terça-feira, 15 de setembro de 2015

HUANG JIN SHI DAI (2014) de Ann Hui



 Quando decidi ver o novo filme de Ann Hui, A Era de Ouro, apresentado na Festa do Cinema Chinês que, de momento, decorre em Lisboa, não tinha grande ideia do filme que me esperava. Sabia que tinha no papel da protagonista a atriz Tang Wei, cujo trabalho em Sedução, Conspiração de Ang Lee lhe garantiu a minha eterna devoção, e também tinha uma vaga ideia que era um filme biográfico sobre uma autora chinesa do século XX. O filme é, de facto, uma obra biográfica sobre a celebrada escritora chinesa Xiao Hong, cujo trabalho era para mim completamente desconhecido, e depois de ver o filme, há que dizer, me mantenho na mesma condição de ignorância. Sei agora da sua importância e relevância artística, intelectual e literária, mas não tenho que agradecer tal coisa ao filme mas sim à pesquisa que fiz depois de o ver, sendo que com quase três horas, o filme pouco faz para elucidar o espetador acerca da sua figura central.

 Não se pode, no entanto, acusar o filme de não conter em si informação e facto histórico, pois disso o filme tem em sobra, mas mantenho a minha opinião de que o filme pouco ou nada tem a dizer sobre a sua figura central cuja breve vida conteve uma infinidade de amizades com outras importantes figuras literárias, fugas do país, o sofrimento da guerra, uma coleção de admiradores numerosos, entre outros, sendo que quase tudo isso está, de certo modo, contido no filme. Desde o início que o filme começa, de maneira clara e direta, a bombardear o espetador com factos, aqui na forma da protagonista, filmada a preto-e-branco, a olhar diretamente para a câmara e a descrever factualmente dados sobre a sua vida, incluindo detalhes da sua morte. Depois disso passamos para um registo típico de um filme biográfico não fosse o constante uso de personagens secundárias a falarem diretamente para a câmara, dando mais informação ao espetador sobre a escritora no amago do filme. Esta técnica bastante surpreendente num filme deste malfadado género, mantém-se durante todo o filme, expondo Xiao Hong a partir dos olhares dos seus amigos, admiradores e família, e mantendo uma constante distância da mesma.

 Isto, mais do que fornecer qualquer tipo de retrato perspicaz da autora, cria uma confusão, talvez intencional, de informações, por vezes contraditórias, e que, apesar da sua claridade, criam uma sobrecarga imensa sobre o filme, que parece se perder por entre essa inundação de diálogo expositivo dirigido à audiência. Os intervenientes são, francamente, muito mais interessantes e bem definidos do que a protagonista, devido a isto e ao resto da abordagem do filme, o que permite a um exemplar elenco secundário injetar alguma vida neste filme, que com a sua estrutura e duração consegue testar a paciência do mais forte dos cinéfilos. Gostaria de especialmente louvar o trabalho de Yawen Zhu no papel de Duanmu Hongliang, um autor admirador de Xiao Hong e uma figura central no último terço do filme, que consegue capturar uma adoração apaixonante pela protagonista e é, talvez a única pessoa no filme, que realmente transmite a perda e melancolia que tanto impregnam a atmosfera da obra.

 No papel principal d’A Era de Ouro temos a, já referida Tang Wei. A sua contribuição ao filme é bastante curiosa. A atriz torna bastante verosímil o génio e coleção de admiradores da autora, personificando na sua presença um inegável carisma, beleza e inteligência. É fácil perceber porque é que todas estas pessoas se sentiriam atraídas como traças a uma chama por Xiao Hong, mesmo nos seus momentos mais petulantes ou abrasivos. No entanto, tudo isto é exclusivamente superficial, sendo que a atriz, tal como todo o filme, parecem querer manter uma distanciação colossal da vida interior da personagem histórica. Isto não seria necessariamente problemático não fosse o extremo foco do filme na vida pessoal da autora e visível desinteresse em explorar o seu trabalho ou importância a não ser em alguns momentos fugazes. Com três horas de melodrama histórico, e uma miríade de observações feitas sobre Xiao Hong, é impressionante o quão pouco sabemos sobre ela ou a honesta falta de empatia que, pelo menos, eu senti em relação à sua morte. A figura é fascinante e elusiva mas há uma opacidade irritante sobre si, que parece paradoxal ao interesse obsessivo no filme em catalogar cada movimento e momento da sua vida pessoal e emocional. Isto é tanto culpa da atriz, como do texto como da realizadora.

 Ann Hui cria aqui aquele que é talvez o seu mais ambicioso projeto, pelo menos em escala, virando as costas ao íntimos e simples estudos de uma realidade contemporânea que caracterizam muito o seu trabalho e virando-se para um épico biográfico de uma figura de aparente extrema importância e fama literária. A simplicidade de obras passadas é aqui substituído por floreados estruturais, como os atores a olhar para a câmara ou a utilização de ocasional texto no ecrã, que cobrem e decoram o que é, na verdade, um filme biográfico imensamente classicista. E seguindo esse classicismo, temos uma sólida mas banal e desinteressante concretização formal, sendo que apenas a fotografia tem algum interesse com o seu uso de cores fortes e composições precisas e clássicas. O filme é tão inegavelmente belo como é entediante e ineficaz.

  No final, talvez tenha sido a minha predisposição para detestar documentários ou a minha falta de familiaridade com o sujeito do filme que me levam à minha presente situação de insatisfação perante a obra, mas o facto é que não consigo encontrar grandes aspetos positivos no filme, mesmo que o considerando apenas como um filme e ignore toda a informação histórica na sua periferia. É uma obra de estranhos paradoxos, um melodrama sem dinamismo dramático, um filme obcecado com a vida privada mas que se mantém sempre distante da protagonista, uma montanha de factos, citações e informações que deixa o público tão desinformado como estava antes de ver o filme. A Era de Ouro é quase um ensaio académico à volta de Xiao Hong, que apesar de estar sobrecarregado de informação factual e histórica, parece se ter esquecido de mostrar qualquer perspetiva ou formular qualquer tese acerca dessa informação. Um filme ineficaz sobre uma celebrada autora e génio literário, que, infelizmente, não contém nem sombra de inteligência ou perspetiva artística, sendo apenas longo, enfadonho e ocasionalmente agradável nos seus visuais clássicos e bastante comuns.


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