sábado, 31 de outubro de 2015

Os 10 Filmes mais antecipados do LEFFEST ‘15


 Os bilhetes para o Lisbon & Estoril Film Festival são hoje colocados à venda e como tal decidi fazer um top 10 pessoal dos filmes que mais antecipo para esta edição do festival, que tem, nos últimos anos, sido um evento cinematográfico indispensável para a minha vida de cinéfilo.


10. ROOM de Lenny Abrahamson


 Este filme tem sido aclamado desde que passou em Toronto e ganhou o Prémio da Audiência, sendo que muitos dizem que este é já um dos frontrunners em algumas das corridas ao Óscar, nomeadamente Melhor Filme e Melhor Atriz. Em relação às possibilidades de galardões, ainda tenho as minhas dúvidas, mas o meu interesse foi, sem dúvida, captado pela reação extremamente positiva que se tem manifestado na maioria dos espetadores deste filme. Apenas temo uma queda no sentimentalismo forçado para o qual o trailer parece insinuar, mas, mesmo que tudo o resto seja mau, penso que posso contar com uma fantástica interpretação de Brie Larson, uma atriz que me tem vindo a surpreender ao longo dos últimos anos e que ainda nunca me desiludiu.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

NO HOME MOVIE (2015) de Chantal Akerman

 Tive a recente oportunidade de ver, nesta edição do DocLisboa, No Home Movie, o derradeiro filme da grande Chantal Akerman. Um retrato de estranha intimidade em que tanto é retratado um sujeito, aqui a mãe da realizadora, como é registado algo muito mais efémero e surpreendente, a implacável passagem do tempo. Para quem ainda desejar ver o filme, ele volta a ser exibido dia 1 de Novembro.


 É impossível escrever, discutir ou pensar sobre No Home Movie sem ter em conta que esta obra é o último filme da cineasta experimental belga Chantal Akerman. A autora tem-se mostrado ao longo das últimas décadas como uma das mais singulares vozes no panorama do cinema contemporâneo e neste seu derradeiro filme, longe de ser um testamento ou um culminar do trabalho da sua vida, é um seguimento lógico e luxuriantemente íntimo da oeuvre que a artista tinha vindo a desenvolver.
 Talvez seja necessária alguma contextualização para melhor se perceber o impacto do filme. A obra final a que chamamos No Home Movie é construída a partir de filmagens soltas que a realizadora tinha vindo a acumular ao longo dos anos. Com a morte da sua mãe, Akerman finalmente editou as imensas horas de material que tinha numa espécie de homenagem à sua mãe, mas uma homenagem que foge a qualquer noção de classicismo elegíaco a que estamos acostumados, não fosse este um filme de Chantal Akerman.

 Ao longo de duas horas vamos observando uma coleção de momentos perfeitamente mundanos, a maioria em volta da mãe da realizadora. A partir de conversas entre mãe e filha, especialmente as conversas que decorrem durante as refeições, vamo-nos informando sobre o passado da família, o modo como Natalia Akerman fugiu da Polónia para a Bélgica, como a família viveu durante o Holocausto, tendo Natalia sido prisioneira em Auschwitz, o modo como o pai de Chantal renunciou a práticas ortodoxas, etc. Há algo de perverso, mas revelador, no modo como à medida que vamos observando o definhar de Natalia ao longo dos anos, vamos apercebendo-nos cada vez mais da sua história, quando começamos a conseguir perceber este sujeito do filme, ele começa a se desvanecer. O tempo que passa é apenas percecionado por fugazes porções de conversas mal ouvidas e pelo progressivo estado de fragilização da mãe da realizadora. O próprio apartamento na Bélgica é explorado em modo semelhante, a “home” do título que com a morte de Natalia deixa de ser um lar, e passa a ser mais um lugar vazio.

 O tempo e o seu passar, talvez até mais que Natalia Akerman, é o grande sujeito do filme, o modo como a vida humana é passageira e efémera na passagem do tempo. O filme começa logo com uma imagem que força a audiência a refletir sobre o simples passar dos minutos. Uma árvore no meio do deserto é violentamente fustigada pelo vento é a imagem que inicia o filme e que dura vários minutos como que desafiando a sua audiência a sair da sala de cinema, ou melhor suplicando aos seus espetadores que tenham a generosidade de se deixarem levar pelo filme e suas ideias, sua passagem temporal pelas suas vidas. E é a partir dessa subtil e quase hipnotizante passagem do tempo mesclada com a mundanidade da observação de Akerman sobre sua mãe que aparece este filme, um dos mais avassaladoramente íntimos retratos numa carreira grandemente dedicada a criar retratos cinematográficos de figuras femininas fictícias e reais.

 Ao longo de toda a obra, Akerman vai cortando para momentos que são quase abstratos, contrastando fortemente com a observação simples e direta das porções dentro de apartamentos. Falo da sua recorrência às imagens do deserto israelita onde se inclui a primeira imagem do filme. Quando, numa conversa por Skype com a mãe, Chantal afirma que hoje em dia já não existe distância, há algo que parece ser impossivelmente falso nesta reflexão cinemática posterior a essa conversa. Há uma distância continental entre mãe e filha que parece explodir em fisicalidade descontextualizada nas cenas do deserto, mas também há a distância da autora da história da sua família e mesmo a distância da autora belga. No final do filme, o espaço habitado pela mãe, o apartamento, a Bélgica, parecem morrer, ficam vazios e deixam de estar próximos de Akerman. A distância e o tempo como barreiras e como inescapáveis aspetos da existência são conceitos que todo o filme permeiam, influenciando a leitura de uma audiência e criando, mesmo nos momentos mais joviais e relaxados, uma estranha melancolia.

