terça-feira, 1 de setembro de 2015

AS MIL E UMA NOITES: VOLUME 1, O INQUIETO (2015) de Miguel Gomes



  Sinto-me um pouco receoso de expressar desde já a minha opinião acerca da grande opus de Miguel Gomes, As Mil e Uma Noites, em parte porque ainda não vi o épico na sua forma completa. A escolha de dividir e distribuir o filme em três volumes é, sem dúvida, uma escolha comercialmente sã e uma maneira de assegurar uma maior acessibilidade do material a um público que estremeceria face à “tarefa” de ver um filme de seis horas, mas, mesmo assim, continuo infeliz de não ter a oportunidade de ver de uma só vez o material. Parece-me que necessito de ver o filme completo antes de tentar transmitir qualquer observação acerca dele mesmo, mas visto isso só ir acontecer em Outubro, venho desde já expressar algumas opiniões acerca do primeiro volume, sendo que no futuro talvez acabe por discordar com observações aqui feitas.

  O filme, recentemente chegado às salas de cinema portuguesas, traz consigo uma já enorme carga de expetativas e de prestígio internacional. Estreado na Quinzena dos Realizadores em Cannes e premiado em Sidney e na Polónia, o filme parece estar a revelar-se como uma das mais ambiciosas obras do cinema de 2015 a nível mundial, regressando a uma intensidade política e satírica que parece se ter vindo a desvanecer em grande parte do cinema contemporâneo.

 A ambição do filme, que é efetivamente uma espécie de epopeia da crise económica portuguesa levada ao nível do mito, é monumental. E, quando falo de ambição, falo tanto da narrativa e conteúdo temático volátil como falo de forma e estrutura. O início do filme perfeitamente demonstra este peso da ambição cinemática, iniciando-se com uma visão documental e quase lírica sobre o encerramento dos estaleiros de Viana do Castelo e o seu impacto na comunidade. Vemos imagens dispersas, rudes e cruas mas belíssimas, capturadas pelo diretor de fotografia Sayombhu Mukdeeprom (usual colaborador de Apichatpong Weerasethakul), e conjugadas com um voz-off constante de trabalhadores afetados pelo fecho dos estaleiros. Mas, juntamente a isto, temos a invasão de vespas asiáticas e sua destruição das abelhas nativas, assim como a luta para a destruição das vespas que oferece à audiência imagens magníficas de uma colmeia de vespas a arder e espalhar uma chuva de fagulhas na escuridão de uma noite cerrada.

 O realizador, que é uma presença inescapável nestes primeiros capítulos do filme, afirma não perceber a ligação dos dois eventos, mas esta confusão parece ser um pouco de humildade forçada, sendo que uma ameaça estrangeira que entra em Portugal e destrói os seus nativos não me parece ser muito difícil de metaforicamente ligar às intenções políticas do filme. Esta confusão do realizador é, no entanto, um dos melhores elementos do filme, culminando na fuga do realizador da sua equipa de filmagens dentro do filme. A crise criativa junta-se à crise económica e social e no desespero surge o génio, surge a estrutura. Do ridículo e absurdo emerge a clareza, uma clareza que, na verdade, é um caminho a mais glorioso ridículo e absurdo.

 A estrutura e método do resto do filme já foram bastante falados tanto nacional como internacionalmente, mas, basicamente, Gomes utilizou jornalistas que iam reportando notícias de acontecimentos em Portugal ao longo de um período de 12 meses, fornecendo material para uma estrutura episódica que usa a história de Xerazade d’ As Mil e Uma Noites. A figura da contadora de histórias aparece num onírico capítulo das virgens de Bagdad, aqui no papel de fornecedoras de histórias, como que análogas dos jornalistas para Gomes, e a partir daí vamos observando capítulos do filme na forma de contos, ora satíricos e crassos, ora repletos de realismo social mesclado com tonalidades bíblicas.

