sábado, 26 de setembro de 2015

VIAGGIO IN ITALIA (1954) de Roberto Rossellini



 Como falar de Viaggio in Italia? Sobre o que é Viaggio in Italia, em primeiro lugar? A uma superficial análise, o filme é um retrato de um casal em moribunda desunião, ambos numa viagem, não só, por Itália, nomeadamente Nápoles, mas também numa viagem cujo destino final parece ser a conclusão do seu matrimónio. Mas, devido ao olhar irreparavelmente ligado ao realismo, que Rossellini confere a variados momentos no filme, a obra parece estar mais preocupada com Nápoles em si. Um filme sobre uma terra e uma cidade mais do que sobre um casal. Mas, para além da materialidade da terra, há algo de espiritual no filme, algo que parece existir em todos os filmes de Rossellini, e que supera a visão imediata e limitada do neorrealismo italiano. Penso que, depois de reflexão, mais do que tudo o resto, o filme se revela como um filme sobre cinema. Como arte, como imagem, como movimento, como tempo, como vida. Devido a isso também afirmaria que, apesar de uma receção bastante fria quando estreou e de muitas opiniões contemporâneas ainda o apontarem como um filme menor de Rossellini, este é um dos mais fulcrais e importantes filmes da História do cinema. Se do final de Stromboli nasceu, de forma violenta, um novo cinema, em Viaggio in Italia, esse cinema já cresceu, maturou, aprendeu a andar e olhar, e vislumbra o passado, vira-lhe as costas e avança para o seu futuro.

 Como, disse, a um inicial e superficial olhar, o filme trata de uma crise matrimonial entre um casal inglês a viajar pela Itália contemporânea de Rossellini, Alex e Katherine Joyce interpretados por George Sanders e Ingrid Bergman. O filme inicia-se, aliás, de modo dissimuladamente simples. Vemos uma estrada enquanto por ela avançamos, obviamente por meio de um automóvel, observamos uma paisagem em movimento vista da janela de um carro e rapidamente cortamos para o interior da viatura. Estamos num Bentley a viajar por Nápoles, como o diálogo expositivo nos informa, e olhando para o casal, vestido em tweed inglês e um casaco que rasga a imagem com o seu padrão de leopardo, logo nos apercebemos da separação entre os protagonistas e o mundo que os rodeia. Eles vivem insularmente no seu melodrama matrimonial, cujo início nos é negado pela estrutura do filme, e existem numa realidade suaves contrastes, e harmoniosos movimentos e composições cinematográficas, enquanto, à sua volta, a câmara, seguindo uma gramática visual mais próxima do neorrealismo que do cinema romântico de Hollywood, observa a vida dos camponeses italianos que também se movimentam pela estrada.

 Logo aqui o filme se parece começar a mostrar como um estudo sobre si mesmo, cinema sobre cinema. O cinema neorrealista da Itália pós-guerra em desarmonia com um cinema classicista de herança americana, que ganhava crescente popularidade numa nação em reconstrução. Mas, Rossellini não se limita a esta simples dicotomia, acrescentando outros cinemas ao seu jogo de contrastes, como um cinema de melodrama aristocrático que lembra os filmes requintados de uma Itália fascista do passado, assim como, em momentos específicos, parece cair numa abstração de movimento e som inéditos na sua filmografia e de uma beleza que transcende a simples captura de uma realidade material em filme.

 Para além de um movimento quase fatalista do matrimónio em colapso, há pouca estruturação classicamente dramática ou narrativa no desenvolver do filme, sendo que a sua estruturação se revolve muito mais à volta da repetição. A repetição de um tipo de sequência singular a este filme, em que primeiro acompanhamos Katherine dentro do seu Bentley, a partir do seu olhar, observamos a Itália contemporânea, Aqui observamos toda uma vida em momentos fugazes, mulheres grávidas e procissões fúnebres, religião e política, o trabalho dos camponeses e o alarido urbano. De seguida temos momentos em que vemos Bergman a observar algo do passado, algo cujo tempo preservou apesar da sua implacável passagem. Primeiro temos uma galeria de esculturas clássicas, depois as ruínas de Cumae, em terceiro lugar temos o Vesúvio e sua dormente fúria natural e por último uma visita às catacumbas, templos de morte e em que o tempo é uma presença esmagadora na sua ameaça. Há uma outra visita deste género, mas a sua estrutura é diferente e seu impacto demasiado singular para juntar a estas estrutura de repetição.