Tenho, no entanto, de admitir que me é difícil olhar este filme sem melancolia, pelo que a minha visão da obra final possa estar contaminada de modo invariável. Para um fã da realizadora que há pouco tempo a descobriu e estava desejoso de ver o seu mais recente filme no DocLisboa, a sua morte foi uma tragédia imensa e impossível de distanciar por completo da realidade da sua derradeira obra. Como último filme, mesmo que não planeado e não caindo em quaisquer noções de filme testamento, No Home Movie é uma das joias na filmografia de uma das mais singulares e importantes vozes criativas da história do cinema. Pelo menos é-o para mim e penso que para as audiências que estejam disponíveis e tenham generosidade suficiente para se deixarem hipnotizar pelos ritmos precisos e vagarosos e pelo olhar calmo e refletivo de Akerman nesta sua final obra.


quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Hit Me With Your Best Shot: REPULSION (1965)

 Este post foi escrito para a série Hit Me With Your Best Shot do blogue The Film Experience de Nathaniel Rogers, sendo que é aqui apresentado em inglês, ao invés do que é usual neste blogue. 



 This week’s episode of Hit Me With Your Best Shot is almost the antithesis of last week’s, or at least it was to me as a viewing experience. While A Room with a View is an endless source of pleasure and a film I’m always eager to revisit, Roman Polanski’s Repulsion is a bottomless pit of discomfort and a film that, since I first watched it, I’ve never had any desire to suffer through again.

 This is not to say that Repulsion is a bad film, far from it. While the film is rather disturbing in its exploration of female sexuality turned into violent psychosis, perhaps showing some rather ugly aspects of Polanski’s view of women, as a horror film it’s quite riveting and a veritable miracle of ingenious technique. The sound is especially miraculous but, alas, we’re here to discuss the film’s visuals, which are quite impressive in their own right.

 The cinematography is an amazing mix of British realism with a very continental feeling surrealism. The black and white is often stark and almost abrasive in its cutting contrast, rendering the protagonist into a sort of ghostly vision of feminine innocence. The greatest visual accomplishment of the film, though, isn't so much its beautiful yet creepy cinematography, but its masterful set design. The apartment where most of the film's narrative occurs is practically a second protagonist, going from realistic banality to a nightmarish vision of hell with an extraordinary ease. From arms jutting out through clay walls to a bathroom that seems to have grown to twice its original size in the middle of a sequence, Repulsion’s apartment is comparable to The Shining’s hotel when it comes to startlingly effective but deceptively normal looking horror film sets.


 Repulsion is very often discussed alongside Rosemary’s Baby and The Tenant, as a sort of trilogy of the terror of living in apartments, which I think is rather misleading. While I can understand a great similarity between this film and The Tenant, I think that when comparing it to Rosemary’s Baby a key difference comes to the forefront. When we’re watching Mia Farrow descending into a spiral of paranoia and satanic conspiracies there’s a great closeness between the audience and the protagonist. In a way, we’re experiencing the terror through her eyes and it’s because of her responses and reactions that we’re engulfed in the film’s suffocating atmosphere. In Repulsion, in contrast, Polanski seems almost reluctant of getting too close to his protagonist, Carol played by a stunningly beautiful Catherine Deneuve.

 While the director himself insists that the entirety of the film is a subjective experience seen through Carol’s perspective, I strongly disagree that this is what the film, as a finished work, ends up accomplishing. When I watch Repulsion I never get the feeling that I’m experiencing Carol’s psychic meltdown, but rather that I’m watching it from a distance, almost in a voyeuristic manner. This is mostly a byproduct of the opacity with which Polanski and Deneuve render the character, never trying to explain, empathize, or simply attempt to comprehend the troubled psyche around which the entire edifice of the film is built.

 For my best shot I chose a shot where the presence of a camera watching Carol from a distance is unquestionably present:

Best Shot

 This shot appears quite early in the film, before we’ve even glimpsed the nightmarish apartment where loneliness turns into terror. In it, Carol simply walks through London almost floating through the screen with her ethereal beauty that is augmented by the contrasting black and white cinematography, almost turning her into a luminous and inhuman spirit.

  Catherine Deneuve’s beauty and her  icy persona are essential to the success of Repulsion. The actress has been often considered an Ice Queen of the screens, her beauty rather than calling for our touch or devotion seems to position the audience at a distance from its radiance, Deneuve is a goddess of the screen and as a divinity she must be adored and venerated from afar, but never sullied by our unworthy touch. All of this is quite odd of me to say when Repulsion is one of the actress’s most vulnerable performances. Carol possesses Deneuve’s chilly and beautiful presence, but in this character it’s not a goddess we observe but a cold porcelain doll, with cracks subtly appearing and threatening to shatter the entirety of her existence at any given moment.

 Polanski’s gaze is distant, voyeuristic and almost perverse in its unblinking intensity, but it’s the tempest of beauty, innocence and coldness that is Deneuve as Carol that really turns the film into the strange and brilliantly discomforting experience that it is in the end.



 And that’s why this is my best shot. Because Deneuve as rarely been more beautiful than when floating through London’s streets, seeming like she’s in a fashion editorial but without the confidence or pose of a model. Because the cinematography completely turns her into something distant and impenetrable, a spirit or an idea rather than a human, And because, despite all the technical brilliance of the film, we can see the shadow of the camera, completely making us aware of the act of distantly watching a person. To me, Repulsion isn’t about experiencing the horror of loneliness and possible mental illness, but rather about distantly watching it in all its incomprehensible spectacle and terror.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

BRIDE OF FRANKENSTEIN (1935) de James Whale

Elsa Lancaster faria hoje 113 anos se ainda fosse viva. Em jubilante celebração do seu legado e em continuação do texto que ontem publiquei sobre Frankesntein, aqui está a minha reflexão sobre a sua sequela, A Noiva de Frankenstein de James Whale, com Boris Karloff a regressar ao papel do icónico monstro e Lancaster como a sua tenebrosa companheira.


