domingo, 20 de setembro de 2015

STROMBOLI (1950) de Roberto Rossellini



 Em 1948, no pico da sua fama e reconhecimento crítico em Hollywood, Ingrid Bergman, a atriz sueca tornada estrela pela indústria cinematográfica americana, enviou uma carta a Roberto Rossellini, expressando a sua admiração pelo seu trabalho e a sua disponibilidade e desejo de com ele trabalhar. Rossellini também estava no píncaro da sua carreira artística, sendo internacionalmente reconhecido pelos seus filmes neorrealistas. Hoje em dia, ambos são lendas da história do cinema, duas criaturas míticas que em seis filmes colaboraram, para além de estabelecerem o que foi na altura uma escandalosa ligação romântica. Bergman seria temporariamente ostracizada por uma Hollywood moralista que não via com bons olhos o romance adúltero, e as colaborações entre a atriz e o realizador, fariam com que muitos renunciassem a Rossellini pelo modo como este se afastava do Neorrealismo nos filmes que fez com Bergman. Apesar de oposições e críticas, este casal e o seu trabalho são marcos incontornáveis na história desta arte, sendo que os seus filmes revelam-se, talvez, como os mais importantes e corajosos trabalhos que ambos alguma vez iriam criar nas suas carreiras.

 Stromboli foi a sua primeira colaboração, e o filme em que durante as filmagens, a relação amorosa entre os dois terá tido início. Foi também o único dos seis filmes a ter uma produtora americana, a RKO, sendo que o escândalo, que levou à ostracização da atriz, faria com que os estúdios se afastassem da estrela sueca e do realizador italiano, cujos seguintes filme seriam produções exclusivamente europeias. De certo modo, é o mais experimental e explorador filme da sua colaboração, sendo por consequência, talvez, o mais inconsistente e problemático da sua oeuvre conjunta. E, devido a tais problemas, o mais fascinante e interessante dos seis.

 Bergman interpreta Karin, uma mulher de origem lituana que durante a 2ª Guerra Mundial fugiu para a Checoslováquia, acabando por ter de novo fugido e acabado num campo de refugiados, de pessoas sem lugar, na Itália do pós-guerra. É aí que a encontramos, presa por vedações de arame farpado e com o seu pedido de emigração para a Argentina a lhe ser recusado. Como modo de sair do seu internamento no campo, Karin seduz e casa-se com um dos seus guardas, um pescador italiano, Antonio (Mario Vitale), que a leva para sua casa na ilha de Stromboli. A ilha tem um vulcão no seu centro e seu desenvolvimento é mínimo, existindo num primitivismo antigo que nada tem a ver com os ambientes urbanos dos filmes passados de Rossellini. Nessa ilha e nesse matrimónio, Karin encontra outra prisão, cheia de moralismos católicos e hostilidade, sendo que, insatisfeita e combativa, a protagonista vai flirtando com os homens da ilha, exige ao marido mais dinheiro e comodidades e, num final ato de desespero, decide fugir da ilha e do seu casamento, terminando o filme a tentar atravessar a ilha depois de uma erupção vulcânica.

 O filme marca uma evolução drástica na filmografia de Rossellini que, até este filme, estava firmemente preso ao neorrealismo italiano, sendo que com este filme, mais do que uma obra neorrealista, Rossellini criou um melodrama centrado à volta de uma estrela de Hollywood. Mais do que uma mudança formal ou estética, o filme mostrou uma mudança em sujeito e conceito, passando o cinema do autor de uma exploração da Itália e Europa pós-guerra a um estudo sobre a presença de Bergman. Em L’Amore, Anna Magnani era certamente central, mas eram as suas personagens que observávamos e nelas uma coletividade de uma Itália contemporânea. Em Stromboli nenhuma dessa coletividade existe em Karin. Eu diria mesmo que o centro do filme não é, de todo, Karin, mas sim Bergman, a estrela, a presença, a atriz estrangeira.

 O uso de estrelas de cinema por autores é algo que acho inerentemente fascinante, e Rosselini utiliza a persona de Bergman de modo extraordinário. Karin é lituana, com um nome escandinavo e encontra-se em Itália sem saber falar italiano, Ingrid Bergman é uma atriz sueca, estrela de Hollywood, e aqui apresentada em Itália, sem saber falar italiano, sendo o seu diálogo todo em inglês (excetuando na versão completamente dobrada em italiano). Nem Bergman, nem Karin pertencem ao ambiente onde estão e é dessa estranheza que o conflito do filme emerge, sendo que Karin é uma pessoa sem lugar, tal como todos os refugiados no princípio do filme, e, neste momento da história do cinema, também Bergman se apresentava sem lugar. O filme e o romance que teve com o realizador despoletaram o escândalo em Hollywood, sendo que a atriz só viria de novo a ser aceite nesse mundo de doirados estúdios e estrelas quando em 1956 fez Anastasia e ganhou o Oscar de Melhor Atriz. É a volta da sua presença majestosa e inteiramente distinta dos não atores que preenchem o resto do filme que Rossellini encontra muita da fricção que faz o filme crescer em fúria reprimida, culminando na explosão literal e metafórica do final do filme.

