ullmann), após a morte do companheiro que tinha vivido com ela nos passados 13 anos da sua vida. Eva vive com o seu marido, Viktor (Halvar Björk), isolada numa paróquia bem longe dos palcos internacionais conhecidos da mãe, assim como cuida da sua irmã, Helena (Lena Nyman), uma figura doente e frágil que no filme parece um símbolo pulsante da mortalidade humana. Observamos a chegada da matriarca, a interação entre os habitantes da casa, e finalmente somos testemunhas de uma noite agonizante de acusações de Eva para com sua mãe.

 O filme, no entanto, longe dos infernos emocionais e psíquicos em que se emaranha no seu desenvolvimento, inicia-se e encerra-se com cenas bastante semelhantes na sua teatralidade e abjeta frieza. Aquando do início ouvimos Viktor descrever em pormenor a sua mulher, ele assegura-nos, olhando diretamente para a câmara, que a compreende e percebe totalmente. No entanto, a sua presença no resto do filme, é a se uma figura fugaz e passageira, como que um fantasma que assombra a casa na sua falta de importância. É difícil visualizar tal ligação entre marido e mulher e Bergman, esse mestre do terror existencialista, e parece-nos que neste mundo tal entendimento é uma impossibilidade. A câmara é particularmente perspicaz e precisa, mostrando o marido de costas para a figura desfocada da mulher. Tal entendimento entre humanos, tal compreensão entre indivíduos parece ser uma mera ilusão, uma intelectualização forçada da condição de existir com outros que não nós. A impossibilidade é tão clara que a própria imagem parece troçar do discurso.

 Tal jogo visual é comum em Bergman e aqui é particularmente eficaz. Há uma simplicidade enganadora no filme, que está superficialmente longe dos ostentosos triunfos visuais e formais de Persona ou Fanny och Alexander. Desde as roupas das figuras à cor do céu e das folhas das árvores o filme é mergulhado numa confortável atmosfera outonal. As cores são quentes e convidativas, muitas vezes as figuras parecem vestir-se coordenadas com o cenário, criando uma beleza omnipresente, uma harmonia opressiva na sua precisão. No entanto, tal atmosfera decididamente outonal traz consigo conotações impossíveis de ignorar. O outono e suas paisagens de árvores despidas é uma estação muitas vezes associada com a mortalidade, como se a beleza do filme escondesse quão moribundas as figuras do filme estão. A morte, um espectro presente em cada movimento de Charlotte, cuja proximidade do fim parece fazer dela uma figura particularmente resistente a participar nos jogos de ressentimentos da filha. Também na sua escolha de atriz em fim de carreira, o realizador parece ter encontrado algo de celestialmente belo e inequivocamente moribundo em simultâneo.

  Numa outra cena do filme, quando a sua filha prevê que a Charlotte irá descer para jantar envergando trajes negros e interpretando o papel da viúva chorosa, a figura que emerge não é a da viúva mas a de Ingrid Bergman, estrela de cinema e presença luminosa. Ela desliza pelo espaço envergando um vestido que queima a imagem com a intensidade da sua cor vermelha e a sua postura é uma de segurança e jovialidade opressiva. A imagem da estrela é usada pelo filme brilhantemente, mostrando Ingmar Bergman num jogo quase nunca visto no seu cinema. Apesar de trabalhar muitas vezes com atores tornados célebres ou pelo menos conhecidos, o realizador raramente utilizava a persona da estrela nos seus filmes, mas aqui a presença de Ingrid e sua carga e impacto como uma lenda de Hollywood e do cinema internacional, cheia de controvérsias no seu passado, mostra-se inegavelmente inseparável da exploração do realizador sobre a personagem dentro do filme.

 Voltando a essa previsão errónea da indumentária da mãe, Eva, ao longo do filme, volta a fazer previsões ou a presumir coisas que não se registam. A sua visão do mundo cuidadosamente desenvolvida, intelectualizada e friamente assimilada parece sofrer de uma qualidade inequivocamente humana. Como ser humano, ela prova-se incapaz de olhar e entender o ser humano à sua frente. Mãe e filha, marido e mulher, um jogo de figuras sozinhas no mundo a tentar perceber a sua posição nele e a sua relação com as outras figuras solitárias. No seu momento de expressão assegurada, o clímax da noite de acusações que instiga sobre a sua mãe, Eva parece não ouvir os gritos da irmã desesperada, como que ao ganhar a voz para confrontar a mãe, ela tivesse ficado completamente surda e isolada ao resto da existência e necessidade humana que a envolve. O egoísmo da realização e exploração pessoal tornados antagónicos da empatia e básica solidariedade para com o próximo.