 Quatro anos depois do sucesso de Frankenstein, a Universal conseguiu, depois de muita insistência, convencer James Whale a realizar uma sequela para o seu maior sucesso. O filme que daí resultou é talvez não tão importante na história do cinema como Frankenstein, mas é um dos mais estranhos genialmente excêntricos produtos do sistema de estúdios da Hollywood durante a sua era dourada. Com Carl Laemmle Jr. maioritariamente ausente das filmagens do filme, Whale teve completo controlo da produção e tornou a sua Noiva de Frankenstein na que é talvez a primeira comédia de terror na história do cinema, muito antes de qualquer Young Frakenstein ou Scary Movie.

 Logo no seu início o filme revela-se como uma obra de incomum estranheza para a Hollywood dos anos 30. Num gesto quase pós-moderno, Whale inicia o seu filme não com os protagonistas do filme anterior, mas com Mary Shelley, a autora do romance que deu origem à figura de Frankenstein e sua criação, acompanhada pelo seu marido e por Lord Byron. Shelley é aqui encarnada por Elsa Lancaster que também dá vida, no final do filme, à noiva do título, e é uma presença de charme e delicadeza afetada, mas nunca tão afetada como Gavin Gordon como Lord Byron, num registo tão exagerado que, no contexto da obra em que se insere, parece sugerir algo mais próximo do camp intencional que do maniento registo favorecido pelos estúdios. Byron relembra o primeiro filme, contextualizando a audiência com imagens da obra anterior, e convence Mary a continuar o seu conto, o que ela faz, dando início ao enredo principal de A Noiva de Frankenstein.

 O filme, depois desse bizarro prólogo, começa imediatamente após o filme anterior acabar, com o moinho a arder e tanto Frankenstein como o seu monstro a serem considerados mortos pela população enfurecida. Ambos estão vivos, descobrimos rapidamente e, com a chegada do sinistro doutor Pretorius (Ernest Thesiger), o mentor de Frankesntein, estão os dados lançados para a trama que ocupa esta sequela. Pretorius também se tem aventurado pela ciência de criar vida, se bem que as suas experiências estão mais perto da magia negra que de qualquer noção de ciência, mesmo pelos standards de um filme deste género. Frankenstein é eventualmente confrontado pelo seu mentor loucamente ambicioso e pela violenta solidão do monstro e forçado a criar uma companheira feminina para a sua criação, sendo que o filme termina com o monstro a ser rejeitado pela sua noiva e a, num ato de comovente desespero existencial, decidir acabar com a vida inatural de si mesmo e da sua companheira.

 O texto engendrado por uma enorme equipa de argumentistas é uma confusão estonteante de ideias, ambições e convencionalismos que nas mãos de Whale se tornam em algo vagamente coerente. A estrutura é, por exemplo, um completo desastre de desleixada segmentação, tornando o filme numa série de episódios rigidamente sequenciados e aborrecidamente edificados. No entanto, nesses episódios Whale consegue encontrar algo hipnotizante no seu génio. Se o primeiro filme é uma tragédia em que o preconceito de uma população leva uma inocente criatura à sua destruição, o segundo é uma verdadeira sátira dessa mesma sociedade de preconceitos, mesclada com um humor que é tão excessivo como subtilmente subversivo e uma coleção de falas icónicas que contêm em si uma surpreendente profundidade emocional e ideológica quando consideramos que provêm do equivalente à miríade de sequelas que hoje em dia infetam os cinemas com a sua mediocridade sedenta de lucro.

 Esse aspeto humorístico que quase sugere a sátira e mesmo o camp é grande responsabilidade da coleção de atores que Whale aqui reúne. Una O’Connor pega no seu usual registo de estridente humor e eleva-o a um nível que ameaça ser insuportável passados alguns minutos. Valerie Hobson, que aqui substitui Mae Clark no papel de Elizabeth a noiva do doutor, é uma joia de maneirismos sufocantes, sendo que quase parece estar a parodiar o tipo de rosa inglesa comum nos filmes da época. Colin Clive volta como o doutor Frankesntein e aqui a sombra de humanidade que se insinuava por entre a loucura do filme predecessor deste, desaparece na sua maioria, sendo o doutor uma amedrontada figura interpretada com toda a rigidez dramática que Clive consegue conjurar. Mas é Thesiger que tipifica na sua glória total o tipo de atuação exagerada brilhantemente usada por Whale neste filme. Pretorius é uma figura de uma teatralidade absoluta, uma presença tão floreada e exagerada pose, gesto e fala que qualquer noção de pretensão a realismo com ele se some. A humanidade do cientista louco extinguiu-se e aqui aparece no seu exponencial de máxima folia, gloriosa na sua espetacularidade.

 Este exagero que chega ao ridículo serve especialmente para estabelecer um contraste bizarro entre o mundo dos humanos “naturais” e os dois monstros artificialmente criados. Karloff, na derradeira subversão de quaisquer noções convencionais de sociedade e humanidade, é aqui ainda mais dolorosamente humano que em Frankenstein. Com um repertório alargado de palavras, o monstro tem aqui mais facilidade em se expressar e os resultados são de uma absoluta magia cinematográfica. Com os seus últimos momentos, Karloff consegue injetar uma pulsante e sofredora dor no filme, como que o monstro cuspindo sobre uma sociedade de suposta normalidade que rejeita e impossibilita a sua pacífica existência. O monstro e sua noiva podem ser erros, mas são erros dos humanos que na sua hubris os criaram e, talvez por isso, são imensamente mais humanos e cheios de vitalidade que os seus pais.