 Quando filma algo que não Bergman, o realizador parece ter na mente o seu neorrealismo tão característico, filmando os pescadores no seu trabalho e a erupção vulcânica que resulta na evacuação da ilha com uma observação removida e ao mesmo tempo dramaticamente realista que lembra os seus anteriores trabalhos. Mas, mesmo esses momentos estão contagiados pela presença luminosa da estrangeira luminosa, tornando, a partir da sua observação, as cenas que descrevo em momentos de um lirismo absoluto mesclado com uma imagética realista. A cena de pesca é particularmente apaixonante, indo de uma observação passiva da serenidade relativa do trabalho físico, a uma revulsa palpável à violência caótica da matança dos enormes peixes. O olhar de Karin contamina a fórmula neorrealista e daí algo novo emerge, um desenvolvimento fascinante do estilo, uma rutura pela progressão, um avanço para o cinema moderno. As imagens de Rossellini, apesar de semelhantes às de Visconti em La Terra Trema, têm em falta a observação afastada mas precisa que tornou as visões de Visconti em mitos contemporâneos da realidade italiana, ao invés tornando a comunidade piscatória numa opressiva atmosfera, numa prisão, para a sua protagonista neste melodrama realista,

 O filme, apesar de tais visões espetaculares, é marcado por uma estrutura bastante repetitiva, tanto estrutural como tematicamente, dando a impressão que, no meio do filme, se encontra uma curta-metragem de absoluta perfeição avassaladora. Mas isso, por outro lado, removeria o impacto do final, dependente, em grande parte, do lento crescendo de angústia que Rosselini vai tecendo. Uma angústia de Karin, de Bergman e dos espetadores à medida que vai sendo exposto a uma série de moralidades e julgamentos católicos do autor sobre as suas personagens, não sendo o seu olhar reprovador e dissecante apenas virado para a figura caprichosa e desesperada de Karin. O moralismo católico de Rossellini chega a mesmo a ser algo opressivo e difícil de aguentar enquanto audiência, mas, para quem esteja disposto a caminhar este caminho particular do autor italiano, o final do filme tem em si um milagre cinemático.

 A protagonista passa todo o filme em busca da sua liberdade, nunca a encontrando. Nos momentos finais, caminha, em fuga, pela rochosa ilha vulcânica, passando pelo seu cume, em busca dessa tão inalcançável liberdade. Bergman estava grávida de Rosselini quando estas cenas foram filmadas, sendo que Karin também é feita grávida pelo autor, reforçando a unidade que as duas presenças são, a atriz e a figura do filme. A paisagem, mais do que uma extensão violenta da emoção da protagonista, parece uma manifestação divina de uma fúria superior. Fúria dirigida ao mundo, talvez. Em sofrimento e exaustão a protagonista cai e suplica a Deus que a ajude, depois de um filme em que a religião parecia bastante longe da sua mente. Os seus súplicos tornam-se gritos e a câmara corta de um desconfortável plano da sofredora Bergman para o céu em que pássaros voam, enquanto Bergman suplica e declara a glória de Deus. Se Bergman e Karin foram uma única e estranha presença em todo o filme, aqui elas tornam-se coletivas, simbólicas, metafóricas. A busca de liberdade filmada entre a fúria suprema da Natureza é tornada batalha espiritual e a estrela tantas vezes julgada pelo realizador que a olha, mesmo assim, com visível encanto, torna-se figura sofredora e suplicante. Mas quem suplica nestes momentos finais? Karin? Ingrid Bergman? Roberto Rossellini? A estrela de Holywood? O mais celebrado autor neorrealista? O neorrealismo em si, vendo-se obsoleto e esgotado? O melodrama superficial? Os amantes pecaminosos e em busca de perdão? O cinema em si? Quem sabe. Cada espetador, talvez. Mas na absoluta incerteza reina o génio destes momentos, chocantes e violentos queimam o cinema de Rossellini e abrem alas para uma nova fase do seu desenvolvimento e do resto do cinema mundial.

 Os seus seguintes filmes explorariam mais firme e controladamente esta passagem do neorrealismo a algo novo, algo moderno e fértil de possibilidades. O seu catolicismo será mais comedido e menos fulgurantemente agressivo que aqui. E Bergman será mais humana e menos incandescente presença superior. E talvez por tudo isso, este seja, simultaneamente, a sua mais indisciplinada e imperfeita criação assim como a sua mais gloriosa e impactante. Como um vulcão cinemático que rebenta com um universo de novas possibilidades, Stromboli rompeu o dogma tanto de Hollywood como da vanguarda neorrealista, rompeu o cinema de maneira simples mas emocionalmente esmagadora. No final deste filme, por entre o espiritualismo e religiosidade cortante, temos algo de majestoso, o cinema em crescimento, em inovação, em nascimento e morte simultânea.


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