segunda-feira, 10 de agosto de 2015

LAURENCE ANYWAYS (2012) de Xavier Dolan




  Talvez o melhor exemplo da hubris de Dolan, o seu terceiro filme marcou a primeira vez que o jovem autor criava um filme em que não protagonizava. Esta escolha é crucial para o filme, pois se olhamos os seus dois filmes anteriores como histórias de, em parte, autocritica e autorreflexão sobre a figura de Dolan, este filme embarca numa missão completamente diferente. Ao contrário das suas histórias de juventude superficial e fútil, este filme olha para um romance entre uma mulher, Fred (Suzanne Clément), e Laurence (Melvil Poupald), uma mulher transsexual, namorado de Fred enquanto homem, sendo que observamos a sua transformação neste filme.

 O filme, mais do que um relato da transição de Laurence, foca-se na relação dos seus dois protagonistas. Fred é realmente o centro do filme de Dolan, e isto é especialmente notório no breve epílogo que encerra o que é o mais longo dos filmes de Dolan. Observamos o primeiro encontro entre os dois amantes um momento romântico cheio de esperança, mas tornado doloroso pelo nosso conhecimento do que está para vir na vida dos dois.

 Então vemos aqui Dolan a trabalhar sobre a tragédia romântica de um modo que parece pegar no estilo que vinha a desenvolver nos seus dois últimos filmes e exagerá-lo até aos excessos gloriosos deste filme. Se podíamos acusar o realizador de fazer videoclips dentro dos seus filmes, Laurence é quase um musical feito de videoclips colados uns aos outros, enchendo o filme de um barroquismo visual e sonoro que Dolan ainda não voltou a abordar.

 Mas, tal como nos seus primeiros filmes, este estilo extremamente notório e quase abrasivo, parece resultar de uma extensão da psique das personagens à estrutura do filme. Estas são personagens histéricas, gritando pelo seu amor e por uma vida melhor, são invariavelmente dramáticas, quase ridículas não fosse a corrente de sofrimento que informa a sua presença no filme. Os momentos musicais fazem sentido quando em coexistência com as criações e Fred e Laurence, e em vez de ofuscar a história romântica no seu âmago, estas ousadas decisões estilísticas de Dolan apenas reforçam o romance neste épico de um amor falhado.

 Sim, épico, pois aqui Dolan cria quase que uma odisseia de uma relação amorosa em conflito. Mais do que simplesmente um melodrama romântico, o filme assemelha-se em estilo a uma ópera cinemática.

 Nesta obra, temos o único filme possível de se chamar de época na oeuvre de Dolan. Certamente que é uma época recente, o início dos anos 90, mas o modo como o filme é temporalmente definido pelos figurinos, penteados e cenografia é tão meticuloso e vistoso como em qualquer filme de James Ivory. Os figurinos e o trabalho de caracterização é especialmente essencial para a estética do filme, trabalhando o exagero de modo fantástico e dando ao filme o aspeto de um editorial de moda. Num filme, onde as roupas de Laurence têm uma potência temática difícil de evitar, a mise-en-scène parece depender invariavelmente do trabalho de figurinos.

 Mas não é só na figura das personagens que se encontra neste filme a genialidade visual de Dolan. A fotografia do filme, num maravilhoso formato de 4:3, é um trabalho de movimento e cor inebriante. Isto é bem notório nas sequências mais marcantes do filme como um baile em que Fred entra quase que flutuando por entre os convidados, uma sequência em que lenços coloridos caem do céu em câmara lenta sobre os dois amantes, ou mesmo um dos momentos finais em que o vento se levanta criando uma tempestade de folhas outonais durante a separação final entre o casal, enquanto a câmara se move como que transportada pelo dramatismo inerente ao momento, etc...

 Este tipo de descrição parece apontar para um filme cheio de momentos inesquecíveis nos seus prazeres estéticos, mas há que apontar que a experiência de todo o filme consegue, para mim, ter ainda mais impacto que as suas partes separadas. Isto deve-se em grande parte ao trabalho dos dois atores no centro do filme, especialmente à gloriosa Suzanne Clément, neste momento uma regular do cinema de Dolan.

 Em Fred Clement e Dolan criam a que é, talvez, a mais fascinante e completa criação do realizador canadiano. Interpretada num registo estilizado e quase histérico, ou um registo latino nas palavras de Dolan, Fred parece explodir para fora do ecrã. Laurence pode ser quem mais muda exteriormente ao longo do filme, mas é a tempestade que é Fred que se parece materializar no estilo operático do filme. O seu génio manifesta-se, por exemplo, no modo como Clément consegue equilibrar momentos de fúria desenfreada, de gritos enraivecidos e discussões acesas, com uma delicadeza alienante ao resto do filme como num momento em que olha melancolicamente um tijolo pintado de rosa na casa que partilha com o marido e os filhos. Ela é o centro do filme, o seu coração pulsante e é realmente quem consegue manter toda a hubris estilística unida num objeto final coerente.

 Neste filme, Dolan toma mais riscos do que alguma vez tomou na sua carreira. O produto final já não parece manifestar a imaturidade superficial e furiosa dos seus dois primeiros trabalhos, mas também ainda não está na maturidade estilística que o realizador alcançou com Mommy. Temas que se encontram no resto do seu trabalho continuam aqui bem presentes, como se pode ver na relação de Laurence com a mãe, um seguimento da fixação maternal que parece correr por toda a obra do autor.

 Aqui tudo o que define o cinema de Dolan parece existir do modo mais excessivo possível. Um filme barroco no seu estilo, mas íntimo na sua exploração e uma paixão quase obsessiva. Uma paixão que parece ser apenas possível de visualizar a partir da ópera de visuais e sons orgiásticos que aqui encontramos. O excesso absoluto como veículo para a intimidade. A superfície como extensão do indivíduo. Talvez não seja o mais bem conseguido filme de Dolan, nem seja o mais importante filme sobre a vida de um transsexual, mas para quem aprecia o cinema romântico ou o cinema de Dolan, esta é uma obra impossivelmente essencial.


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