 Mas não é o monstro interpretado por Boris Karloff que traz a esta sequela a sua herança como um dos mais icónicos filmes de terror da Hollywood clássica, mas sim a sua noiva. Elsa Lancaster, ao invés de copiar a inocência bruta de Karloff, expõe a noiva como uma criatura de aterradora rigidez. O seu olhar e movimentos bruscos assemelham-na a um inseto, os seus gritos parecem um cisne enraivecido e a sua aparência a de uma múmia eletrificada e vestida numa bata tornada vestimenta nupcial. Da sátira para a tragédia existencial e dessa tragédia para o terror do desconhecido. Whale torna a noiva num emblema de todo o edifício do filme, sendo a sua floreada criação no meio de uma tempestade o clímax de toda a obra.

 Com uma panóplia de ideias e tonalidades muito mais numerosas e loucamente ambiciosas que o primeiro filme, não será, talvez de surpreender que Whale se tenha contido noutras áreas do filme, Apesar de um impressionante design, especialmente o visual ensandecido da noiva, o filme revela muito menos da geometrização expressionista que tão caracterizou o filme de 1931, e isto é especialmente notório no que diz respeito às composições. Também os movimentos da sua câmara parecem ter perdido alguma elegância, estando o seu olhar mais focado na captura direta e simples do espetáculo de excentricidades que na elegante mise-en-scène de outrora. Tenho de salientar que, no entanto, isto não afeta de modo negativo a experiência do filme, retirando alguma da sofisticação e elegância formal, apenas exacerba a geral estranheza e possibilita uma maior variedade de registos díspares.

 Tal como aconteceu com Frankentsein, é imensamente fácil encontrar o cunho pessoal de James Whale nesta obra. Ao contrário da negrura, tragédia e sociedade de preconceitos tão marcantes no primeiro filme, neste filme, Whale criou o que é talvez um dos primeiros filmes mainstream a exporem uma sensibilidade irrefutavelmente homossexual. Muitos, aliás, defendem A Noiva de Frankenstein como uma das primeiras obras de cinema camp. O modo como o monstro e o eremita cego com quem vive numa parte do filme, relembra um casal proibido pelas normas sociais, e a criação da noiva tem uma perversidade que provém grandemente da inaturalidade latente de dois homens a conceberem uma nova vida. A própria figura da noiva e sua rejeição violenta do seu noivo parece subverter noções de heteronormatividade, sendo que a ideia de que o monstro necessita de uma companheira feminina poderia ser facilmente interpretada como um preconceito da sociedade que é imposta a uma criatura inocente e em aprendizagem, sendo os resultados finais bem longe da felicidade de um casamento de Hollywood.

 Independentemente de quaisquer leituras queer, o filme é um dos mais únicos e fenomenalmente excêntricos produtos da Hollywood dos anos 30. A Noiva de Frankenstein é um marco do cinema de terror, e compensa a sua menor importância histórica em relação ao seu predecessor com o simples prazer da sua espetacularidade levemente sardónica. É difícil pensar num filme mais fácil de ver, quer seja pelo entretenimento glorioso que consigo traz, quer seja pela sua brevidade miraculosa mesclada de surpreendente complexidade encontrada em momentos como aquele em que o mostro profere as imortais palavras “We belong dead”.


terça-feira, 27 de outubro de 2015

FRANKENSTEIN (1931) de James Whale

 Com o Halloween a aproximar-se e o cinema de terror clássico a ser homenageado nos cinemas com Crimson Peak, decidi revisitar um dos mais importantes filmes de terror na história do cinema, Frankenstein de James Whale. 


 O género de terror não era uma novidade no cinema americano, mas em 1931 deu-se uma reviravolta e abriram-se as portas para o tipo de terror que iria caracterizar o resto da década. Criaturas monstruosas icónicas e desdobradas em franchises que fazem lembrar as narrativas de super-heróis da atualidade. Talvez algo que faltava ao cinema de género dos estúdios americanos era a sofisticação que o cinema europeu já tinha alcançado nas suas obras arrepiantes, e é aí que entra o genial James Whale e a imensamente célebre adaptação de Frankenstein produzida pela Universal.
 Depois do sucesso imenso da sua versão de Dracula, a Universal Pictures procurava outra obra literária a adaptar para um filme de terror quando Carl Laemmle Jr. se decidiu a adaptar Frankenstein, da autoria de Mary Shelley, para o cinema. Tal como ocorreu com a obra sobre o icónico vampiro, mais do que se basear na obra literária do século XIX, o filme foi maioritariamente desenvolvido a partir de uma adaptação teatral que já tinha sido feita com base no livro de Shelley. Muito mais perversamente próximo da obra original viria a ser o texto da sequela que Whale concebeu para este seu sucesso.

