quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A ROYAL NIGHT OUT (2015) de Julian Jarrold



 Vivemos num mundo obcecado com celebridades, numa verdadeira cultura de veneração da celebridade. Almejamos estar próximos dessas distantes figuras, queremos saber detalhes da sua vida privada e queremos que pareçam próximos de nós, que pareçam normais, humanos, fáceis de relacionar com as nossas vidas, mas, paradoxalmente, queremos que sejam magníficas, superiores, pomo-las em pedestais e declaramos a sua importância, distanciando-as na mesma medida que nos tentamos aproximar. Dos filmes que estão, neste momento, no cinema, Life de Anton Corbijn será talvez mais fácil de relacionar com tais afirmações sobre cultura, mas penso que A Royal Night Out de Julian Jarrold é fruto desse preciso tipo de pensamento. A rainha Elizabeth II é, especialmente para o mundo exterior à Commonwealth, uma figura pública, uma celebridade, e neste filme, por meio da ficção histórica, aproximamo-nos dessa figura da celebridade. Aproximamo-nos de uma visão açucarada e artificial dessa figura, uma criação tão perto de quaisquer noções de realidade como as princesas dos filmes de animação da Disney, não fosse este filme, basicamente, uma comédia romântica à volta de princesas.

 O filme começa como uma comédia familiar, olhando a dinâmica entre a família real inglesa aquando da vitória da Europa na segunda Guerra Mundial por parte dos aliados. Depressa somos introduzidos a uma dinâmica de caricaturas leves e afáveis, uma rainha disciplinada e ríspida (Emily Watson) e o rei George VI (Rupert Everett), no seu papel de afável patriarca cheio de compaixão para com as filhas, as princesas Elizabeth (Sarah Gadon) e Margaret (Bel Powley). Depois de suplicarem aos seus pais, as duas princesas têm a oportunidade de passarem a noite de festejos em Londres, se bem que sob restritas condições impostas pela rainha. Margaret acaba por fugir aos seus guardas/acompanhantes militares e Elizabeth persegue-a por Londres, tornando-se o filme numa espécie de Adventures in Babysitting com princesas e uma insinuação de romance na figura de Jack (Jack Reynor), um militar republicano que acompanha Elizabeth na procura pela sua irmã. Passamos por festas, pubs, um discurso do rei, clubes ilícitos e festas de soldados, até que ao raiar do dia tudo volta ao normal, depois duma noite de aventuras alegres. Uma história básica, simplista e com uma pátina de açúcar nostálgico capaz de induzir irritação cética para as audiências menos disponíveis a desligarem o cérebro por 97 minutos.

 O filme, em geral, é dotado de um eficiência desinteressante, sendo que seria erróneo acusá-lo de ser um desastre de execução, mas todas as escolhas me parecem desinspiradas e com uma tendência a cair para a mediocridade ou simples e sólido trabalho como um ar de nostalgia. Talvez, tecnicamente falando, o púnico aspeto a que tenho de fortemente objetar é a banda-sonora, fortemente adaptada da música da Glenn Miller Orchestra, o filme depressa se torna musicalmente repetitivo de um modo que detrai do seu geral charme, começando a cair na irritação e deprimente falta de criatividade.

 O elenco segue esse mesmo modo de eficiência simples, sendo que, com duas caricaturas para interpretarem, Everett e Watson são presenças bastante prazerosas, como seria de espectar. As verdadeiras joias do filme são as duas atrizes nos papéis das princesas. Sarah Gadon cujo trabalho com David Cronenberg tem marcado a sua emergente carreira, é aqui uma apta princesa Elizabeth, com um carisma que demanda a atenção da audiência sem ser forçoso, e um olhar com um ligeiro insinuar de melancolia que faz com que os momentos mais desajeitadamente dramáticos, como a abertura do filme, tenham uma boa, se minúscula, dose de peso e importância. Mas é Powley que realmente brilha no filme, interpretando uma exagerada visão de uma divertida e inocente princesa adolescente numa aventura de diversões constantes, dança e álcool. Com um papel que poderia cair na descarada e até ofensiva caricatura grotesca, Powley torna a princesa Margaret no mais luminoso aspeto do filme.

 Mas, independentemente do charme das suas protagonistas, é irremediavelmente estranho ver uma obra de tão descarada ficção histórica em que a principal figura ainda se encontra viva, e, ainda mais importante, permanece uma figura pública de relevância. O filme, em parte devido a isso, mas também devido ao seu tom geral de comédia romântica inofensiva, nunca toma qualquer risco, fazendo com que um enredo com prostitutas e criminosos se torne na coisa mais irreconhecivelmente alegre e impossível de objetar possível. Para uma noite de loucas festas, o filme é imensamente amedrontado pela possibilidade de ofender, ou explorar com alguma complexidade o que quer que seja. Normalmente, em narrativas deste tipo, quando acompanhamos uma figura jovem através de uma noite de festejos até ao início do dia seguinte, embarcamos numa viagem ou emocional ou existencial, o que for, com algum sentido de mudança, nem que seja de perspetiva, quando o filme acaba, aqui nada disso se regista. Apenas um regresso à normalidade de tudo, mostrando o filme como uma inconsequente peça de sobremesa cinematográfica sem nada para oferecer a não ser alguns momentos de charme sem pinga de sofisticação e que é, honestamente, de um imenso aborrecimento.

 O mais grave disto tudo, será mesmo o modo como o filme retrata o final da 2ª Guerra Mundial na Europa, nunca lhe concedendo a sua suficiente atenção ou peso. Acabamos com uma celebração de algo que não é exposto no filme, a sombra da guerra uma mera e vazia menção aqui e ali. A injeção de alguma complexidade nas opiniões políticas de Jack parece sempre superficial e forçada. O filme mostra a noite em que a Europa celebrava o fim de um sofrimento inimaginável, o fim de um dos maiores cataclismos na história deste continente e, no entanto, apenas nos focamos na viagem de liberdade fugaz de uma adolescente princesa. Percebo que pedir mais do filme, talvez, seja uma tolice, mas, tendo em conta a importância textual da guerra, é-me repugnante o seu tratamento neste filme e me lembra o modo como essa parte da história tem sido usada por Hollywood, e não só, de modo simplista cuja consequência é apenas a sua banalização e a ignorância da sua audiência. O filme não tem nenhuma complexidade e o máximo de perspetiva histórica que quer tomar é parecida com as da série Downton Abbey: as coisas eram maravilhosas mas tiveram de mudar, viva a aristocracia, a monarquia e sua proximidade com as classes baixas. O filme tresanda de uma ingenuidade elitista que me é difícil de engolir, apesar das suas simples intenções e relativa inocência.

 É um filme simples, sem ambições ou complexidades. Uma comédia vazia mas que dará alguns momentos de felicidade a certas audiências. Uma peça de sentimentalismo nostálgico que celebra a sua figura central, se revela na sua humanidade e caridade, e tenta arrecadar algum lucro a partir do interesse do público na figura da presente rainha de Inglaterra, aqui uma doce adolescente numa noite de divertimentos ligeiros e fáceis de apreciar mesmo pelas mais conservadoras audiências. Um filme que cairá no esquecimento, como tantos outros filmes semelhantes, destinados a de vez em quando passarem na televisão, para serem distraidamente apreciados por quem não tenha melhor que fazer com o seu tempo, pois, apesar de tudo o que disse, o filme é inequivocamente fácil de ver e, ao não estimular de modo algum a sua audiência, é difícil que alguém se ultraje grandemente com a sua existência. Até para mim foi difícil encontrar as palavras para descrever o que, no final, é uma levemente entediante e perfeitamente esquecível experiência.


ARABIAN NIGHTS: VOLUME 1, THE RESTLESS ONE (2015)

 Once a week, I'll be publishing one of my old reviews translated into english. Let's see of I can get some more visits to this blog.


 Not having seen the three part epic in its complete form, I’m still a bit apprehensive about writing about the first part, the first volume, of Miguel Gomes’ grand opus, Arabian Nights. The choice to divide and distribute the epic in three volumes is, doubtlessly, a commercially sound choice, while also allowing the film to have a broader audience that would tremble at the possibility of watching a six hour film. While I understand this, it still feel as if I need to watch the complete film before offering my thoughts on any of the volumes. But, since that will most likely not happen and the last volume will only be available in October, let’s throw caution to the wind and explore some of my thoughts on the first volume, having in mind that in the future, after watching the entirety of Arabian Nights, my opinion may have changed considerably.

 The film, which recently arrived at Portuguese cinemas, brings with itself an impressive baggage of social, political and artistic expectations as well as undeniable international prestige. Premiered at the Director’s Fortnight at this year’s Cannes Film Festival and awarded both in Australia and Poland, the film has been revealing itself as one of the most ambitious works of cinema this year, showing a political rage and intense satire that, to me, seems to have been slowly dissipating from most of European cinema in the past few decades.

 The ambition of Arabian Nights, which is a sort of epic of the current economic and social crisis, is undoubtedly monumental. And, when speaking of ambition, I’m speaking of both its narrative and volatile thematic content as well as its awe-inspiring form and structure. Example, the beginning of the film looks at the closing of the shipyards in Viana do Castelo, approaching its subject with a perspective that is both documentary-like and lyrical. The audience watches disperse images, gritty and raw while being beautiful as masterfully filmed by Sayombhu Mukdeeprom (usual DP of Apichatpong Weerasethakull), joined by a constant voice-over of the now unemployed workers. Simultaneous to these images of Viana do Castelo, we have a parallel story, an Asiatic wasp invasion that is devastating the native bees. The struggle to eliminate the invaders also contributes some of the most beautiful images Ive seen in cinemas all year, showing the burning of a hive during the night, filling the darkness with a rain of fiery sparks.

 The director, an inescapable presence in the first chapters, states that he can’t come up with a connection between the two different elements of these initial moments, which seems to be a bit disingenuous. A foreign threat entering Portugal and causing the destruction its indigenous population doesn’t seem to be particularly difficult to metaphorically relate to the film’s political intentions. The director apparent confusion is, however, one of the greatest facets of the film, culminating in the scene where Gomes appears on screen running away from his crew and from his film. The creative crisis joined by the social and economic crisis and in this torrent of desperation genius is born, the structure of the rest of the film is born. But it’s not directness and clarity what emerges from this genius, but another path, one of glorious ridicule and absurdist narrative.