  Das quatro sequências, a primeira é a que me deixou maior impacto, se bem que talvez não seja a mais temática e formalmente relevante. A câmara de Rossellini quase entra num transe de gloriosos movimentos em volta das esculturas. Os movimentos congelados no tempo pelas peças ganham momentânea vida na sensualidade do luxuriante trabalho de câmara e luz. O olhar de Bergman também expressa um movimento, o do observador que tal como nós observa o milagre do cinema nas mãos de Rossellini. A música de Renzo Rossellini, o irmão do realizador, catapulta a sequência para algo que chega ao lírico, ao espiritual Nos olhos das esculturas parece emergir uma vitalidade quase sobrenatural, o que contrasta com a seca voz do guia que acompanha Katherine pelo seu passeio. A passagem do tempo congelada num momento de êxtase aqui tornado espetáculo luxuriante pelo artista Rossellini.

 Há algo intrinsecamente ligado à morte e à mortalidade no modo como Rossellini filma estes momentos, mas também, paradoxalmente, há quase uma tentativa de tornar essa morte em vida, a partir do cinema. Os movimentos no primeiro passeio, a voz off no segundo que torna as ruínas num lugar de espiritualismo místico, criando uma vida invisível nas suas superfícies, o modo como a interação humana com o vulcão resulta em movimento, como se da rocha emergisse uma presença viva, e o mesmo acontece com os corpos nas catacumbas, tornados gritantes ameaças sob o olhar amedrontado de Bergman. Mas não são só estas visitas que existem no paradoxo da vida e morte em simultâneo. Os amigos que o casal encontra no início do filme parecem emergir de uma era passada, sombras de uma aristocracia que já não tem lugar na Itália contemporânea. O fantasma da guerra assombra toda a realidade, por vezes sendo mencionada em breves momentos de diálogo. O próprio tio de Alex, que viveu numa casa em Nápoles que o casal tenta vender, é um fantasma trazido ao de cima pelo diálogo e pelos objetos que deixou para trás. O seu nome, Homer, quase lembra Homero de novo trazendo a lembrança do passado da História e sua materialidade e imaterialidade ao filme. Mas mais do que História, vida ou morte, estas indagações, para mim, reduzem.se ao tempo, tempo passado tornado presente pelo cinema, estaticidade tornada movimento.

  Há outro passeio no filme, este feito pelo casal a Pompeia, onde ambos observam as escavações arqueológicas que aí decorrem e veem a descoberta de dois corpos, preservados no momento da sua morte pela fúria vulcânica que sobre eles se abateu. Um casal, um homem e uma mulher. Aqui Bergman, pela primeira vez, parece completamente avassalada pelo momento, pelo horror, pela carga simbólica e espiritual do momento, quase que recordando Karin em Stromboli e a sua reação à pesca do atum. Mas a que reage Bergman, Katherine, o próprio filme? À morte? Ao tempo? Durante todo o filme, Rossellini observa o passado em objetos congelados na passagem do tempo, em cadáveres e edifícios, aqui o presente é confrontado com algo violento, com a preservação do momento exato em que dois humanos perderam a vida e a sua mortalidade é exposta em relevo assustador. A mortalidade da personagem, da atriz e do filme em si. Passados quase 62 nos desde as filmagens destas imagens, o próprio filme se tornou documento da morte, documento do tempo aqui congelado, tendo os seus atores há muito falecido, assim como o seu realizador e a própria terra onde foi filmado já não é a mesma. O que é o filme senão uma série de imagens estáticas que em sucessão criam movimento e que nesse movimento contêm o tempo do passado trazido, como que congelado, ao presente do espetador? Depois do filme olhar esse passado de uma plataforma superior, como nós olhamos o passado do nosso presente, de repente há uma confrontação com a sua própria condição no tempo. Rossellini filma aqui a morte, mas não é só a morte humana, mas também a morte do cinema. O golpe desferido em Stromboli, de onde um novo cinema nasceu, um cinema moderno e quase modernista, aqui acaba por matar o cinema passado, enquanto o novo cinema que dele nasceu o observa aterrorizado com o que vê, mas avançando implacavelmente no tempo.
 Isto nunca se torna mais explícito que nos momentos finais do filme, em que todas as preocupações do filme parecem culminar numa fulgurante conclusão. Mas antes de falar desse final e terminar também este raciocínio há que mencionar um pouco mais sobre o filme, nomeadamente sobre a sua estrutura e seus atores.