 O enredo de Frankenstein é, aliás, completamente distante do livro da autora romântica, pegando apenas em conceitos e premissas narrativas e alguns nomes de personagens na criação da sua história. Neste filme encontramos o Dr. Henry Frankenstein (Colin Clive), um megalómano cientista que habita um castelo tenebroso numa vila remota chamada Goldstadt. Aonde e quando isto tudo ocorre é deixado deliberadamente nebuloso e incerto, mas penso ser acertado dizer que se passa tudo algures num tempo reminiscente do século XIX e numa região proveniente de exóticas fantasias americanas da Europa de Leste. O cientista meio-louco de ambição tem a ajuda de um assistente corcunda, Fritz (Dwight Frye), e, no início do filme, observamo-los aos dois a tentarem roubar um cérebro de um cadáver acabado de enforcar. Infelizmente, o cérebro encontrava-se demasiado danificado. Numa sequência de eventos que vão levar à monstruosidade central ao filme, Fritz encontra outro cérebro para as experiências de seu mestre. Este novo cérebro pertencera a um psicopata, algo desconhecido pelo doutor quando, no meio de uma tempestade, completa a sua abominável experiência e dá vida à sua criação. O monstro que aqui ganha vida é feito de partes de cadáveres unidos por Frankenstein e revitalizado pela eletricidade. Como seria de esperar, tudo começa a correr mal para o doutor a partir deste momento com os seus entes queridos a aperceberem-se da ambição enlouquecida de Henry e com a criatura a eventualmente fugir dos confins do castelo e causando destruição na aldeia próxima. A história final é basicamente a de um cientista louco a tentar corrigir o erro de se sentir Deus e de uma monstruosidade que não tem lugar neste mundo e que é constantemente perseguida por todos os humanos à sua volta.

 O derradeiro milagre do filme como uma narrativa é, no entanto, o modo como complica esta história bastante simples, não fosse o monstro a mais complexa e comovente entidade em todo o edifício do filme. É claro que isto se deve em igual parte ao trabalho de Whale como realizador e no de Boris Karloff como ator. Apesar do ator ter sido toda a vida menosprezado como intérprete devido à sua fama ter sido ganha em filmes de género, eu considero-o como um dos melhores atores da era dourada dos estúdios de Hollywood, sendo o monstro de Frankenstein a sua mais célebre e inesquecível criação.

 Numa genial e icónica caracterização edificada por Whale, Karloff é uma gigantesca presença de aparência desumana, que, num verdadeiro triunfo da arte cinemática, é paradoxalmente a mais humana presença do filme. O monstro é como que uma entidade meio infantil trazida ao mundo sem o seu consentimento. Há uma curiosidade e inocência que preenchem até os seus mais violentos atos. Duas cenas em particular mostram a genialidade de Karloff, numa delas o mostro, ao ver um feixe de luz dentro do cavernoso castelo, estende as suas mãos aos céus, tentando encontrar algo intangível que tanto é a luminosidade como algo de espiritual. Na segunda cena de referência, o monstro encontra uma jovem rapariga a brincar junto à água e, como uma bestial criança, junta-se a ela que se encontrava a atirar flores para as águas. A confusão de um recém-nascido num mundo confuso mistura-se com a bruta força de um corpo de monstro e ele atira a rapariga para água, afogando-a sem se aperceber das consequências de seus atos ou do próprio conceito de morte.

 De menor mérito e fama, mas não menos fulcral para o sucesso do filme, está o trabalho de Clive no papel do cientista louco, uma figura que também consegue encontrar alguma humanidade por entre os exageros caricaturescos deste arquétipo das narrativas de terror. Não que o ator tenha uma fração da majestosa subtileza e expressividade suave de Karloff, encontrando, pelo contrário, a sua latente humanidade no exagero e impacto emocional da sua teatralidade quase grotesca. O resto do elenco não tem esperança de ser tão eficaz como os seus protagonistas, sendo que muitos dos restantes atores têm tendência a serem exemplos do artificialismo cansativo e cheio de manias que se registam nos piores filmes do início da era sonora em Hollywood.

 Todas estas palavras sobre o elenco e sobre o texto e ainda quase nada mencionei do génio por detrás deste filme. James Whale, apesar de ter realizado numerosos filmes na sua relativamente curta carreira em Hollywood, será para sempre recordado pelo seu trabalho nos dois primeiros filmes que a Universal produziu sobre o monstro de Frankenstein. Para entendermos a importância do realizador basta olharmos para a versão de Dracula, produzida pela Universal no mesmo ano. Nesse filme, realizado por Tod Browning, pouco há para louvar que não seja o trabalho de Bela Lugosi como o vampiro central, sendo que todo o filme peca por uma sufocante teatralidade e rigidez típica destes primeiros anos do cinema sonoro. Frankenstein e a realização de Whale não podiam estar mais distantes da entediante banalidade do filme sobre o mais famoso vampiro da ficção.

 O que Whale fez e que alterou por completo o panorama do cinema de terror como o conhecemos hoje em dia foi ir buscar ao cinema europeu uma coleção de técnicas e ideias estilísticas e incorporá-las no sistema de estúdios de Hollywood. E assim entrou o Expressionismo Alemão no cinema americano e até hoje é difícil separar os dois, nomeadamente quando falamos de cinema de terror. Toda a construção cinematográfica desta obra mostra a influência europeia, basta olharmos para os cenários cavernosos, passando pelos movimentos de câmara precisos, as composições geométricas e especialmente a iluminação de cortante chiaroscuro. Numa época em que o cinema americano estava prisioneiro das limitações técnicas dos primeiros mecanismos de captura de som para cinema, Whale não conteve a sua criatividade e nenhuma modéstia deixou transparecer no seu filme, fazendo de Frankenstein uma obra tão estilisticamente sofisticada e impressionante como o cinema inovador que se desenvolvia no continente europeu. Apenas o texto, que por vezes peca pelo simplismo forçado, é que desmascara o filme como um produto completamente comercial para os estúdios americanos, pois esteticamente poucos filmes se comparavam a Frankenstein em 1931 no que diz respeito a complexidade e simples ambição.

O trabalho e a vida de Whale são algo que me fascina, pelo que talvez me esteja em demasia a influenciar pela minha paixão de fã. No entanto, acho que é ridículo tentar falar dos seus filmes sem cair numa retórica de cinema de autor, sendo que basta ler uma breve biografia do realizador para nos apercebermos do modo como a experiência como prisioneiro de guerra de Whale na 1ª Grande  Guerra e a sua infância numa negra, fumarenta e opressivamente conservadora parte de Inglaterra, acabaram por influenciar o mundo por ele conjurado neste marco incontornável do cinema de terro. Frankenstein de 1931 é especialmente fascinante se considerarmos a sua estilização que revela uma dolorosa humanidade com os excessos e loucuras meio cómicas que Whale viria a revelar na sua sequela, mas essa é uma discussão para outro dia.