 The structure and method of the remaining film have already been widely discusses, both nationally and internationally, but, basically, Gomes employed the help of journalists that would collect several news stories from across the country during a period of 12 months, thus providing material for the episodic structure that utilizes the character of Scheherazade from One Thousand and One Nights, The storyteller first materializes in an oneiric chapter about the virgins of Bagdad, here standing for the journalists that helped Gomes, who supply the Arabic queen with stories, which we watch throughout the following chapters of the film. Tales, satirical and crass, filled with a strange social realism occasionally peppered with fantasy and biblical tonalities.

 The first volume offers three tales, “The Men with Hard-Ons”, “The Story of the Cockerel and the Fire” and “The Bath of the Magnificents”. In the first of these tales we have a political satire, in which Portuguese politicians, amongst them the Prime Minister (Rogério Samora), receive a group of implacable foreigners and try to negotiate the economic measures to be imposed on the Portuguese people. In the midst of this, we have a magical man from the French colonies in Africa, a spray that produces otherworldly erections, and a parade of disgusting behaviours and decisions that demonstrate a frightening distancing between the country’s current social calamity and the incompetent power games played by the European politicians. The humour is crass and grotesque, the satire couldn’t be more obvious, there’s an undeniable rage behind each second of the episode, and all of this is presented in a glorious torrent of ridicule.

 The second story features a cockerel in Resende, which by singing in the middle of the night provokes the anger of the community, resulting in the animal being put on trial. If the first tale is am acidic political satire portrayed by actors that are relatively famous (in Portugal), this one is a delicious absurdist comedy with a deceptively sweet love story between pre-teens, which is revealed to an animal talking judge during the prophetic cockerel’s trial. All of this with non-actors and complete unknowns in contrast with the cast of “Hard-Ons”.

  The protagonist of the third tale is a tired and depressed syndicalist (Adriano Luz). He tries to organize the first bath of 2014, an old traditional o the region, among a community drowned in the misery brought upon by the closing of the shipyards. Three times we watch real-life unemployed people of the community talk about their predicament, filmed in long takes and deliberately slow paced. This last tale is thus filled with a suffocating sense of despair that is impossible to shake off, while also including images of biblical undertones like a beached whale that explodes during one of the protagonist’s dreams, who, in such settings, reveals himself as a sort of suffering Job living through the Portuguese crisis.

 Such a chaptered structure, as I’ve previously mentions in past reviews, brings with it the particular problem of enticing an audience to compare the separated episodes instead of appreciating the film as a whole. Throughout the film there’s an interesting progression, especially regarding humour. Comparing the three tales, there’s a gradation starting with crass and unavoidable satire, progressing into a pervasive melancholy in the love story retold by the cockerel, and ending with an uncomfortable register of dark comedy that emerges from the misery and despair of both the protagonist and the community.

 If I were to choose one of the chapters, falling into the temptation of separating the episodes, I would pick the second tale. There’s something fascinating in the work of the non-actors, in the absurd use of a cockerel for a protagonist, in the unexpected developments of the narrative. The satire is brilliant while containing the melancholy I’ve mentioned above. And it’s filled with a storm of formal and thematic ideas that seem to be at the edge of completely overwhelming the viewer. I’m speaking of, for example, the appearance of a Chinese emperor seems to cast the land itself into a tragedy of fatalistic destruction, the use of cell phone messages creates a game of mistranslations between the voice-over and the written text that extends to the other in other forms, and the mix of almost documentary images with peculiar details like a bowie worn by the cockerel or even the accordionist that follows one of the characters.

 It’s easy to establish connections with other auteurs in the history of the art like Pasolini, Kiarostami, Resnais, Andersson, Buñuel, etc, but, despite having done just that, such an effort seems futile and uninteresting having in account the way Gomes emerges as the creator of such an abysmally ambitious cinematic monument. The film is metatextual, intellectual, weirdly populist, documental and mythological in scope. It’s a miraculously clear and direct mixture of these aspects, creating a density that makes this almost a cinematic equivalent of The Lusiads for a contemporary audience. It’s an epic of the Portuguese people, but here, instead of the heroes of the age of Discovery, we have the misery of the social and economic conditions in contemporary Portugal told in the form of stories and legends, as magnificent in their oneiric visions as silly in their humour and tragic in their representation of the absurdities of this country.



terça-feira, 29 de setembro de 2015

GEORGIA (1995) de Ulu Grosbard

 Um amigo pessoal, e leitor deste blog, enviou-me uma lista de vários filmes, sobre os quais gostaria de saber os meus pensamentos. Aqui vai o primeiro texto de muitos, sendo que a sua lista é considerável e ainda vai demorar algum tempo até todos esses filmes estarem aqui, neste blog, explorados. 




 Há um tipo de filme que se costuma chamar “estudo de personagem” pelo qual eu, normalmente, tenho pouca afeição. Filmes de registos que almejam o naturalismo e se reduzem a peças de observação em que a audiência é convidada a se maravilhar sobre o trabalho do elenco, sendo que o trabalho de ator e, ocasionalmente, o texto são o centro de todo o edifício do filme. É um tipo de cinema muito presente na produção independente americana, cuja crónica falta de ambição e banalidade quase anti criativa me provocam muito mais repulsa que admiração, especialmente na passada década. Mas, por vezes, desse cinema aparece uma obra que surpreende pela sua perspicácia, e em que uma falta de ambição formal não denuncia uma falta de atenção para com este aspeto, e em que a intimidade alcançada com a mera observação consegue ser de uma perspicácia cortante e nos deixa a nós, a audiência, como que hipnotizados pelas vidas que vemos se desenrolarem defronte dos nossos olhos. Georgia de Ulu Grosbard é, para mim pelo menos, um desses filmes, um triunfo de observação intima e dissecação pessoal, e um dos mais fascinantes estudos familiares que se podem encontrar no cinema americano das ultimas décadas, o que, se considerarmos a vastidão de possibilidades, é algo de irrepreensível valor e relevância.

  O filme tem como sua principal preocupação a relação entre duas irmãs, Sadie (Jennifer Jason Leigh) e Georgia Flood (Mare Winningham). Sadie é uma toxicodependente e provavelmente também uma alcoólica que sonha em ser uma estrela musical como a sua irmã mais velha, que nos aparece como uma estrela de folk logo no início do filme com uma fama considerável. Enquanto Sadie é uma constante espiral de caos e autodestruição, Georgia é serena, doméstica e quase desinteressada na sua própria fama. O filme em si, tem início depois de mais uma das crises pessoais de Sadie quando ela toma refúgio na casa da irmã, sendo que, daí para a frente, o que observamos é mais um ciclo na vida das duas, em que Sadie faz escolhas duvidosas e erráticas, acaba por se casar com um ingénuo e inocente homem, Axel (Max Perlich), e acaba mesmo numa cama de hospital a ser cuidada pela sua irmã. O filme é quase um estudo de relações familiares em que a dependência e o afastamento são as palavras de ordem. É um retrato surpreendentemente abrasivo e doloroso de uma família e, pelo menos assim me pareceu, uma experiencia de difícil consumo, fugindo a simplicismos redutivos ou mesmo à estrutura de contrastes binários que parece estabelecer no início da sua observação das duas irmãs.

 Mas não se iluda quem imagina que o filme se limita a uma complacente observação, pois o trabalho de montagem e direção é de óbvio poder e relevância desde os primeiros momentos do filme. Georgia inicia-se num ritmo de imediata velocidade frenética, passando da imagem de Sadie num descapotável a uma serena imagem da infância das duas irmãs e de seguida mergulhando numa sequência de pequenas cenas, quase vinhetas, que demonstram o último desastre pessoal e profissional na vida de Sadie. O ritmo é errático, rápido e um pouco atordoante, mas depressa o filme para, numa pausa formidável quando Sadie assiste a um concerto da sua irmã. A presença em palco e em cena de Georgia é como que um bloco de imobilidade rítmica, prendendo o filme numa observação prolongada do seu número musical, melodioso e calmo em contraste com a crua e sofredora presença de Sadie. Há uma qualidade que quase se aproxima da perversidade nestes momentos iniciais, depois de testemunharmos intimamente o desastre de Sadie, paramos com ela para observar a irmã que ela idolatra. Ela é tão fã da irmã como as pessoas à sua volta, tentando alcançar algo que lhe é negado, a glória de Georgia, e nós, pelo veículo da câmara, quase conseguimos estar mais próximos de Georgia do que Sadie, sempre afastada, sempre distanciada e bloqueada por si mesma.

  Momentos como este, há que honestamente dizer, nunca funcionariam se não fosse o glorioso elenco aqui reunido. Todos os atores são impecáveis, mesmo os que têm menor tempo de presença têm um impacto imenso e fulcral no desenvolvimento do filme. Mas, sejamos sinceros, que o que eleva estas duas maravilhosamente dolorosas horas de cinema ao triunfo são as duas atrizes no seu centro, em duas interpretações quase simbióticas nos seus contrastes. Uma presença fogosa, em constante movimento irritante e uma calma e serena imobilidade em forma humana. Devido a Leigh e Winningham o filme quase se assemelha a observar um comboio embater contra uma parede imóvel e o espetáculo é tão avassalador como feio, abrasivo e acidamente humano na sua especificidade vivida.

 Jennifer Jason Leigh é um milagre de impetuosidade interpretativa, completamente selvagem na sua linguagem corporal e erráticos movimentos. Muitos a consideraram demasiado óbvia e exagerada mas, devido ao seu exagero, é impossível ignorar Sadie, que consome todo o ar das cenas em que entra, focando todo o filme na sua mera presença. Mas, esse exagero, apesar de carismático na sua emoção ferida e vulnerabilidade, é também grotesco e feio em certos momentos, exemplificando a sua decadência e destrutividade de um modo que se recusa a simplificar a sua persona. Olhemos as cenas no hospital, a adormecer a meio de uma fala com um cigarro na boca, meio dormente e cansada, e contrastemos esse animal ferido e destroçado com as cenas musicais de Sadie, com a sua voz tão melodicamente suave como arame farpado e o seu latente desespero. Há um carisma estranho que rapidamente se torna em desconforto, uma dependência pela irmã que trai as suas próprias palavras e um carisma que não corresponde à sua horrível voz e, franca, falta de talento musical.