 Essa discussão, que consome grande parte do filme, é um dos momentos mais inesquecíveis de toda carreira do mestre sueco. Anos de história pessoal são trazidos ao de cima. Eva, como que uma filósofa amargurada assimilou todo o seu sofrimento em argumentos intelectualmente opressivos e tudo descarrega na sua mãe. Charlotte, face à sua filha parece uma rainha gelada tornada vítima indefesa. Eva é maioritariamente estática nesta noite de horrores, enquanto Charlotte se vai movendo pelo espaço, até desabar derrotada. A empatia é uma sombra distante e Bergman parece criar uma ode perversa ao poder humano de infligir dor noutros humanos.

 Ambas as atrizes são verdadeiras forças da natureza. Bergman é um poço infindável de elegância e frieza jovial nos seus primeiros momentos, mostrando uma leveza cruel nas suas atitudes e um constante julgamento silencioso da sua filha. O momento em que Bergman mantém a sua câmara na atriz enquanto Charlotte ouve a sua filha tocar piano de modo pueril, é de uma crueldade subtil e absoluta. A desilusão, gozo, desapontamento e a máscara da felicidade e gentileza forçada que transparecem na expressão de Ingrid Bergman são um verdadeiro testamento ao seu magistral trabalho. Quando a vemos sucumbir às acusações implacáveis da sua filha as máscaras e superioridades da figura maternal vão-se gradualmente dissipando, deixando no final uma figura emocionalmente estilhaçada, uma sombra de uma lenda, uma estrela caída e horrivelmente extinta da sua luz.

 Ullmann é igualmente impressionante, criando uma figura aparentemente inofensiva que da sua dor e angústia palpável emerge momentaneamente como uma figura vampírica, uma agressora violenta e imparável no seu ataque. A criança que em tempos foi parece assombrar o trabalho da atriz, cujas primeiras altercações com a mãe parecem transpirar de um respeito infantil pela sua figura maternal que vemos desaparecer e revelar o ressentimento absoluto que a consome. Há uma superioridade visceral no seu ataque, algo talvez originário do facto de que Eva nunca viu o seu filho crescer, tendo este morrido em criança. A tragédia e amargura que a consomem parecem despontar como discursos cuidadosamente escritos e preparados, ou como filosofias pessoais curadas e aperfeiçoadas ao longo de anos de solidão. Eva, como uma intelectual, filosofa, pensadora sobre a crueldade e condição humana com uma particular fixação na sua infância e relação com os pais, parece emergir como uma representação do próprio Bergman.

 Eu diria, aliás, que ambas as mulheres centrais ao filme, parecem agir como realizadoras da sua visão sobre si mesmas. Cenas como o monólogo de Charlotte enquanto sozinha no quarto ou as acusações de encenar a sua tristeza por parte da filha, são bons indicadores disto. No entanto, eu diria que são os flashbacks que realmente conferem essa impressão à audiência. Imagens rígidas e belas na sua estaticidade teatral em que vemos visualizadas as histórias pessoais das duas protagonistas. Em Charlotte ela é uma figura sofredora que se impõe, por exemplo, como um ponto colorido num quarto de hospital branco, a morte do seu companheiro deixando de ser sobre o morto e sim sobre a martirização idealizada de Charlotte.

 A precisão e frieza desses tableaux é algo que se estende ao resto do filme. Há uma delicadeza e elegância no filme que parece movimentar-se com o ritmo estudado de uma sonata. A técnica de Bergman tão aperfeiçoada e magistral na sua eficácia perfeita como um músico prodigioso em pico de carreira. Aqui os músicos da sonata são os quatro humanos enclausurados na casa em que o filme decorre, tocando a melodia do sofrimento humano composta por Bergman num dos seus mais belos filmes. Ver Höstsonaten é olhar o ser humano pelos olhos de Bergman e chorar. É olhar um ecrã e ver nele nós mesmos, a nossa solidão existencial, e a possibilidade inesgotável que temos para a crueldade.


Sem comentários:

Enviar um comentário