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

LISTEN TO ME MARLON (2015) de Stevan Riley

 Listen to Me Marlon foi exibido este fim-de-semana como parte do DocLisboa, um festival obrigatório para qualquer apreciador de documentários. Como tal, aqui estão alguns dos meus pensamentos em relação a este tocante autorretrato de Marlon Brando, possibilitado pelo trabalho de Stevan Riley como realizador.


 Mais do que uma elegia a um dos mais importantes atores da história do cinema americano, Listen to Me Marlon, o novo documentário de Stevan Riley sobre Marlon Brando, consegue estar mais próximo da autobiografia. O filme é construído à volta de gravações feitas por Brando ao longo da sua vida, uma espécie de diário gravado, que são aqui mescladas com imagens da sua vida pública e privada, num retrato de cortante intensidade.

 Logo no início do filme, Riley mostra-nos a face de Brando digitalmente construída com base em informações scaneadas aquando da participação do ator nos filmes do Super-Homem. O efeito de ter esta construção digital a “falar” as gravações do ator, é imediatamente chocante. Riley como que conjura um fantasma no seu ecrã, ma sombra do passado, que não é de todo real, mas que na sua fraturada artificialidade ganha uma força que nenhuma entrevista com o ator poderia alcançar. Como os espíritos que assombram a mansão de Crimson Peak e os cinemas mundiais, este espectro de Brando confronta-nos com o passado da sua existência e daí partimos para um dos mais tocantes documentários biográficos de que tenho memória.

O que faz do documentário, que, para além do fantasma digital, pouco arrisca formalmente, uma obra de inegável fascínio e importância é o modo como Riley concede o seu documentário à perspetiva de Brando e nunca tenta impor qualquer reflexão contemporânea sobre o seu sujeito. Ao recusar a inclusão de entrevistas atuais, de voz-off que contextualizassem a figura de Brando na contemporaneidade, o realizador deste documentário prende-nos singularmente no olhar de um homem sobre si mesmo. O que ouvimos e vemos durante quase duas horas é a reflexão de Brando sobre si mesmo ao longo dos anos, tornando este filme, não uma grande homenagem ao ator estrela, mas uma autobiografia que atravessa os limites do tempo e da vida quando nos é apresentada em Listen to Me Marlon.

 Pessoalmente, há muito que me transtorna nas divagações de Brando, como a sua visão sobre a importância do ator na totalidade do filme, a sua rejeição de qualquer perspetiva do realizador, a sua celebração egocêntrica do naturalismo mimético aquando da sua juventude, ou mesmo o modo como na sua paixão pelo Taiti ele, para mim, consegue ser tão preconceituoso e até racista como aqueles contra quem ele se manifesta, exoticizando um povo num ideal de idílica existência quase mágica, como o estereótipo do magic negro que tanto aparece na cultura americana. E o filme, longe de explorar as inconsistências, contradições e arrogâncias da sua estrela, pelo contrário, simplesmente apoia a voz de Brando com escolhas musicais e montagem que parecem celebrar as suas palavras.
 Estes problemas, no entanto, não são particularmente difíceis de contornar e ignorar, pelo simples facto de que, ao nunca se desviar da perspetiva de Brando, apenas pontuada por notícias e imagens dos media a que Brando teria tido acesso na sua vida, o filme torna-se a obra do ator, mais ainda que a obra de Stephen Riley. O que ouvimos é a perspetiva de Marlon Brando, daí ser lógica a celebração das suas ideias na forma e abordagem do filme.

E, apesar do que possa ser sugerido pelas minhas palavras anteriores, o filme nunca se torna num monólogo intelectualista em que o ator se celebra a sai mesmo. O lado mais tocante do documentário, para além da avassaladora dor trazida pelos destinos dos filhos do ator, é o modo como vamos ouvindo as reflexões de um indivíduo ao longo da sua vida, o modo como a opinião dele muda sobre si mesmo e suas convicções passadas, o modo como se autocritica e como se perde na sua própria arrogância ou medo, etc.

 Listen to Me Marlon pega na figura lendária de Marlon Brando e, ao invés de a dissecar de modo intrusivo e pós-moderno, simplesmente deixa que essa imagem se abra por si mesma numa explosão de chocante intimidade. Marlon Brando como um ser humano complexo e não como uma estrela arrogante e importante para o cinema, é algo que poucas vezes vimos e é algo que este documentário nos propulsiona. Para além de tudo isto, há ainda que apontar o modo como este filme é emocionalmente devastador na sua introspeção, sendo que quando vi Listen to me Marlon no DocLisboa, eram numerosos os espetadores que iam tendo de limpar lágrimas dos seus olhos. Uma obra a não perder, mesmo para quem não tenha grande afeição por Brando ou pelo cinema da sua era, simplesmente porque pega numa figura tão celebrada como este ator e dela extrai a intimidade lacrimosa da autorreflexão, infelizmente bastante difícil de encontrar na maioria dos documentários que Hollywood faz sobre o seu passado.


domingo, 25 de outubro de 2015

CRIMSON PEAK (2015) de Guillermo del Toro

 Referenciando tudo desde Val Lewton e Jacques Tourneur a Stanley Kubrick, Guillermo del Toro oferece em Crimson Peak um hipnotizante espetáculo nostálgico, uma verdadeira celebração do cinema de terror clássico. 


