segunda-feira, 14 de setembro de 2015

TUI NA (2014) de Ye Lou



 O novo filme de Ye Lou debruça-se sobre uma parte da sociedade chinesa poucas vezes vislumbrada no seu cinema nacional, observando a vida num centro de massagens em que todos os massagistas e até os donos são invisuais. Apesar de por vezes cair no moralismo e em alguns clichés de histórias inspiradoras, o filme preocupa-se mais com um retrato de um grupo de personagens do que com qualquer tipo de crítica social abrasiva ou qualquer tipo de narrativa bem delineada.

 Acompanhamos um grupo mais ou menos vasto de personagens, sendo que, devido à estruturação do início e final do filme, poderíamos designar o jovem Xiao Ma (Hiang Shuan) como o protagonista do filme. O filme, aliás, começa com uma narração acompanhada por imagens quase impressionistas sobre o modo como o jovem perdeu a visão num acidente que o deixou órfão de mãe. Pouco depois disto e de uma tentativa de suicídio, vemos o protagonista frequentar uma escola para cegos onde aprende a fazer massagens e depressa está a trabalhar no centro de massagens no centro do filme.

 Aí, a audiência e o protagonista, encontram o resto do principal elenco do filme, incluindo os donos do centro, o acanhado e muitas vezes silencioso Zhang Zongqi (Wang Zhihua) e o exuberante e carismático Sha Fuming (Qin Hao). Fuming acaba por tentar ganhar os afetos de Du Hong (Mei Ting), uma massagista que detesta os constantes elogios que lhe são concedidos pela sua beleza, especialmente quando vêm de Fuming a quem a massagista acusa de se apaixonar pelo conceito de beleza, que na verdade ele não consegue percecionar. Também temos Dr. Wang (Guo Xiaodong) e a sua namorada, Kong (Zhang Lei), que ainda não perdeu a visão por completo e que captura a atenção do jovem Xiao Ma. O protagonista acaba por virar as suas atenções para uma prostituta que visita como cliente, Mann (Wang Lu), originando uma das mais estranhas relações no filme tão íntima como desconfortável.

 O filme é mais uma Anatomia de Grey que um filme inspirador de prestígio, fugindo a qualquer retrato santificado e forçosamente inocente das suas personagens cegas e abordando-as com uma intimidade quase confrontacional. Apesar de quase dignas de telenovela, as interações entre as personagens são refrescantes no modo como o realizador não desvia o olhar da sua carnalidade, fisicalidade e feiura. Este não é um filme de personagens agradáveis e afáveis, mas sim um melodrama com intenções realistas e um elenco de louvar que incorpora em si uma mistura de atores profissionais e amadores, sendo que Hiang Shuan e Qin Hao são de especial atenção, criando retratos de palpável desespero e necessidade no centro do filme.

 Esta faceta de melodrama abrasivo é tão peculiar e interessante como é muitas vezes simplista e cliché, sendo que o seu tratamento das personagens femininas é particularmente desconfortável. Louvo o filme pelas suas representações implacáveis de sistemática agressividade e até violência sexual, mas pergunto-me se o texto do filme não se perderá por entre as intrigas que cria e não acaba por cair no mesmo tipo de mentalidade nociva que parece caracterizar muitos dos comportamentos das suas personagens. Para além disso, muito do diálogo parece-me desastrado e forçado, o que, admito, poderá ser um problema de tradução, mas, não sabendo mandarim, é com essa impressão que fico.

  Mas se o texto é muitas vezes vítima de clichés, intenções dúbias e uma crónica falta de sofisticação, a forma do filme é algo completamente diferente. Usando a sua usual estética de câmara ao ombro quase intrusiva como meio de criar uma intimidade naturalista, Ye Lou aqui encontra um perfeito meio para brincar com a perceção subjetiva das suas personagens, criando expressivos ambientes sonoros e momentos de um caos visual impenetrável. A luz muitas vezes assume uma natureza completamente anti naturalista, sendo usada como modo de expressar tanto as emoções como a condição das personagens, especialmente no caso do protagonista acima referido. Os momentos de sexo são particularmente formidáveis, permitindo à câmara capturar algo entre o abstrato e o tátil, intimidade física como poucas vezes visualizada no cinema contemporâneo. O estilo, apesar de louvável na sua complexidade, parece, por vezes, arbitrário ou um pouco confuso nas suas intenções. Mais do que criar empatia ou relacionar a audiência com a perspetiva das personagens, a exuberância estilística destes momentos parece cair mais no alienamento dessa mesma audiência face ao drama humano.

 Também pegando nessas intenções dúbias e confusão de perceções e estilos, a presença de uma voz que narra o filme pode ser interpretada de dois modos, para mim. Primeiro poderá parecer uma escolha interessante que possibilita um visionamento do filme por uma audiência invisual, explicando tudo e dando imensa informação mesmo em relação ao que está a acontecer no ecrã. Por outro lado, poderá ser um modo de não perder as raízes literárias do filme, simplesmente adaptando o texto em narração. Ambas as opções são problemáticas, sendo que a presença de narração em filme é algo que tenho uma predisposição para detestar a não ser quando usada com algum propósito, de tal modo que não consigo pensar na narração que envolve todo o filme com qualquer soslaio de afeição.

 O filme é muito forçado na sua abordagem, deselegante e desastrado, mas, em certos momentos, há algo de magnificamente belo e íntimo que emerge da obra. Uma sequência durante a chuva é particularmente magnífica, transmitindo uma serenidade imensa, ao mesmo  tempo que vai passando por várias personagens, que são vistas por entre vidros cobertos pela água, e ouvidas por entre o som opressivo mas magnificamente relaxante da chuva. A intimidade e beleza de tais momentos faz esquecer alguns dos problemas do filme, cujo final é tão abrupto e dependente da narração como seria de esperar, contendo, no entanto, um momento tão problemático como sincero e belo, num sorriso do protagonista, acompanhado por uma figura feminina que ele parece ver por entre a escuridão da sua visão sobre a vida. Uma das obras menores do realizador, mas uma em que a sua visão, apesar de confusa, continua a transparecer em momentos de fugaz beleza e intimidade.

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