  Em contraste com a presença energética de Leigh, temos Winnigham numa interpretação que lhe valeu uma merecida nomeação para o Óscar de Melhor Atriz Secundária. Na medida em que Sadie é um turbilhão de fúria e desordem, Georgia é uma presença de suprema calma e quietude doméstica. A sua própria presença em palco parece contradizer a sua fama, o seu impacto sobre todo o filme, recusando-se a injetar qualquer tipo de dinamismo ou carisma de estrela mesmo quando em palco, Georgia parece uma antítese completa de Sadie e uma complementação fenomenal do estilo antagónico de Jason Leigh. Subtileza e exagero em contraste contínuo durante o filme. Mas seria erróneo, e uma traição da complexidade do filme, apenas definir Georgia como uma presença contrastante a Sadie. Uma das coisas mais fascinantes no trabalho de Winnigham é o modo como a sua calma, ocasionalmente, parece revelar-se como uma fachada deliberadamente construída em oposição a Sadie e não uma manifestação de um temperamento natural. Para além disso, e dos fugazes momentos de vulnerabilidade implícita, há uma aura de solidão e melancolia que penetra toda a presença da cantora, reduzindo-a a um distante e frio membro de uma família, sem amigos exteriores ao seu núcleo e deliberadamente apática e afastada da emoção que a rodeia. As sombras de desinteresse e aborrecimento que assombram os seus olhares a Sadie são dos mais imperdoavelmente cruéis momentos do filme.

 Os momentos entre as duas irmãs são os pontos mais altos do filme, sendo que até a mise-en-scène manifesta a sua conturbada relação, colocando muitas vezes Georgia mais perto da câmara nas composições. Georgia, parada e calma, e Sadie em constantes movimentos, em que Sadie parece ter a necessidade de preencher os espaços vazios na imagem. No entanto, alguns dos mais notáveis e celebrados momentos do filme são exemplos do contrário destas mesmas escolhas composicionais. Falo das passagens musicais que envolvem as duas irmãs, nomeadamente a famosa sequência de nove minutos em que Sadie canta a canção “Take Me Back”. O realizador, como em muitas cenas do filme, apenas corta para a reação da irmã que observa a performance, sendo que Georgia, num ato de maternal caridade, de benevolência superior e de agressividade fraternal, intervém no momento de Sadie, harmonizando no background e dando alguma consistência a um numero musical que mais parece uma auto dissecação emocional feita por Sadie para o seu público. O filme força esta comparação binária entre as duas irmãs, mas em momentos como este quebra a sua própria rigidez e dualidade, mostrando uma agressividade e frieza em Georgia, quase que uma necessidade por intervir na vida de Sadie mas também um desejo de alguma da intensidade emocional dela. Sadie é um farrapo humano que necessita de Georgia para existir, mas o contrário também parece, por momentos registar-se, com Georgia como um vácuo em necessidade de preenchimento cru e emocional. Uma salvação pública tao espinhosa como simpatética, e um momento de cruel observação como são muitos neste filme.

  Num dos momentos cruciais de Georgia, Sadie confronta a irmã dizendo-lhe que consegue sentir o que ela sente, sendo prontamente respondida com uma negação de Georgia, e aí se encontra um dos mais importantes aspetos do filme. Há uma constante distância entre os seres humanos do filme, por muito próximos e empáticos que possam ser, criando uma coleção de sujeitos singulares em permanente estado de isolação. Sadie parece ser um mistério para si mesma e Georgia um pico de solidão vazia que deambula calmamente pela vida, ambas em constante jogo de aproximação e afastamento em que a real intimidade e empatia parecem ser impossíveis de alcançar. Vemos um ciclo repetitivo de confrontação passiva-agressiva e autodestruição caótica, e mesmo no final, noutra das comparações cruéis que o realizador força entre as irmãs, o ciclo continua. Sadie, antes de cantar o ultimo número musical do filme, bebe água e parece relativamente rejuvenescida depois do estado em que a vimos no hospital, mas, no final, volta a estar na mesma posição que estava no início do filme, em palco com uma bebida alcoólica na mão e o peso da irmã a simultaneamente levantar e destroçar. Admiro o filme por momentos assim, pelo modo como se recusa a simplificar a existência destas duas figuras que criou, confrontando a audiência e nunca criando um conforto desnecessário pelo meio da sua examinação corrosiva e perspicaz das duas irmãs. Em termos formais há pouca ambição no filme, mas na sua impiedade existe glória cinemática e um impacto emocional que, ao invés de deixar a audiência numa catarse classicista, a deixa numa reticência cruel, num momento de não conclusão, de desconforto e angústia.


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

EUROPA ’51 (1952) de Roberto Rossellini



 Com Europa ’51 continuamos a exploração de uma das mais importantes colaborações da história do cinema, sendo que este filme foi a segunda colaboração de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman. Aqui, a atriz é, de novo, uma estrangeira em Itália, uma mulher inglesa inserida na alta burguesia de Roma que se torna uma espécie de versão feminina e contemporânea de São Francisco de Assis, que Rossellini já tinha usado como sujeito para um dos seus filmes em 1950. Seguimos esta santa contemporânea sob o olhar de Rossellini, filmando Bergman em grandes planos que parecem sugerir La Passion de Jeanne D’Arc e em movimentos constantes que seguem a atriz, e ouvimos o grito humanístico e espiritual do autor, numa sociedade estratificada e em que a empatia humana parece ser abjeta loucura, em que a santidade é incompreensível. Uma mãe perde o filho depois deste se tentar matar, ignorado pela mãe e sozinho num mundo burguês. Face à sua perda começa a alterar-se, a dissipar-se e a olhar a realidade daqueles menos afortunados que si mesma. Isolada, nega a religião, o comunismo, a superficialidade do seu meio, e é considerada louca e colocada num hospital psiquiátrico, uma santa no contemporâneo. De novo aqui, o realizador usa um estilo de cinema novo, meio romântico, meio realista, uma experiência que segue a explosão de Stromboli mas que ainda não chegou à maturação luminosa de Viaggio in Italia.

  Europa ’51 funciona como que um retrato de Rossellini do estado da Europa no pós-guerra, sendo que aqui as brasas que ainda fumegavam durante a sua trilogia da guerra há muito se extinguiram. O que encontramos no início do filme, é uma Europa, mais especificamente, uma Itália em que a normalidade parece ter-se forçosamente imposto e onde a guerra é uma memória tenebrosa, uma sombra que se tenta ofuscar com a luminosidade da normalidade contemporânea. Michele (Sandro Franchina), o filho da protagonista Irene (Ingrid Bergman), viveu com a mãe os bombardeamentos sobre Londres e é, de certo modo, uma criança da guerra, que cresceu durante a guerra e que vive como um fantasma neste mundo que tenta afastar do seu olhar, o que na existência do rapaz se manifesta de modo invariável. Em Germannia Anno Zero, o jovem protagonista suicida-se depois de encontrar um mundo sem lugar para a sua inocência infantil, neste filme algo semelhante ocorre. Michele, uma manifestação viva do passado europeu, é como que cronicamente ignorado, vendo-se num mundo de fachadas normalizadas em que não se insere, o rapaz tenta suicidar-se. Quando morre, não é apenas uma criança, um filho que falece, mas sim um sonho de normalidade da Europa, um sonho do esquecimento. A uma criança da guerra uma normalidade foi imposta, mas é impossível fazer-se tal coisa, e assim se estilhaça essa esperança, e assim se estilhaça Irene, cuja identidade parece entrar numa espiral de implosão, e, tal como a Europa no pós-guerra, se reconstrói em algo novo, não uma simples visão de normalidade burguesa, mas em algo incompreensível para a sociedade que tenta ignorar a fealdade do mundo em que existem. Essa incompreensão é, apesar de tudo, meramente uma incompreensão e não malícia ou maldade, pelo que o estudo de Rosselini é ainda mais cortante e difícil de engolir, fugindo aos moralismos simplistas em que poderia ter caído.

 Parte dessa incompreensão devém desse afastar do olhar da realidade do pós-guerra e devém também de uma insularidade crónica, que se manifesta na estruturação social e humana do mundo visto por Rossellini neste filme. O mundo inicial de Irene é como que uma ilha, o proletariado outra mesma, a igreja outra, e por aí em diante, não se mesclando estas insularidades humanas. Numa cena, um pouco óbvia e deselegante, um grupo de amigos de Irene e seu marido, George (Alexander Knox), brinca com um comboio em miniatura. Anteriormente havíamos ouvido de uma greve nos transportes, mas nenhum dos convidados da festa em que se encontram tiveram problemas, têm todos automóveis particulares, e aqui olham como crianças jocosas o comboio, e divertem-se alheios à realidade que o brinquedo inocente representa. Não há maldade no seu ato mas simples ignorância e um assustador desinteresse. Quando estas invisíveis barreiras que, separam as insularidades sociais, são transpostas por Irene, o que vemos é a sua identidade enquanto parte da sua sociedade a se dissipar, ela torna-se vapor humano na sua presença e impossível de compreender. Os trabalhadores que ela tenta ajudar veem-na como uma santa, e os burgueses como uma louca, ela, de certo modo, rejeita todos os seus limites e todos ela aceita, como que uma figura maternal de abnegação e caridade para com todo o mundo que a rodeia. Transcende a religião e a política, chegando a algo mais profundamente espiritual e, mesmo para uma audiência distante e contemporânea, difícil de aceitar numa sociedade de agora.