 Numa das mais características cenas de Crimson Peak: A Colina Vermelha, o novo filme de Guillermo del Toro, duas mulheres encontram-se num parque, a observar borboletas nos seus últimos momentos de vida. Os magníficos insetos não conseguem sobreviver ao frio e falta de sol, estremecendo enquanto morrem. Uma delas pega numa das borboletas e com a sua asa acaricia a sua face e a da sua companheira, antes de a atirar para o chão, onde a borboleta é devorada por formigas. No mundo deste filme, subtileza não tem lugar para existir. Para além do diálogo cheio de presságios óbvios e simbolismos descarados, a própria borboleta e o seu cruel fim são horrendamente observados por del Toro, em planos em CGI que se vão aproximando do animal à medida que este é violentamente devorado. A beleza e a carnificina sanguinária existem em uníssono neste mundo conjurado por del Toro, um mundo onde qualquer noção de realismo moderno foi substituído por uma extravagância artificial que normalmente observamos em filmes de terror clássicos, quer sejam as coloridas obras de giallo, quer sejam as sombras expressionistas dos filmes de terror dos anos 20 e 30.

 Estas duas mulheres são Edith (Mia Wasikowska), filha de um americano industrial que sonha em se tornar escritora, e Lucille Sharpe (Jessica Chastain), uma sombria aristocrata inglesa cujo irmão Thomas Sharpe (Tom Hiddleston) seduz Edith e acaba por casar com ela depois da morte violenta do seu pai. O enredo é bastante simples, uma herdeira americana é seduzida por um misterioso europeu, casa-se e vai para um mundo de escuridão e sombras ameaçadoras numa mansão assombrada. Junte-se a isto um pouco de perversidade hitchcockiana que relembra Notorious e temos a história de Crimson Peak. Não temos aqui nada de muito complexo ou difícil de digerir, mas sim uma estrutura narrativa que lembra os apressados e imensamente eficazes guiões dos filmes de terror da Universal de outrora.

 No início, o classicismo nostálgico do filme é impossível de ignorar, infetando todos os elementos do filme. Mesmo os atores trabalham sob uma atmosfera de nostalgia estilística, sendo Wasikowska uma perfeita substituta para uma Joan Fontaine delicada e constantemente amedrontada, simples e sem grandes complexidades. Hiddleston é um herói típico vitoriano, meio Lord Byron, meio Mr. Rochester, com uma pitada de perversidade que o faz parecer uma parte transplantada de um filme da Hammer Film Productions. Até Charlie Hunman, no seu papel de um amigo de Edith, o herói decente e imensamente aborrecido, é perfeito na sua rigidez. Ele é um típico herói do cinema de terror clássico, um Jonathan Arker que é apenas necessário para contrastar com a monstruosidade exuberante do seu filme. E esse monstro, longe de ser um dos espíritos que vão aparecendo, é Lucille Sharpe, maravilhosamente encarnada por Chastain num registo que parece ter-se baseado na Mrs. Danvers de Judith Anderson, com um acrescento generoso de selvageria animalesca nos momentos acertados.

 Muito mais explícito e intoxicante que a estilização performativa do elenco, é a direção de del Toro e os visuais por ele, e sua equipa, concretizados. A fotografia de Dan Laustsen cobre o filme com sombras profundas que, por vezes, parecem consumir o filme em expressionista escuridão. A cenografia de Thomas E. Sanders constrói um mundo de estilizados horrores, sendo que a mansão dos irmãos Sharpe é uma das mais magníficas criações do cinema de terror contemporâneo, tão exagerada na sua decrepitude quão monumental na sua opulência e detalhe. Neste mundo em que o chão “sangra” argila vermelha, os humanos da história aparecem vestidos com criações tão exuberantes como os espaços, cobertos de simbologia esmagadora e num registo estilístico que não tem grande comparação no panorama cinematográfico atual. Edith na sua silhueta de 1890, amarelos ricos e decoração floral é um direto contraste com a frieza moribunda dos Sharpe, especialmente Lucille que parece, na sua elegância antiquada, ser quase que uma extensão humana do edifício espectral em que decorre a maioria do filme.

 Se a maioria dos visuais parece remeter para uma estética nostálgica e opulente, os efeitos visuais são inexoravelmente modernos. Desde a sequência da borboleta a ser devorada até às assombrações, há algo de definitivamente estranho no uso de CGI num filme que tanto parece querer pertencer a uma era passada da história do cinema. Mas será mesmo por essa estranheza que estes efeitos resultam, sendo que os fantasmas, na sua pestilenta e fumegante negrura, parecem pertencer a um mundo completamente diferente do resto do filme. O foco do horror do filme não são, contudo os fantasmas que com tudo parecem destoar mas sim os humanos em que todo o horror da história parece convergir.

 Também a história do filme joga com a mistura de modernidade e classicismo nostálgico, sendo que isto se verifica especialmente no modo como del Toro explora as personagens femininas deste seu romance gótico. A cena de sexo em que apenas Hiddleston mostra nudez, já foi bastante discutida pela internet, mas a grande reviravolta do filme acontece, para mim, no seu violento clímax. Aí, os heróis masculinos são ora incapacitados ou assassinados pela furiosa vilã, e o filme tem o seu desfecho numa perseguição pela neve, em que as duas figuras femininas principais lutam entre si, com facas empunhadas, e com as suas camisas de noite manchadas com o vermelho do sangue e da argila que forma a colina do título. As motivações da vilã são o desejo de viver a sua vida como quer, em toda a sua sangrenta perversidade, e, quando a impedem disso mesmo, a sua reação é uma fúria vingativa, enquanto a heroína, outrora vitimizada e delicada, emerge como uma sobrevivente enraivecida. Por muito que este proto feminismo se perca por entre o resto da construção do filme rica em arquétipos simplistas, essa luta final é gloriosa e maravilhosamente inesperada depois de toda a nostalgia que até então se manifestou.