 Neste volume, temos três desses contos, chamados “Homens de Pau Feito”, “A História do Galo e do Fogo” e “O Banho dos Magníficos”. No primeiro temos uma sátira política que vê políticos portugueses, entre eles o primeiro-ministro (Rogério Samora), a receberem implacáveis estrangeiros e a negociarem as medidas económicas e sociais a impor sobre o país. Pelo meio temos um feiticeiro das colónias francesas em África, um spray que produz ereções mágicas, e uma parada de nojentos comportamentos que apenas demonstram um distanciamento assustador entre a realidade da calamidade social do país e os jogos incompetentes de poder e relevância dos políticos europeus e portugueses. O humor é crasso, grotesco e a sátira não podia ser mais óbvia, há uma raiva inegável por detrás de cada momento, e uma gloriosa apreciação pelo ridículo e absurdo, tanto a um nível textual como formal.

 De seguida, uma história de um galo em Resende, que canta a meio da noite e vai enfurecendo a comunidade que põe o animal em tribunal. Se o primeiro conto é uma sátira ácida dos políticos atuais interpretada por atores conhecidos, este é uma deliciosa comédia absurdista que culmina no revelar de uma história de amor literalmente fogoso entre jovens pré-adolescentes, pelo galo, durante o seu julgamento face a um juiz que percebe a fala dos animais.

 No terceiro, um sindicalista cansado e deprimido (Adriano Luz) a tentar organizar o primeiro banho do ano de 2014, com uma comunidade na miséria depois do encerramento dos estaleiros vislumbrados no início da obra. Por três vezes vemos um relato real de trabalhadores desempregados, em planos longos e quase estáticos, dando uma atmosfera de inescapável miséria a estes últimos momentos do primeiro volume, que também inclui imagens de teor bíblico como uma baleia encalhada na praia que explode num sonho do protagonista, que no seu sofrimento lembra um Jonas do Portugal em crise.

  Tal estrutura episódica, como já mencionei em textos anteriores, traz o problema da comparação entre episódios, sendo que alguns se vão revelando mais bem-sucedidos que outros. Uma coisa interessante de se verificar na progressão do filme e dos três contos, é a gradação do humor que começa por ser crasso e inescapável nos políticos com ereções, passa por um absurdo melancólico com o galo profético e acaba numa espécie de humor negro que me lembra as supostas comédias do Novo Cinema Romeno na sua negrura e deprimência.

 Do meu gosto pessoal, provavelmente escolheria o segundo conto como o capítulo mais glorioso deste volume. Há algo de fascinante no trabalho dos não-atores escolhidos para o filme, no absurdo do galo, no ridículo dos desenvolvimentos do enredo, algo de brilhante na sátira e algo de estranhamente triste e melancólico na história de amor jovem e imaturo. Tudo isto acompanhado de uma torrente de ideias formais e narrativas que por vezes parecem afogar a audiência. Uma aparição de um imperador chinês parece condenar a terra à destruição futura, um jogo formal de mensagens de telemóvel cria um jogo de traduções mal feitas que parece repetir-se pelos outros contos noutros formatos, as imagens são ao mesmo tempo quase documentais como cheias de pormenores estranhíssimos como um laço no protagonista animal ou um acordeonista que vai dando acompanhamento musical a uma das figuras da história.

 É fácil começar a estabelecer ligações com outros autores na história do cinema como Pasolini, Kiarostami, Andersson, Buñuel etc., mas tal não me parece ser de grande interesse ou relevância. Com este filme, Gomes cria um filme indubitavelmente único na sua forma, abordagem e ambição inimaginável. Um filme metatextual, satírico, intelectual, populista, mitológico e documental. Uma mistura miraculosamente clara, mas densa, de ideias e histórias que fazem do filme como que Os Lusíadas do cinema português contemporâneo. Uma epopeia do povo português, só que aqui não são heróis navegadores que se tornam mitos gloriosos, mas sim a miséria da condição social e económica e a incompetência política que são tornados em histórias e lendas, tão magníficas no seu olhar onírico como ridículas no seu humor e no triste absurdo do panorama atual do nosso país.

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