 Quando falo em vapor, falo do modo como de um estado concreto e definido de lugar social, económico, espiritual e humano, Irene expande os seus limites, como que se desfazendo da sua identidade, se desfazendo do indivíduo limitado para se tornar uma entidade da coletividade. O contraste entre a materialidade e a imaterialidade são constantes no trabalho de Rossellini, manifestando-se maioritariamente no modo como observa de forma direta e material o mundo numa linguagem realista como, em oposição, joga com a imaterialidade da condição espiritual. Aqui Irene sofre como que uma transição de um estado ao outro, sendo que logo de início há uma enorme materialidade que a define, a casa que a câmara percorre, o carro reluzente, as roupas que criam silhuetas declarativas na composição, sendo que tudo isso se vai dissipando até o espiritual a definir e não sua localização física e material. No final, Irene é muitas vezes vista contra paredes brancas, desfocadas, em grandes planos luminosos, como que desmaterializada do espaço limitado em que se insere. Irene e Bergman dissipam-.se e esbatem os limites que a sociedade e o cinema, cheio de movimentos e separações ideológicas, impõe sobre elas. Rossellini dissipa os limites do cinema, e com eles dissipa Irene, tornando-a em algo etéreo e extraordinário.

  Tal como a persona de Irene, também o olhar dela e o olhar do filme se expande e atravessa os limites que lhe são impostos. Na sociedade do filme, o olhar está por detrás da ação, mas nem sempre é seu direto antecessor, sendo que Irene vai adaptando o seu olhar ao longo do filme, mas a sua definitiva transformação ocorre no hospital, depois da ação se seguir ao olhar, depois do olhar recair sobre si mesmo, coletivo e santo na sua abrangência. Quando entra no hospital, as pacientes olham diretamente para a câmara, num plano da perspetiva de Irene, puxando o plano para a sua perspetiva, destruindo os pressupostos da audiência e da linguagem fílmica em que estão. Irene nunca nos confronta de tal modo, olhando para a câmara, a não ser num momento central, no momento final da sua transmutação, quando acalma uma mulher que acabou de tentar o suicídio. A mulher olha para a câmara, e, pela primeira vez no filme, Irene retribui o olhar, como que o olhar se tornasse ação e se reflete-se sobre si próprio, o indivíduo material de Irene extingue-se, e diz à mulher que não está sozinha. Na sua evolução espiritual, Irene torna-se santa, com o seu olhar para o espetador, ela transcende os limites do próprio filme enquanto construção artificial, atravessa tempo e espaço, e em estado de vapor torna-se a imagem da santa que é celebrada no final do filme. O cinema olha sobre si mesmo, e a humanidade olha para a humanidade, a transcendência espiritual em forma de filme, e a autorreflexão, o olhar sobre nós mesmos, é o caminho para tal transcendência e coletividade espiritual. Nas lágrimas e no olhar de Bergman, toda a humanidade reside, o seu olhar torna-se a porta para o paraíso de que fala numa parte do filme, em que todos são aceites, até Michele. O humanismo e a abnegação personificam-se numa imagem de beleza que é quase dolorosa de se olhar. Bergman raramente foi tão bela e Rossellini raramente tão transcendente.

  Mas, nem tudo em Europa ’51 é o espetáculo de êxtase cinematográfico que descrevo anteriormente. Tal como Stromboli, o filme padece de problemas rítmicos incontornáveis, mostrado uma certa falta de edição da parte de Rossellini, que também tem o triste efeito secundário de tornar partes do filme em cansativas repetições das mesmas ideias. Em termos de texto, há uma deselegância e queda na demasiada enfatização e explicação das suas ideias que trai a elegância e sofisticação da sua abordagem formal, que é, há que dizer, bastante subtil e que quase parece fugir dos visuais mais chamativos, sendo que nada neste filme tem o mesmo nível de espetacularidade que a pesca dos atuns ou o final de Stromboli, ou qualquer um dos passeios de Katherine em Viaggio in Italia.

  Esses problemas são, francamente, preocupações menores quando confrontados com o filme como um todo, sendo que é uma parte inseparável da série de filmes que Rossellini fez com Bergman num avançar estrondoso do cinema e dissolução de seus códigos e limites classicistas. O próprio modo como Rossellini usa uma estruturação de melodrama burguês para mostrar a construção da santidade numa pessoa, é incrivelmente desafiadora, negando a simplificação da bondade humana que vítima tantas obras do cinema ocidental mainstream e fugindo também às limitações do neorrealismo e outras vanguardas internacionais. Rossellini olha o mundo seu contemporâneo e fá-lo olhar sobre si mesmo, olhar para o estado da humanidade, mas não julga, não condena e não castiga, deixando a sua moralidade católica bastante presente mas nunca deixando o seu filme cair na didática religiosa. Aqui Bergman, que em tempos foi uma Joana d’Arc simples e superficial numa obra de Hollywood, mostra-se na mais bela das suas interpretações para Rossellini, apresentando-se neste filme como uma visão tão sobre humana na sua luminosidade como visceralmente humana na sua evolução e estado de perda emocional e existencial. Do sofrimento nasce o génio deste filme, e assim prossegue a viagem de progressão do cinema nas mãos de Rossellini e Bergman. Quando falei de Viaggio in Italia, falei de como o novo cinema de Rossellini já havia crescido e aprendido a andar e olhar quando se revela nesse filme, aqui temos a sua aprendizagem, o seu crescimento, personificado em Irene, em Bergman, na Europa em si, como vista em Europa ’51.


domingo, 27 de setembro de 2015

EISENSTEIN IN GUANAJUATO (2015) de Peter Greenaway



 Quando ouvi falar deste projeto, antes sequer da sua estreia em Berlim no início deste ano, foi-me impossível conter a antecipação e expetativas. Sergei Eisenstein visto por Peter Greenaway. Um dos mais importantes autores na história da evolução do cinema celebrado por um dos mais provocadores autores da contemporaneidade. Greenaway é, pelo menos para mim, um realizador de difícil afeição, com as suas teorias e argumentos sobre a morte do cinema e suas contradições constantes sobre o fim da arte e início do cinema apenas agora, uma estética que desafia os limites do meio e o combina com outras artes em misturas exuberantes mas friamente precisas. Mas, apesar de entrevistas e conferências de imprensa que o realizador britânico fez, não é uma das suas mais usuais experimentações de precisão, frieza, e formalismo quase matemático que observamos, mas sim a que é talvez a sua mais indisciplinada e jovial experiência cinematográfica.

 O filme ocupa-se de recontar, sob o característico olhar de Greenaway, os dez dias que Sergei Eisenstein (Elmer Bäck) passou na cidade mexicana de Guajanuato, aquando da sua expedição a esse país quando tentava filmar a sua obra Que Viva Mexico!, que resultou numa montanha de material filmado à qual o realizador nunca teve acesso. Este foi um ponto de viragem na vida profissional e artística do realizador, marcando uma queda de graça que deixaria marcas no resto da sua vida, assim como um ponto de viragem nos seus filmes que, depois desta experiência falhada, se transmutaram em biografias maravilhosamente excessivas de figuras individuais na História russa ao invés das experiências de montagem e fulgor popular que caracterizaram o início da sua obra. Esse ponto de viragem é aqui apresentado, a partir de fontes históricas, como a perda de virgindade do mestre soviético e sua relação com Palomino Cañedo (Luis Alberti), aqui um guia mexicano na visita à cidade. Sob o peso do legado da montagem soviética, Greenaway decide explodir em exuberante jogo neste filme, seguindo o seu retrato louco do soviético, também o filme é louco na montagem, emergindo como uma tempestade de constantes flashes de imagens históricas, ecrãs tripartidos que lembram Abel Gance, manipulação digital da imagem e das transições, uma demência estilística que é tão espectável da parte de Greenaway como é surpreendentemente indisciplinada.

   E essa indisciplina estilística, que parece contrariar a precisão de obras passadas, estende-se também ao texto que está curiosamente pejado de erros históricos e momentos de pura irracionalidade no que diz respeito à própria lógica interna do filme e suas figuras. Tendo em conta que os filmes de Greenaway emergem de pesquisas e estudos cuidados, e que neste filme parte do diálogo é precisamente adaptado de passagens escritas pelo próprio Eisenstein, há que presumir que estas pressupostas falhas foram intencionais da parte do realizador. Greenaway é assumidamente fascinado por Eisenstein, e aqui essa fascinação, apesar de estar contida na sua usual teatralidade cinemática, parece explodir na emoção na medida que outros filmes de Greenaway explodiam em literatura e exatidão. Uma viragem de indisciplinada emoção e humanidade grotesca na vida de Eisenstein parecem transpirar para a própria estrutura do filme de Greenaway, onde a emoção excessiva se sobrepõe à lógica, à História, à própria linguagem do cinema.

 E essa emoção nunca atinge maior veículo que nas cenas de sexo que o realizador aqui filma com uma maior dose de humor, empatia e até erotismo que no resto da sua filmografia. Os corpos, longe de serem objetos estéticos em manipulação pitoresca, são aqui humanos pulsantes em confronto físico, em espetáculo de emoção e sedução, em euforia. Esta é uma temática típica de Greenaway, mas aqui é mais solta e leve que em obras passadas, ainda se encontrando detalhes e aspetos que demarcam, mesmo estes momentos de libertinagem deliciosa, como partes intrínsecas da filmografia de Greenaway. Estruturalmente, a grande cena de sexo está no meio exato do filme, reforçando a estrutura quase espelhada evidenciada pelo início do filme e seu semelhante final. Mas esta precisão matemática e teatralidade parecem-me um pouco depuradas neste filme, talvez pelo abundante uso de exteriores cuja filmagem não se parece tão precisa ou influenciada pela pintura como passados filmes, ou pela falta de rigidez. Nesta celebração Greenaway parece afastar-se da pintura, que é tão necessária para a sua oeuvre, e torna como arte de principal reflexão estética neste filme, o próprio cinema em si, obtendo algo de jubilante e cheio de vitalidade numa filmografia onde tais palavras são usualmente usadas apenas como exemplos do que não existe.

 Também a comédia é uma constante na obra de Greenaway, mas raramente foi tão abjetamente explorada e usada como aqui. A violência grotesca que torna a comédia típica de Greenaway em cortantes exemplos de comédia negra, aqui está maioritariamente ausente. Eisenstein é uma caricatura maravilhosa e mesmo nos mais trágicos momentos há uma leveza quase jocosa ao seu sofrimento que impedem o filme de cair com o peso de sua seriedade. Eisenetsin in Guanajuato está longe de ser a elegia historicamente focada e friamente teatral que eu esperava, sendo ao invés disso um jogo de exuberância, emoções e uma celebração profana e levemente perversa do seu sujeito. O filme é um apto seguimento de Nightwatching e Goltzius and the Pelican Company, mas infinitamente mais leve e jubilante que essas duas obras passadas.

