sábado, 8 de agosto de 2015

L’ATALANTE (1934) de Jean Vigo




 L’Atalante foi o último filme da carreira de um dos grandes génios do início do cinema sonoro, um génio que apenas realizou quatro filmes na sua vida, tendo morrido a seguir a completar este filme.

 Se na sua obra anterior, o maravilhoso Zero de Conduit, Vigo tinha criado uma astuta crítica à sociedade francesa e ao sistema educacional da época, aqui as suas ambições são muito mais reduzidas, mas não por isso é o produto final menos genial. Em L’Atalante o enredo é de uma enorme simplicidade. Começamos com um casal, Jean (Jean Dasté) e Juliette (Dita Parlo), no dia do seu casamento, seguindo-os até um barco onde os dois habitam durante o resto do filme enquanto viajam por um canal. São acompanhados na sua viagem são acompanhados por Père Jules (Michel Simon), um velho e aparentemente excêntrico marinheiro. O barco viaja rumo a Paris, sendo que durante a viagem o jovem casal vai-se afastando gradualmente, sendo que durante uma fatídica noite em Paris, Jean deixa Juliette sozinha em Paris e parte com o seu barco. No final do filme o casal é reunido, em parte com a ajuda de Jules.

 Não parecem haver aqui grandes intenções sociais ou políticas neste filme, pelo menos não de forma tão clara como na obra passada de Vigo, filho de um famoso anarquista francês. Mas não é por isto que o filme deixa de ser um dos mais belos filmes dos primeiros anos do cinema sonoro. Semelhante parcialmente a Sunrise de Murnau, ambos os filmes se fixam numa história de amor perturbada por um conflito e que acaba na reunião feliz do casal, apoiando-se em papéis de género extremamente convencionais de modo superficial. Ambos os filmes se apoiam numa abordagem rica em romantismo, mas enquanto Murnau trabalhava em Hollywood sobre uma base cultural de Romantismo germânico, Vigo olhava os seus amantes sobre um olhar bastante diferente, mais realista mas ao mesmo tempo mais lírico e frio que a doçura esperançosa do mestre alemão.

 Vigo trabalha dentro do que viria a ser denominado de realismo poético, um movimento fortemente francês, aonde um realismo completamente removido do cinema romântico de Hollywood, era abordado com uma poética formal e temática que muitas vezes conseguiam rivalizar os mais impressionantes ímpetos estilísticos e românticos do cinema americano da época. Apesar da simplicidade da história de amor, existe uma preocupação realista com a representação do afastamento emocional dos dois amantes, até uma certa crueldade no modo como o filme retrata os seus protagonistas, assim como uma carnalidade e uma certa rudeza que separam fortemente o filme do idealismo romântico de outros.

 Basta observarmos a carnalidade de um momento como uma cena em que os dois amantes separados sonham um com o outro. Ambos contorcem-se nas suas camas, quase que tentando alcançar a presença física do outro. Vigo corta entre os dois amantes em composições quase idênticas, unindo-os no seu desejo e ao mesmo tempo realçando a sua separação. A montagem pode unir os dois corpos luxuriantes, mas a necessidade da presença desses mesmos cortes apenas salienta a sua separação física.

 Contrariamente a estas aparentes intenções realistas, o modo como o filme é criado afasta-se do realismo social que podemos observar em filmes da mesma época. Aqui existe um artificialismo formal na abordagem, existe uma estilização da realidade mais próxima da poesia visual que do documentário. Apesar da maior parte dos filmes deste movimento serem maioritariamente filmados em estúdios, Vigo filmou grande parte desta obra ao ar livre, virando a sua câmara para o céu. Os amantes parecem, por vezes, viver num mundo separado do resto da humanidade. Observamos Dita Parlo contra a claridade do céu e nada vemos da margem do canal, o resto do mundo apagado para o mundo exterior à história de amor principal.

 Esta insularidade que envolve o casal é quebrada com a sua separação, onde a vida urbana os leva em sentidos díspares, abandonados e separados. Enquanto o barco se parece transmutar num ecossistema de sonhos e desejos, a cidade parece apresentar-se como uma manifestação física da distância entre os dois humanos no centro desta trama romântica.

 Grande parte do triunfo do filme se deve ao seu modo de orquestrar a relação entre os dois amantes. Vigo enfatiza a carnalidade da sua relação e a sua união, mas ao mesmo tempo parece filmar Parlo como se a atriz fosse, por vezes, uma presença etérea dentro do seu filme. Ela é luminosa e delicada sob o olhar de Vigo, enquanto Dasté é uma presença mais apoiada na fisicalidade, vestido de negro em contraste com a luminosidade de Parlo. 

 O casal é filmado de um modo que os separa, quase reduzindo-os a duas ideias, masculinidade e feminilidade, mais do que os caracteriza como presenças humanas, A presença de Jules, pelo contrário, quebra este equilíbrio formalístico perfeito. Interpretado por Simon, Jules transpira de uma excentricidade que por vezes parece torná-lo numa figura quase que mágica dentro do romance dos dois recém-casados. Jules é uma presença bizarra e muitas vezes grotesca, o seu próprio corpo coberto de tatuagens e suor parece provir de uma realidade diferente da dos dois amantes. Quase que uma prolongação humana do ambiente do barco, Jules apenas ajuda o filme a transformar o barco num mundo isolado, separado da realidade exterior.

 A ajudar a este isolamento romântico do ambiente do barco, temos o modo como Vigo filma os espaços do filme. O interior do barco parece sempre recheado de demasiada informação visual, um mundo inteiro comprimido a um espaço diminuto, pelo contrário o exterior é apresentado com uma simplicidade visual que é simplesmente sublime. A informação visual é extremamente reduzida pelo modo como o realizador usa o clima, encobrindo o barco em névoa espessa, ou virando-se para um ondular da água à volta do barco, muitas vezes eliminando as margens da sua composição. Este é um mundo plástico de um romantismo inebriante.

 Num dos mais célebres momentos do filme, Jean caído nas águas do canal vê a imagem de Juliette. Aqui Vigo visualiza de um modo sonhador e lírico, uma fantasia de romance, tornando a realidade dos amantes um sonho vivo. A cena segue uma superstição relatada anteriormente no filme, que na água, se abrirmos os olhos vemos o nosso verdadeiro amor. Por muito realismo e conflito que o filme tente extrair das duas figuras no seu casal central, existe sempre esta corrente de um romantismo arrebatador que faz destes filmes um dos mais belos filmes românticos da história do cinema. Um sonho de um romance perdido nas águas de um canal francês.



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