segunda-feira, 3 de agosto de 2015

ROMA, CITTÀ APERTA (1945) de Roberto Rossellini





 É difícil escrever nem que seja uma palavra sobre um filme como Roma, Città Aperta de Roberto Rossellini, simplesmente porque este é um filme sobre o qual já tudo foi escrito. Como um dos momentos essenciais na história do cinema, é difícil ver este filme e olhá-lo como algo que não uma das obras essenciais do cinema como uma arte.

 Feito imediatamente após o final da 2ª Guerra Mundial, nos escombros de uma Roma em ruínas, o filme pegou no Neorrealismo iniciado por Luchino Visconti dois anos antes com Ossessione, e tornou-o um dos mais importantes movimentos na história do cinema. O realismo cinemático a partir deste filme mudou completamente e também foi assim que se deu início a um dos períodos mais fascinantes da história do meio, o pós segunda Guerra Mundial. O mundo tinha visto horrores até aí não experienciados pelos cineastas que a partir daqui inundaram as salas de cinema com alguns dos filmes mais inovadores de sempre, reescrevendo tudo o que sabíamos possível de alcançar com esta arte. O cinema ganhou uma relevância social e política que apenas tinha anteriormente vislumbrado de modo superficial em comparação com esta nova leva de filmes. E Itália esteve no centro desta revolução do cinema, e na sua génese temos este filme, a supra suma criação de muitos dos mais importantes autores do cinema italiano.

 Existe uma infinidade de informação sobre a criação do filme, sendo que até livros já foram escritos inteiramente sobre as filmagens do filme. Várias versões existem até do modo como o projeto se iniciou, sendo que supostamente o filme terá começado com as intenções de ser um documentário sobre Don Morosini, um padre tornado herói da resistência italiana e no filme transformado na personagem de Don Petro Pellegrini (Aldo Fabrizi). Depressa o filme ter-se-á desviado do documentário para se tornar o que hoje podemos observar. O filme almeja mais a ser um retrato da resistência italiana ao controle fascista durante os anos de guerra, que um retrato de um herói singular.

 Filmado numa Roma em ruínas, em muitos casos em edifícios reais ao invés de em décors de estúdio, o filme é um olhar visceral sobre a Itália destruída pela guerra. Por razões práticas o filme tem uma rudeza que apesar de continuar um desenvolvimento estético de filmes italianos anteriores, parece chegar aqui a uma certa apoteose de realismo cinemático. Na sua maioria, a iluminação é rude, com lâmpadas despidas e expostas no cenário, os filtros glamorosos do cinema fascista e do cinema romântico de Hollywood não se registam, sendo que quando o olhar polido desses cinemas se pode registar, é durante a filmagem de personagens envoltas no luxo fascista. A linguagem realista e romântica em conflito direto no próprio filme. A formalidade plástica como comentário social e político.

 Tal como Visconti tinha feito antes, e muitos realizadores italianos iriam fazer no futuro, Rossellini usou, com a exceção de alguns casos específicos, maioritariamente não-atores. As pessoas de Roma que viveram o regime fascista eram assim retratadas por elas próprias neste filme. O artifício do ator profissional era substituído pela rudeza do não-ator, pela pressuposta realidade que a sua mera presença confere ao filme.

 O próprio tempo parecia alterar-se com este filme, deixando movimentos e ações ocorrerem no seu tempo real e não enfatizando o tempo ideal para a estrutura dramática. Há quem defenda que o neorrealismo é principalmente um movimento que alterou a perceção temporal no cinema, encontrando um tempo realista, mais do que encontrando uma estética realista. Talvez obras futuras mostrem melhor este aspeto do movimento, mas aqui em variadas sequências acompanhamos a magnífica Anna Magnani, aqui grávida, solteira, fortemente religiosa, a andar pelo seu apartamento, pelo edifício onde habita, num registo temporal antes estranho para o cinema. Uma ação é prolongada e errática no seu ritmo, a estrutura dramática é quebrada como modo de se obter algo mais cru e próximo de uma suposta realidade no meio artificial do cinema.

 Mas não era só na sua formalidade que o filme demonstrava as suas ideias revolucionárias. Olhemos para o guião, parcialmente escrito por Federico Fellini, para ver os traços de um novo tipo de cinema. Se em Ossessione, Visconti olhava a podridão de uma Itália na miséria, aqui vemos o sofrimento e a martirização de um povo face à injustiça caída sobre as suas vidas. Se há algo de que acusar o filme, talvez seja o modo como invariavelmente cria heróis e mártires, mas tais críticas são bastante fúteis quando comparadas com a glória e a raiva capturadas aqui em celuloide.

  Tenho de confessar que o neorrealismo não foi nunca um dos meus movimentos favoritos na história do cinema. Compreendi a sua importância, histórica, mas vendo o estado do cinema atual em que uma espécie de realismo banal e desinteressante parece ser a norma do cinema mundial, parece-me sempre que tudo isto teve a sua origem aqui na Itália do pós-guerra. No entanto, com o passar dos anos a importância histórica deste realismo começou a transformar-se em algo mais na minha mentalidade pessoal. Se a história do cinema é marcada pelo movimento criativo da inovação, como é possível não olhar para o neorrealismo como um dos pontos altos na história da arte? Talvez os filmes mais famosos do movimento até nem sejam aqueles que para mim representam as grandes possibilidades do estilo. Visconti para mim será sempre superior a De Sica e mesmo a Rossellini. Mas todas estas indagações pessoais não alteram o impacto impossível de negar deste filme.

 Mesmo fora do seu absolutamente inescapável contexto histórico e artístico, será possível olhar a sequência em que Magnani corre desenfreadamente na direção do carro que leva prisioneiro o seu noivo, acabando por ser alvejada e cair na rua poeirenta, morta, uma mártire, e não sentir o grito furioso de Rossellini? Será possível assistir à cena final da execução de Pellegrini e não sentir o ultraje e ao mesmo tempo a esperança que o filme parece querer incutir na sua audiência? Este é um marco na história do cinema mundial, e é difícil olhar para a obra final e não perceber o seu impacto, não entender que temos diante de nós algo realmente especial, algo, talvez, revolucionário, algo maravilhoso para qualquer amante de cinema.



Sem comentários:

Enviar um comentário