 Apesar de tudo isto que até agora afirmei, esta obra não é algo grandemente atípico ou pouco característico da oeuvre de Greenaway, sendo que, em termos de registo dos atores, exuberância teatral e anti naturalista da sua cenografia, uso tresloucado de grandes angulares e backgrounds digitais, e outros componentes do design, o filme é inquestionavelmente um produto da mente criativa de Greenaway. E tal não se manifesta apenas na estética e forma, mas também na temática e filosofia inerentes ao filme, para bem e mal da obra final.

 Sexo e morte, e sua inseparável relação, são constantes na obra de Peter Greenaway, sendo que este filme em particular se assume como mais uma exploração destes mesmos temas. A estruturação e depuração da figura de Eisenstein, numa criatura de ebuliente emoção, torna o filme numa espiral de repetições cansativas das mesmas ideias que se verificam nos últimos trinta anos da obra de Greenaway. Há um nível didático a esta insistência, que apenas parece mostrar uma estagnação na ideologia do autor, cujo estilo e técnica estão em constante evolução, mas cujas ideias estruturantes dos seus filme parecem tão congelados e moribundas como ele acusa o cinema de estar enquanto arte.

 Independentemente deste crónico estado de repetição que parece trair as próprias teorias pessoais do autor, há algo de fascinante nesta sua mais recente obra. Eisenetsin in Guajnajuato consegue, ao mesmo tempo, revelar-se como uma obra um tanto ou quanto menor, como uma obra essencial na evolução do autor britânico, cujas indagações filosóficas ficam, para mim, sempre muito longe do génio da sua experimentação formal. Um espetáculo de celebração do próprio cinema, aqui sob a autoria de uma das mais auto curadas e auto promovidas figuras do circuito artístico contemporâneo. O filme, para quem se deixar levar pelas suas excentricidades e experiências de tresloucada inspiração, é um espetáculo exuberante e fascinante, uma indisciplinada e deselegante obra longe da perfeição ou mesmo exatidão formal, mas inegavelmente cativante e digna de atenção.


sábado, 26 de setembro de 2015

VIAGGIO IN ITALIA (1954) de Roberto Rossellini



 Como falar de Viaggio in Italia? Sobre o que é Viaggio in Italia, em primeiro lugar? A uma superficial análise, o filme é um retrato de um casal em moribunda desunião, ambos numa viagem, não só, por Itália, nomeadamente Nápoles, mas também numa viagem cujo destino final parece ser a conclusão do seu matrimónio. Mas, devido ao olhar irreparavelmente ligado ao realismo, que Rossellini confere a variados momentos no filme, a obra parece estar mais preocupada com Nápoles em si. Um filme sobre uma terra e uma cidade mais do que sobre um casal. Mas, para além da materialidade da terra, há algo de espiritual no filme, algo que parece existir em todos os filmes de Rossellini, e que supera a visão imediata e limitada do neorrealismo italiano. Penso que, depois de reflexão, mais do que tudo o resto, o filme se revela como um filme sobre cinema. Como arte, como imagem, como movimento, como tempo, como vida. Devido a isso também afirmaria que, apesar de uma receção bastante fria quando estreou e de muitas opiniões contemporâneas ainda o apontarem como um filme menor de Rossellini, este é um dos mais fulcrais e importantes filmes da História do cinema. Se do final de Stromboli nasceu, de forma violenta, um novo cinema, em Viaggio in Italia, esse cinema já cresceu, maturou, aprendeu a andar e olhar, e vislumbra o passado, vira-lhe as costas e avança para o seu futuro.

 Como, disse, a um inicial e superficial olhar, o filme trata de uma crise matrimonial entre um casal inglês a viajar pela Itália contemporânea de Rossellini, Alex e Katherine Joyce interpretados por George Sanders e Ingrid Bergman. O filme inicia-se, aliás, de modo dissimuladamente simples. Vemos uma estrada enquanto por ela avançamos, obviamente por meio de um automóvel, observamos uma paisagem em movimento vista da janela de um carro e rapidamente cortamos para o interior da viatura. Estamos num Bentley a viajar por Nápoles, como o diálogo expositivo nos informa, e olhando para o casal, vestido em tweed inglês e um casaco que rasga a imagem com o seu padrão de leopardo, logo nos apercebemos da separação entre os protagonistas e o mundo que os rodeia. Eles vivem insularmente no seu melodrama matrimonial, cujo início nos é negado pela estrutura do filme, e existem numa realidade suaves contrastes, e harmoniosos movimentos e composições cinematográficas, enquanto, à sua volta, a câmara, seguindo uma gramática visual mais próxima do neorrealismo que do cinema romântico de Hollywood, observa a vida dos camponeses italianos que também se movimentam pela estrada.

 Logo aqui o filme se parece começar a mostrar como um estudo sobre si mesmo, cinema sobre cinema. O cinema neorrealista da Itália pós-guerra em desarmonia com um cinema classicista de herança americana, que ganhava crescente popularidade numa nação em reconstrução. Mas, Rossellini não se limita a esta simples dicotomia, acrescentando outros cinemas ao seu jogo de contrastes, como um cinema de melodrama aristocrático que lembra os filmes requintados de uma Itália fascista do passado, assim como, em momentos específicos, parece cair numa abstração de movimento e som inéditos na sua filmografia e de uma beleza que transcende a simples captura de uma realidade material em filme.

 Para além de um movimento quase fatalista do matrimónio em colapso, há pouca estruturação classicamente dramática ou narrativa no desenvolver do filme, sendo que a sua estruturação se revolve muito mais à volta da repetição. A repetição de um tipo de sequência singular a este filme, em que primeiro acompanhamos Katherine dentro do seu Bentley, a partir do seu olhar, observamos a Itália contemporânea, Aqui observamos toda uma vida em momentos fugazes, mulheres grávidas e procissões fúnebres, religião e política, o trabalho dos camponeses e o alarido urbano. De seguida temos momentos em que vemos Bergman a observar algo do passado, algo cujo tempo preservou apesar da sua implacável passagem. Primeiro temos uma galeria de esculturas clássicas, depois as ruínas de Cumae, em terceiro lugar temos o Vesúvio e sua dormente fúria natural e por último uma visita às catacumbas, templos de morte e em que o tempo é uma presença esmagadora na sua ameaça. Há uma outra visita deste género, mas a sua estrutura é diferente e seu impacto demasiado singular para juntar a estas estrutura de repetição.

  Das quatro sequências, a primeira é a que me deixou maior impacto, se bem que talvez não seja a mais temática e formalmente relevante. A câmara de Rossellini quase entra num transe de gloriosos movimentos em volta das esculturas. Os movimentos congelados no tempo pelas peças ganham momentânea vida na sensualidade do luxuriante trabalho de câmara e luz. O olhar de Bergman também expressa um movimento, o do observador que tal como nós observa o milagre do cinema nas mãos de Rossellini. A música de Renzo Rossellini, o irmão do realizador, catapulta a sequência para algo que chega ao lírico, ao espiritual Nos olhos das esculturas parece emergir uma vitalidade quase sobrenatural, o que contrasta com a seca voz do guia que acompanha Katherine pelo seu passeio. A passagem do tempo congelada num momento de êxtase aqui tornado espetáculo luxuriante pelo artista Rossellini.

 Há algo intrinsecamente ligado à morte e à mortalidade no modo como Rossellini filma estes momentos, mas também, paradoxalmente, há quase uma tentativa de tornar essa morte em vida, a partir do cinema. Os movimentos no primeiro passeio, a voz off no segundo que torna as ruínas num lugar de espiritualismo místico, criando uma vida invisível nas suas superfícies, o modo como a interação humana com o vulcão resulta em movimento, como se da rocha emergisse uma presença viva, e o mesmo acontece com os corpos nas catacumbas, tornados gritantes ameaças sob o olhar amedrontado de Bergman. Mas não são só estas visitas que existem no paradoxo da vida e morte em simultâneo. Os amigos que o casal encontra no início do filme parecem emergir de uma era passada, sombras de uma aristocracia que já não tem lugar na Itália contemporânea. O fantasma da guerra assombra toda a realidade, por vezes sendo mencionada em breves momentos de diálogo. O próprio tio de Alex, que viveu numa casa em Nápoles que o casal tenta vender, é um fantasma trazido ao de cima pelo diálogo e pelos objetos que deixou para trás. O seu nome, Homer, quase lembra Homero de novo trazendo a lembrança do passado da História e sua materialidade e imaterialidade ao filme. Mas mais do que História, vida ou morte, estas indagações, para mim, reduzem.se ao tempo, tempo passado tornado presente pelo cinema, estaticidade tornada movimento.

  Há outro passeio no filme, este feito pelo casal a Pompeia, onde ambos observam as escavações arqueológicas que aí decorrem e veem a descoberta de dois corpos, preservados no momento da sua morte pela fúria vulcânica que sobre eles se abateu. Um casal, um homem e uma mulher. Aqui Bergman, pela primeira vez, parece completamente avassalada pelo momento, pelo horror, pela carga simbólica e espiritual do momento, quase que recordando Karin em Stromboli e a sua reação à pesca do atum. Mas a que reage Bergman, Katherine, o próprio filme? À morte? Ao tempo? Durante todo o filme, Rossellini observa o passado em objetos congelados na passagem do tempo, em cadáveres e edifícios, aqui o presente é confrontado com algo violento, com a preservação do momento exato em que dois humanos perderam a vida e a sua mortalidade é exposta em relevo assustador. A mortalidade da personagem, da atriz e do filme em si. Passados quase 62 nos desde as filmagens destas imagens, o próprio filme se tornou documento da morte, documento do tempo aqui congelado, tendo os seus atores há muito falecido, assim como o seu realizador e a própria terra onde foi filmado já não é a mesma. O que é o filme senão uma série de imagens estáticas que em sucessão criam movimento e que nesse movimento contêm o tempo do passado trazido, como que congelado, ao presente do espetador? Depois do filme olhar esse passado de uma plataforma superior, como nós olhamos o passado do nosso presente, de repente há uma confrontação com a sua própria condição no tempo. Rossellini filma aqui a morte, mas não é só a morte humana, mas também a morte do cinema. O golpe desferido em Stromboli, de onde um novo cinema nasceu, um cinema moderno e quase modernista, aqui acaba por matar o cinema passado, enquanto o novo cinema que dele nasceu o observa aterrorizado com o que vê, mas avançando implacavelmente no tempo.
 Isto nunca se torna mais explícito que nos momentos finais do filme, em que todas as preocupações do filme parecem culminar numa fulgurante conclusão. Mas antes de falar desse final e terminar também este raciocínio há que mencionar um pouco mais sobre o filme, nomeadamente sobre a sua estrutura e seus atores.