 Em termos de estrutura narrativa o filme imensamente vago e errático sem grande direção percetível, cheio de momentos mortos e um desenvolvimento da narrativa matrimonial que deixa muito a desejar se julgarmos o filme pelos mesmos critérios que aplicaríamos a um drama de Joseph L. Mankiewicz. Há uma porção do filme simplesmente focada na procura por uma garrafa de água mineral, algo estranhamente inconsequente e superficialmente desnecessário, como se ao atribuir um tempo tão vasto a pormenores sem relevância, Rossellini estivesse a rasgar o tecido da narrativa principal, ou pressuposta como principal. Tal estrutura, ou aparente falta da mesma, conjugada com um método errático, dependente de impulsos do momento e improvisações, deixou ambos os atores, estrelas de Hollywood, perdidos nas mãos do realizador. Bergman, aqui já acostumada aos devaneios do seu então marido, julgou este e os seus restantes filmes como nobres fracassos e George Sanders várias vezes proclamou quão estranho e sem propósito o filme e o seu processo teriam sido. Essa confusão dos atores perdidos é aproveitada por Rossellini do mesmo modo que em Stromboli, a estranheza de Bergman é fulcral para o filme. Aqui ambos estão envoltos num melodrama matrimonial que é confrontado com outro cinema, ambos são artefactos clássicos em completo ataque das ideias do autor em evolução, e a sua condição de atores perdidos é exacerbada pelo modo como o realizador os filma. Para Rossellini os atores eram inseparáveis das personagens, sendo que o que vemos no filme está mais próximo de uma narrativa sobre Sanders e Bergman do que sobre Alex e Katherine. Em ambos os casos, por exemplo, verificam-se crises matrimoniais, Bergman e Rossellini e Sanders com a sua então esposa Zsa Zsa Gabor, e tanto nos atores como nas personagens há algo de confrontacional e agressivo no modo como ambos os pares viajam por Itália, num mundo estranho e a eles alienante, e onde são confrontados, de certo modo, com a brevidade inevitável da sua existência e relevância.

 O filme não é de fácil consumo e tem provocado insatisfação, como podemos verificar pelos atores, desde a sua construção, mas, para mim, é das mais gloriosas obras desta arte de que aqui falo. E no seu final, como seria de esperar num filme deste autor, todas estes fios de pensamento se juntam num triunfo cinemático em forma de conclusão. O final é, na verdade, uma multiplicidade de conclusões, sendo que, a mais visível é, certamente, a da narrativa matrimonial, o aspeto mais classicista do filme. O casal, depois da crise despoletada pelas esculturas em Pompeia, encontra-se prestes a aceitar a sua separação quando são forçados a parar o carro, num momento que reflete o próprio início do filme. Aqui são parados, de novo, pela pressuposta realidade italiana, uma procissão religiosa que enche a estrada. Desta massa de gente, deste evento religioso, um milagre narrativo parece ocorrer e, abruptamente, ao casal é concedido um final de Hollywood. A multidão e seu fervor espiritual parecem produzir o milagre do final feliz, do final populista. Mas, em contraste com este fim, Rossellini não termina o filme nos seus dois aparentes protagonistas. Pelo contrário, a câmara afasta-se dos dois ingleses, de costas para nós, e acaba por filmar o avançar da multidão. O movimento da população, observado não com a tentativa de realismo do neorrealismo nem com o polido brilho do melodrama, mas com um lirismo e simplicidade que convertem as pessoas em puro e rarefeito movimento filmado, congelado no tempo pela câmara em si. As estrelas de Hollywood tiveram o seu final de Hollywood, mas o cinema de Rossellini vira-lhes as costas e avança, impiedoso, imparável para a frente, para um futuro. O cinema do autor celebrado pelo neorrealismo afasta-se do neorrealismo, mantendo algo da sua observação, toca em Hollywood e nos clássicos e deles retira algo de imaterial, algo de poético e transcendentemente romântico, depois de formado algo novo, a morte tem de existir, a morte do velho para o nascimento do novo. A morte está no passado, mas a carcaça persiste como os corpos de Pompeia, este novo cinema olha para o passado, aterrorizado foge, o realismo não é a resposta, mas no romantismo idealizado também não está. Com o passado, o clássico, o obsoleto pelas costas, o cinema avança para o futuro, para o que será a Nouvelle Vague e o cinema de Antonioni, para o que é o cinema moderno, e esse avanço está aqui congelado no tempo, o seu movimento e existência preservados na obra genial e avassaladora que é Viaggio in Italia do mestre Roberto Rossellini.


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