 Em termos de estrutura narrativa o filme imensamente vago e errático sem grande direção percetível, cheio de momentos mortos e um desenvolvimento da narrativa matrimonial que deixa muito a desejar se julgarmos o filme pelos mesmos critérios que aplicaríamos a um drama de Joseph L. Mankiewicz. Há uma porção do filme simplesmente focada na procura por uma garrafa de água mineral, algo estranhamente inconsequente e superficialmente desnecessário, como se ao atribuir um tempo tão vasto a pormenores sem relevância, Rossellini estivesse a rasgar o tecido da narrativa principal, ou pressuposta como principal. Tal estrutura, ou aparente falta da mesma, conjugada com um método errático, dependente de impulsos do momento e improvisações, deixou ambos os atores, estrelas de Hollywood, perdidos nas mãos do realizador. Bergman, aqui já acostumada aos devaneios do seu então marido, julgou este e os seus restantes filmes como nobres fracassos e George Sanders várias vezes proclamou quão estranho e sem propósito o filme e o seu processo teriam sido. Essa confusão dos atores perdidos é aproveitada por Rossellini do mesmo modo que em Stromboli, a estranheza de Bergman é fulcral para o filme. Aqui ambos estão envoltos num melodrama matrimonial que é confrontado com outro cinema, ambos são artefactos clássicos em completo ataque das ideias do autor em evolução, e a sua condição de atores perdidos é exacerbada pelo modo como o realizador os filma. Para Rossellini os atores eram inseparáveis das personagens, sendo que o que vemos no filme está mais próximo de uma narrativa sobre Sanders e Bergman do que sobre Alex e Katherine. Em ambos os casos, por exemplo, verificam-se crises matrimoniais, Bergman e Rossellini e Sanders com a sua então esposa Zsa Zsa Gabor, e tanto nos atores como nas personagens há algo de confrontacional e agressivo no modo como ambos os pares viajam por Itália, num mundo estranho e a eles alienante, e onde são confrontados, de certo modo, com a brevidade inevitável da sua existência e relevância.

 O filme não é de fácil consumo e tem provocado insatisfação, como podemos verificar pelos atores, desde a sua construção, mas, para mim, é das mais gloriosas obras desta arte de que aqui falo. E no seu final, como seria de esperar num filme deste autor, todas estes fios de pensamento se juntam num triunfo cinemático em forma de conclusão. O final é, na verdade, uma multiplicidade de conclusões, sendo que, a mais visível é, certamente, a da narrativa matrimonial, o aspeto mais classicista do filme. O casal, depois da crise despoletada pelas esculturas em Pompeia, encontra-se prestes a aceitar a sua separação quando são forçados a parar o carro, num momento que reflete o próprio início do filme. Aqui são parados, de novo, pela pressuposta realidade italiana, uma procissão religiosa que enche a estrada. Desta massa de gente, deste evento religioso, um milagre narrativo parece ocorrer e, abruptamente, ao casal é concedido um final de Hollywood. A multidão e seu fervor espiritual parecem produzir o milagre do final feliz, do final populista. Mas, em contraste com este fim, Rossellini não termina o filme nos seus dois aparentes protagonistas. Pelo contrário, a câmara afasta-se dos dois ingleses, de costas para nós, e acaba por filmar o avançar da multidão. O movimento da população, observado não com a tentativa de realismo do neorrealismo nem com o polido brilho do melodrama, mas com um lirismo e simplicidade que convertem as pessoas em puro e rarefeito movimento filmado, congelado no tempo pela câmara em si. As estrelas de Hollywood tiveram o seu final de Hollywood, mas o cinema de Rossellini vira-lhes as costas e avança, impiedoso, imparável para a frente, para um futuro. O cinema do autor celebrado pelo neorrealismo afasta-se do neorrealismo, mantendo algo da sua observação, toca em Hollywood e nos clássicos e deles retira algo de imaterial, algo de poético e transcendentemente romântico, depois de formado algo novo, a morte tem de existir, a morte do velho para o nascimento do novo. A morte está no passado, mas a carcaça persiste como os corpos de Pompeia, este novo cinema olha para o passado, aterrorizado foge, o realismo não é a resposta, mas no romantismo idealizado também não está. Com o passado, o clássico, o obsoleto pelas costas, o cinema avança para o futuro, para o que será a Nouvelle Vague e o cinema de Antonioni, para o que é o cinema moderno, e esse avanço está aqui congelado no tempo, o seu movimento e existência preservados na obra genial e avassaladora que é Viaggio in Italia do mestre Roberto Rossellini.


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

LOST RIVER (2014) de Ryan Gosling



 David Lynch, Nicolas Winding Refn, Dario Argento, Terrence Malick, Ryan Gosling. Um destes nomes não parece pertencer aos restantes e certamente não é o de nenhum dos ilustres realizadores com estilos imensamente definidos e filmografias celebradas mas sim o ator aclamado pela crítica que, com O Rio Perdido, decidiu experimentar a sua mão na área da realização e escrita. Uma coisa há que, no entanto, reconhecer em Gosling e isso será o seu gosto cinematográfico que obviamente inclui os nomes acima referidos, e que o ator, tornado aspirante a autor, usa como influências na criação deste filme que, mais que um filme que existe por si só, é uma colagem desajeitada e caótica de coisas que Gosling viu nos filmes desses autores e decidiu emular, senão descaradamente copiar.

 Filmado em Detroit, o filme desenvolve-se a partir de uma narrativa à volta de uma família em que a mãe solteira Billy (Christina Hendricks) é encurralada pelas demandas de um banco, e vê-se envolvida numa espécie de cabaret do macabro em que as performers sofrem horrendos e miraculosamente falsos atos em palco. O filho mais velho, Bones (Iain De Caestecker) vê-se envolvido numa trama com o pseudo gangster Bully (Matt Smith),que domina as ruas vazias da cidade decadente. Pelo meio temos a sua vizinha e namorada Rat (Saoirse Ronan), acabando por descobrir um submundo escondido nas águas do rio do título, e o homem por detrás da situação depressiva de Billy, o manipulador e traiçoeiro Dave (Bem Mendelsohn) que, para além de colocar a protagonista em dependência da sua ajuda monetária, é o dono do clube de macabro em que ela se vê forçada a trabalhar.

 Grande parte do problema do filme devém do facto de Gosling não ter qualquer interesse em explorar o seu texto de modo algum, apenas estando focado em copiar técnicas e momentos de mestres que ele admira. O que resulta disto não é um pastiche sofisticadamente bombástico como vemos em Tarantino, ou mesmo a irreverência juvenil de Dolan, mas sim um caos desajeitado e imensamente pretensioso. O filme apenas vive como um exercício estético mas nem isso é possível de completamente apreciar, em parte pela dependência de Gosling ao convencionalismo de uma narrativa. Como experimentalismo o filme é um fracasso medíocre, como narrativa, o filme é uma catástrofe.

 Ao contrário de muitos atores tornados realizadores, Gosling parece demonstrar uma colossal falta de interesse em explorar o trabalho dos humanos para os quais aponta a câmara, sendo que as figuras femininas são particularmente menosprezadas pelo seu olhar. Hendricks, que deveria, de certo modo, ser o centro de toda esta confusão, é pouco mais que uma imagem bonita que Gosling vai desfilando por uma coleção de magnificamente iluminados cenários. O seu interesse na atriz nada tem que ver com as suas capacidades interpretativas ou mesmo com a sua mera presença, sendo mais cosmética que qualquer outra coisa. Sob o olhar da câmara de Gosling, Hendricks é um corpo voluptuoso de pele pálida, adornado por fogosos cabelos, e que, de vez em quando, Gosling pode utilizar para chorar ou ser uma superficial vítima dos impulsos mais macabros que ele transplantou das filmografias de Lynch e Argento.

 Mas, paradoxalmente a esta falta de interesse no seu trabalho, o realizador parece dar uma liberdade absolutamente desmedida ao seu elenco, sendo que Mendelsohn e Smith em particular parecem cair num turbilhão de tiques, maneirismos e momentos de exagero extremo e descontrolado sem nunca parecerem contribuir nada ao filme. Isto é particularmente trágico no caso de Mendelsohn, cujo papel requer muito mais modulação que o monstro urbano de Smith, e cuja usual precisão e silenciosa ameaça estão aqui em completa absência.

  O modo como Detroit é utilizada pelo aspirante a autor, é de particular repugnância. Enquanto certos momentos do seu texto parecem indicar a alguma sombra de exploração de miséria social, Gosling mostra-se completamente enamorado por uma ideia glorificadora e infinitamente romântica da pobreza e condição desesperada das suas personagens. O mundo em ruínas é tornado vazio objeto estético, filmado com um estilo exuberante mas sem propósito. E a pura beleza vazia poderia ser um propósito, como Paolo Sorrentino já mostrou na sua filmografia, mas a Gosling parece faltar até esse tipo de foco ou motivação. O filme vai vagueando pelas suas visões sem nexo, e mostrando a teatralidade da miséria humana, que aqui é puramente desumana e desinteressante e desinspirada na sua abjeta artificialidade, que parece mais forçada pelas influências de Gosling do que uma escolha deliberada e refletida pelo realizador da obra.

 Mas nem tudo no filme é a catástrofe que a direção e o texto conseguem ser. Tecnicamente o filme é formidável, copiando tudo de outros autores, mas fazendo-o de modo requintado e eficiente. A fotografia é magnífica, conseguindo encontrar momentos de extasiante beleza, mesmo nos momentos mais tristemente convencionais na mise-en-scène de Gosling. Uma casa em chamas consegue ser hipnótica, não pelo trabalho do realizador, mas porque há uma simples beleza na imagética que transcende o seu contexto ou mesmo os ritmos impostos pela desastrosa montagem. A música e a cenografia são igualmente magníficos, se bem que extremamente óbvias nas suas origens referenciais. O filme não conseguia copiar mais de Dario Argento e de Suspiria em particular, sem se tornar num remake do estilo de Psycho de Gus Van Sant.

 Num momento singular em todo o filme, no exterior de uma estação de serviço, vemos Bully a ser confrontado por uma mulher sem-abrigo. Na realidade uma mulher que andava pelos locais de filmagem e foi inserida no filme. Há algo de energético e palpavelmente errático e surpreendente nestes momentos. Matt Smith é. Por momentos, forçado a modular os seus excessos e também Gosling parece tornar-se em observador do momento, sem cobrir tudo com técnicas de outros autores. Aqui o filme pausa, aqui o filme atinge um momento de fugaz experimentação. Por momentos a afetada direção de Gosling acalma-se e observamos o vislumbre do que este filme poderia ter sido se o realizador tivesse sido mais seguro ou mais desprendido dos seus ícones cinematográficos. Como o filme existe, é uma pueril colagem de outros filmes, sem nexo, interesse, ou originalidade, uma entediante, irritante, mas ocasionalmente bela experiência e uma prova que Ryan Gosling se deveria restringir a trabalhar em ator quando confrontado com um projeto cinematográfico. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

AVENGERS: AGE OF ULTRON (2015) de Joss Whedon



 Vivemos numa era de domínio popular da Marvel sobre o cinema de entretenimento populista, sendo que, tal é a sua segurança sobre o seu próprio sucesso, já existe um plano de vários filmes que se prolonga pelos próximos anos. O MCU (Marvel Cinematic Universe) estende-se, neste momento, a mais de 11 filmes e a séries de televisão, sendo que Vingadores: A Idade de Ultron é o final da dita Fase 2 do seu desenvolvimento que também incluiu Iron Man 3, Capitão América: O Soldado do Inverno, Thor: O Mundo das Trevas e Guardiões da Galáxia, indo a qualidade variando consideravelmente de projeto para projeto. Mas, independentemente de qualquer questão de qualidade, inovação ou mera proficiência, os filmes são sempre eventos globais, destinados a arrecadar milhões das carteiras dos seus fervorosos fãs.

 Este tipo de serialização do cinema quase lembra os grandes seriados do início do século passado, mas não nos iludamos que o MCU é uma segunda vinda de Louis Feuillade ao cinema contemporâneo. Apesar de ser um seriado, uma das coisas que mais me impressiona e dececiona em relação a este filme é o modo como os passados filmes desta segunda fase de desenvolvimento parecem ser inconsequentes. As personagens deste filme parecem ter saltado do último Vingadores diretamente para este, sem passar pelos desenvolvimentos dos filmes que os separam. Por um lado, há certas coisas neste filme que eu estaria disposto a desculpar, como partes do enredo que parecem incongruentes e desnecessárias, se considerasse o aspeto serializado destes filmes, mas, quando o filme se parece esquecer desse seu mesmo aspeto, eu não tenho quaisquer fundações para me apoiar em alguma defesa dos problemas textuais do filme.

 O filme tem início no meio de uma sequência de ação em que a equipa de heróis, que já conhecemos dos seus passados filmes, tenta recuperar o cetro que Loki utilizou no anterior filme dos Vingadores, em Sukovia, uma localização fictícia da Europa de Leste, com traços de um passado claramente soviético. Estes momentos de ação são das melhores porções do filme, não desperdiçando tempo desnecessário em prolongadas reapresentações do elenco principal e movendo-se a um ritmo que lembra alguns dos melhores momentos do filme anterior. Pelo meio somos apresentados a duas novas personagens, a Scarlett Witch (Elizabeth Olsen) e Quicksilver (Aaron Johnson), um par de gémeos mutantes (se bem que não são assim definidos no filme) que primeiro se manifestam como presenças antagónicas. Os poderes mentais da parte feminina deste duo são o que acaba por despoletar o enredo principal do filme, ao exporem Tony Stark (Robert Downey Jr.) a uma visão de um mundo e equipa destruídos.

 A personagem de Stark, o Homem de Ferro, sempre foi a de um megalómano e egotista milionário, mas a sua hubris chega a níveis estratosféricos neste filme. Das suas mãos nasce Ultron, uma tentativa de criar uma presença robótica para guardar a segurança global sem qualquer pensamento dado às assustadoras implicações de tal poder. Ultron, no entanto, não se mantém no controlo do milionário e, na que é inequivocamente a mais perfeita cena do filme, depois de uma festa na torre dos Vingadores, aparece aos heróis na forma de uma carcaça grotesca de partes de antigos fatos mecânicos do Homem de Ferro. A sua voz é a de James Spader e a sua atitude a de um Pinóquio justiceiro e sanguinário. Como forma de salvar a Terra, a criatura decide destruir a humanidade e assim nos vemos atirados ao enredo que irá guiar o resto do filme enquanto os Vingadores lutam para impedir o vilão, cuja racionalização e olhar superior lembra o do seu criador supostamente heroico.

 Quando estava pela primeira vez a ver o filme, nos cinemas, pensei que a obra fosse explorar esse aspeto de Tony Stark, a mais relevante personagem em todo o franchise, e cujas atitudes caem muitas vezes na de um pseudo autocrata milionário com noções de grandeza e superioridade moral. Mas o filme, longe de realmente questionar e julgar as ações dos seus heróis, ações que o próprio filme parece recriminar inicialmente, acaba por cair numa narrativa heroica e desajeitadamente simplista. No final, o modo de derrotar a personificação apocalíptica da hubris do milionário é outra manifestação da sua hubris, sendo que o seu estatuto de herói e salvador não é de todo problematizado. Isto num filme em que todas as personagens parecem ser lavadas de qualquer sombra de complexidade que os filmes anteriores tenham estabelecido, o que é um verdadeiro desapontamento.

 Isso ainda se torna mais grave quando, devido maioritariamente à presença de Whedon, os melhores momentos do filme são aqueles de pausa e que se apoiam maioritariamente na interação deste grupo de personagens entre si. A sequência da festa é um triunfo do estilo de Whedon e do carisma do elenco, e uma prolongada pausa a meio do filme na casa de família é uma sequência de simples relaxamento cinemático por entre as explosões bombásticas do filme em que se inserem. O filme aliás, segundo os vislumbres do drama da sua produção, foi fortemente influenciado pelas decisões e demandas dos produtos, sendo que Whedon se sentirá descontente com o trabalho final. O seu toque pessoal é visível, mas está bastante mais atenuado que no seu anterior esforço para o MCU e o filme é, parcelarmente como consequência a isto, infinitamente menos leve e prazeroso em termos de experiência de entretenimento.

 O ponto, definitivamente, mais fraco do filme é quão cansativo e repetitivo consegue ser, especialmente nas cenas de ação. Longe de qualquer ponderação temática ou ideológica do filme, há passagens em que o tédio é o maior inimigo da obra. Pelo menos para mim, a batalha final, o grande clímax da narrativa, é incrivelmente aborrecida, parecendo uma reciclagem desinteressante de cenas semelhantes na filmografia do MCU. Por muitas explosões, mortes previsíveis e sem carga dramática, ou momentos em câmara lenta exuberante, não há grande novidade ou energia que propulsionem estes momentos à grandeza a que parecem almejar. Um dos grandes problemas devém mesmo da qualidade serializada do MCU, que garante aqui a segurança óbvia de todos os principais heróis. É um filme cheio de ação em que o perigo e a tensão não se manifestam alguma vez, em que a principal ameaça do filme está sempre a ser desenhada, pelo diálogo, como uma ameaça contra toda a humanidade, mas cujo catastrófico perigo nunca é verdadeiramente enfatizado pelo filme ou sentido pela audiência. Uma sequência a meio do filme, em que observamos uma bombástica luta entre o Hulkbuster e o Hulk é, apesar de dinâmica e energética, um momento narrativamente morto e incongruente para com o resto do enredo. Uma pausa rítmica no avançar da narrativa e uma indulgência do filme para com os fãs que, em termos cinemáticos, é um enorme desastre na estrutura de A Era de Ultron.

  Não quero parecer demasiado negativo pois, a verdade é que, o filme é bastante fácil de ver, e para grandes fãs dos heróis e do género, os momentos entediantes deverão ser leves passagens sem grande influência no resto da experiência geral. Para quem queira simplesmente passar umas horas com estes heróis, o filme é uma ocasional delícia, sendo que o elenco se mantém maravilhosamente eficiente e energético na interpretação das suas icónicas figuras. Scarlett Johansson, apesar de duvidosas escolhas narrativas, continua a ser um píncaro de carisma e sensualidade inteligente, sendo uma presença fulcral para o funcionamento do filme como obra de entretenimento (onde está o filme da Viúva Negra?!). Os efeitos visuais são, como é normal, um espetáculo visual da primeira instância, e Ultron, apesar dos desenvolvimentos desapontantes do clímax do filme, é dos melhores vilões deste franchise.

 Na sua globalidade, considero o filme uma desilusão, mas para verdadeiros fãs, acredito existir glória no que para mim foi entediante e, talvez, até génio no que eu achei convoluto, inexplicável, chato (toda a narrativa de Thor), incongruente ou simplesmente desinspirado. Independentemente do que a crítica disser, todos sabemos que nada consegue parar a trajetória meteórica dos estúdios Marvel e os seus projetos futuros. Vivemos na era do domínio da Marvel, para bem e mal é com isso que temos de aguentar nos próximos anos de blockbusters de verão e filmes de ação à volta dos seus célebres heróis.


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

MAGIC IN THE MOONLIGHT (2014) de Woody Allen

 Ando com este texto no computador há meses. Finalmente tenho aqui uma boa oportunidade para o publicar, tendo em conta que ontem coloquei o texto sobre o novo filme de Allen. Uma coisa que tenho a dizer é que, apesar de criticar Stone nest texto, acho que o seu trabalho em Irrational Man é infinitamente superior e não merece qualquer das palavras que eu aqui uso para falar do seu trabalho no filme anterior de Allen.



 Woody Allen é um autor incrivelmente prolífico, oferecendo aos seus fãs um filme por ano. Isto traz os seus benefícios e os seus problemas, e o principal problema é perfeitamente exemplificado pela coleção de inegáveis fracassos que marcam a sua extensa filmografia, sendo que, por vezes, parece apresentar um estilo e uma voz fossilizadas com o tempo e já ultrapassadas, revelando, ocasionalmente, o seu génio em obras de surpreendente vivacidade e sagaz inteligência. Magic in the Moonlight não é de todo um desses sucessos, estando até perfeitamente posicionado para ocupar o título de pior filme do realizador não fosse a existência de outros desastres inegáveis.

 O filme desenvolve-se à volta da figura de Wei Ling Soo ou Stanley Crawford (Colin Firth) um carismático ilusionista britânico que se disfarça de chinês para fazer a vida nos palcos europeus da gloriosa década de 20. Para além desse entertainer existe um homem fortemente cínico, cético e com uma desagradavelmente franca personalidade. Um protagonista bastante desagradável, não fosse o carisma de estrela de cinema que irradia de Firth e o deixa deslizar elegantemente pelos nós e clichés deste guião e enredo.

 Stanley é contactado por um amigo (Simon McBurney), também ele ilusionista, e é levado à Cote D’Azur onde uma abastada família americana está a ser aparentemente ludibriada por uma jovem e aparentemente legítima mística e vidente, Sophie (Emma Stone). Ela é tão popular que conseguiu, aliás, seduzir o filho da família (Hamish Linklater) e convencer a matriarca (Jacki Weaver) da possibilidade de comunicar com o seu falecido marido. O filme será então uma confrontação entre Stanley e Sophie, estando este constantemente a tentar provar a falsidade dela, acabando os dois, obviamente, por se apaixonarem. Outras coisas acontecem ao longo do filme, incluindo alguns rasgos de irracionalidade que fazem de todo o desenvolvimento de personagens do filme algo de bastante duvidosa integridade, mas a única coisa que interessa mencionar é a ocorrência de variados interlúdios de Stanley com a sua idosa tia Vanessa (Eileen Atkins), sendo que os diálogos entre os dois são a única prova do verdadeiro talento de Allen presentes nesta pútrida criação.

 O elenco, com a exceção de Firth e Atkins é bastante desinspirado, sendo Stone o inequívoco elo mais fraco, não conseguindo transformar o turbilhão de clichés e contradições em nada semelhante a um ser humano ou a uma personagem coerente apesar da insistência de Allen em forma de texto e direção, não sendo ajudada pela óbvia falta de “química” entre ela e Firth. Isto faz com que, pelo menos, o elemento romântico do filme seja um redundante fracasso. Não fosse já a diferença etária entre os dois protagonistas românticos, que apesar de ser algo comum na filmografia de Allen não deixa de ser um cliché deplorável e pouco convincente no modo como ele acaba por escrever a dita relação.

 Mas se o guião está cheio de clichés e o trabalho do elenco é competente e agradável quando não é um completo desastre, então como é a concretização técnica do filme? É agradável, tenho de dizer. Nada de extraordinário decerto, mas agradável. Os figurinos de Sonia Grande são particularmente maravilhosos na sua elegante recriação de uma visão simples e glamorosa da década de 20. Os cenários, especialmente nos primeiros momentos do filme também são particularmente bons, especialmente na recriação do decadente e requintado mundo da Alemanha de Weimar nos seus últimos momentos de glória e de cultura de cabaret. Também o trabalho de Darius Khondji como diretor de fotografia é agradável e bonito, palavra odiosa e terrível elogio. O filme captura uma certa beleza de postal que parece apropriada ao filme sem parecer idealizado em demasia.

 O que me traz grande pena é, sem dúvida, o potencial do filme para ser algo melhor com outra protagonista, um desenvolvimento diferente da trama romântica e com uma mais interessante exploração da figura do seu ilusionista, que é baseado numa figura da vida real e que poderia ter trazido consigo uma interessante exploração do mundo do entretenimento da época, do seu racismo casual, da sombra colonialista que se abate sobre esse tipo de representações. Ou mesmo a decadência económica que tanto marcou essa década antes de a Depressão arrasar com os sonhos dourados de tantas pessoas como Sophie, essa aparente caçadora de tesouros. A época do filme é simplesmente uma escolha estética, quase cosmética, e parece ser apenas uma indulgência de Allen para com o seu próprio gosto pessoal, tendo já feito imensos filmes neste ambiente histórico em particular.

 É, portanto, outra triste e medíocre entrada na filmografia de Allen que ainda há dois anos tinha conseguido achar alguma glória tardia com Blue Jasmine, merecida ou não está aberto a debate. O filme será, certamente, apreciado por fãs de Allen e por quem consiga achar algum estímulo nas suas ocasionalmente fascinantes ideias, e desenterrá-las do filme menor em que se encontram depositadas.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

MADAME BOVARY (2014) directed by Sophie Barthes

A partir de hoje, pelo menos uma vez por semana, eu irei publicar uma tradução para Inglês de uma das minhas antigas críticas. Vamos ver se consigo alcançar mais visitas ao blog com este esquema.

From now on, at least once a week, I'll publish an English translation of one of my old reviews. Let's see if I can get more visits with this ploy. 





 What makes a film a good adaptation of a literary work? An efficient translation of the author’s intentions into a cinematic form? A new exploration of the piece through the perspective of the film’s director, thus creating a film that is, more or less, a work independent of its literary roots? Or, perhaps, an accurate and complex representation of the psychology of characters such as the protagonist of Madame Bovary?

 I don’t want to imprudently proclaim Sophie Barthes’ (The first woman to direct an adaptation of Madame Bovary) adaptation of Gustave Flaubert’s most celebrated novel a good literary adaptation or a failed one, but I want to say that regarding all those parameters I’ve mentioned in the above paragraph, the film is a failure. But it fails in a fascinating way, not seeming to be at all concerned with achieving any of those things.

 This is made possible, in part, by the screenplay which cuts quite a lot of important portions of the novel, like its ending, or the Bovary’s daughter. But the main thing that brings to such a view of the film is the way in which the film observes and portrays the central character of Emma Bovary.
 In the hands of Barthes and her lead actress, the Australian Mia Wasikowska, Emma never stops existing in the film as a cypher for its audience. Emma seems to constantly be at a palpable distance from us, her motivations impenetrable both for the audience and, at certain moments, for the woman herself. There’s a moment, when Emma looks at herself in a mirror, which reminds one of such a scene in New York, New York. In that film, Martin Scorsese directed Liza Minnelli in such a way that in her unwavering stare there’s something vitreous and impenetrable, mysterious and unreachable by the audience. As in that moment in Scorsese’s musical, there’s a persistent aura of strangeness regarding the central character in Madame Bovary, as well as an apparent reluctance, from everyone involved, to interpret, explore, or resolve Emma Bovary.

 Wasikowska’s work is essential for the success of such a distant and essentially superficial approach. It brings to mind her similar work in Cary Fukunaga’s Jane Eyre, but while in that film there seemed to be an implied interior world and perspective never expressed externally by the character, in Bovary we have a character full of external actions and reactions whose interiority is a complete inaccessible. Many will, and have, looked at this as an unswerving flaw, but to me there’s something special that her portrayal injects in the film, separating it from many similar adaptations that spread their banality through the history of cinema like weeds pretending to be prestigious roses.

 By denying such an exploration, visibility or even mere comprehension of Emma, the film never really falls in the usual downfalls of simplification or forced reinterpretation that torment other, much more famous and celebrated, adaptations of Flaubert’s opus. As I said before, this is helped by the textual choices and by Barthe’s approach, especially in what refers to the rest of the cast and the film’s visuals.

 One of the more discussed choices, supposedly made by the director, is the way the entire cast employs deliberately disparate accents, avoiding, in most cases, the usual English accent that is so prevalent in period films independently of their setting. Ignoring that no community in 19th century France would be speaking in English, one has to observe the way such a choice contributes to the game of distancing and alienation that seems integral to the film. This is particularly noticeable when scenes feature actors speaking with American accents, some of them with a shockingly contemporary tone. The language itself seems to distance itself from the narrative and from the reality of the world depicted in it.

  That distancing is never better visually expressed than in the costumes worn by Emma Bovary, and in the way they relate to the rest of the world surrounding them. The work of Madame Bovary’s costume designers (Christian Gasc and Valérie Ranchoux) in previous films like Adieux à la Reine had left me with a negative opinion on their contributions, considering them often cheap looking and clumsily stylized in such a way that they never seemed to truly belong in the films they appeared in. This doesn’t happen here.

 Visually speaking, it’s impossible to look at Emma Bovary without understanding that she is in a certain disconnect regarding everything around her. While the remaining cast seems locked in a general aesthetic of elegant historical recreation, a bit common and expected, Mia Wasikowska emerges as a strangely stylized and colourful creature. Her clothing looks as if it belongs in another film, especially in what regards its colours, turning Wasikowska in a brush of acidic aggressive colour that rips through the images. Her presence creates a visual unbalance, destroying the harmony of even the more idyllic and pastoral images, attractively shot by Andrij Parekh.

  Bovary is thus incomprehensible to herself, to the audience and to the physical world she inhabits. A colourful insect one moment, a tropical flower the next, she emerges from the classically romantic settings of the rest of the film. The distance that Barthes imposes on her protagonist makes this adaptation, certainly not perfect or even particularly exciting, but unequivocally different. When one speaks of a work that has been so often adapted, a little surprise and a little variety of intentions and approach is much more than what a great majority of prestige literary adaptations have to offer.