 As minhas principais reticências em relação ao completo sucesso de Crimson Peak devêm desse raro defeito que é o excesso de ambição. Numa tentativa de referenciar o que, por vezes, parece ser toda a história do cinema de terror ocidental, del Toro tem tendência a se perder um pouco. Há um particular excesso de simbolismos, diálogos explicativos, flashbacks e sequências repetitivas, que retiram ao filme a elegância e eficácia estrutural que tanto brilham nas obras de terror clássico.
 No entanto, apesar desses meus problemas com o filme, Crimson Peak é uma obra de hipnotizante cinema de entretenimento. Talvez seja um filme maioritariamente feito para fãs de cinema de terror clássico (como eu), do mesmo modo que Pacific Rim pareceu uma obra somente concebida para fãs de cinema japonês do género daikaiju. Talvez por isso o filme seja um pouco difícil de apreciar para quem espere uma modernidade que del Toro simplesmente se recusa a oferecer. Mesmo para os seus detratores, no entanto, Crimson Peak, na sua gloriosa construção sensorial, é uma obra difícil de ignorar, um extravagante pesadelo nostálgico que seduz com a sua relativa simplicidade e sua luxuriante exuberância estilística. 

sábado, 24 de outubro de 2015

HOWARDS END (1992) de James Ivory

Depois de revisitar Um Quarto com Vista sobre a Cidade e Sensibilidade e Bom Senso, pareceu-me apta uma reflexão sobre Howards End. o filme de James Ivory que valeu a Emma Thompson o Óscar de Melhor Atriz.


 Uma saia de seda é arrastada por entre relva húmida e flores coloridas durante uma noite luminosa. Vanessa Redgrave é quem veste esse vestido, etérea e maravilhosa ela flutua pelo ecrã, passando pelas flores, tocando o seu colar, o seu cabelo como uma incerteza melancólica. Uma adaptação de Richard Robbins da Bridal Lullaby de Percy Grainger toca na paisagem sonora do filme. Uma imagem de melancolia romântica como poucas existem. Uma serenidade absoluta de uma alma solitária e que olha a beleza à sua volta como se percebesse a sua efemeridade e a tentasse absorver numa última caminhada noturna. Dentro de uma magnífica casa de campo vemos, pela janela, a família da mulher, animada e sonora do mesmo modo que a figura que seguimos é calma e silenciosa. Assim começa Howard End de James Ivory, produzido por Ismail Merchant e adaptado do livro de E. M. Forster por Ruth Prawer Jhabvala.

 Esses três nomes são para muitos cinéfilos uma marca de prestígio inglês ossificado e banal, são marcas de um tipo de cinema burguês e desinteressante em que adaptações literárias de obras antigas são expostas como aborrecidos filmes com visuais extravagantes e requintados, e um vazio absoluto como só o mais pueril dos filmes destinado unicamente a ganhar Óscares consegue ser. Para mim essa reputação é infundada e impede muita gente de realmente apreciar o trabalho, por vezes, magnífico que esta equipa conseguiu criar, como é o caso deste filme. É verdade que na sua filmografia se estendem uma infinidade cada vez mais numerosa de poeirentos e sufocantes adaptações literárias sem interesse, mas basta olharmos para Howards End para nos apercebermos que as acusações de superficialidade e simplificação burguesa são, francamente, estúpidas e redutivas, não fosse este um dos seus mais cruéis filmes apesar da beleza do final. Na sua filmografia, penso que apenas Quartet consegue alcançar tais níveis de deprimente crueldade por entre o espetáculo requintado da recriação de uma sociedade de outros tempos.

 O filme é, tal como a obra que lhe deu origem, uma exploração, essencialmente, de valores e classes e o modo como estes afetam e pervertem as relações humanas presentes no seu enredo. Não querendo perder muito tempo e latim a descrever o enredo complicado de um filme com 23 anos e de um livro com 105, vou simplesmente esboçar alguma da informação essencial. A mulher que vemos na intoxicante abertura do filme é Ruth Wilcox, a matriarca de uma família abastada que se vê intrinsecamente ligada a uma outra família, esta de uma classe burguesa claramente inferior à sua, os Schlegel. Um dos filhos de Ruth pede, no início do filme, a mão da radical e impetuosa Helen Schlegel (Helena Bonham-Carter) em casamento, para na manhã seguinte retrair o seu impulso, acabando por traçar o caminho inseparável das suas famílias numa espécie de caminho fatalista que pode apenas acabar em tragédia. Acompanhamos, meses mais tarde, Margaret (Emma Thompson), a irmã de Helen, a estabelecer uma amizade próxima com Ruth que, aquando da sua morte, decide deixar a sua mais preciosa posse, a casa que vemos no início do filme e que dá titulo à obra, à sua amiga. Os Wilcox desrespeitam, por variadas razões e racionalizações, o desejo da matriarca moribunda e escondem a informação de Margaret. Entretanto os Schlegel formam uma ligação com um casal de classe trabalhadora, os Bast, acabando por, devido a informações erróneas de Henry Wilcox (Anthony Hopkins), influenciar Leonard Bast (Samuel West) a um caminho profissional que resulta no seu desemprego e miséria financeira para a si e sua mulher. Helen toma o casal como uma causa social ao mesmo tempo que Margaret se torna noiva do agora viúvo Henry, tomando a posição outrora ocupada por Ruth. Muito mais que isto acontece, e levando a um final trágico e altamente simbólico em Howards End, mas esta descrição já atingiu demasiado comprimento e é melhor acabá-la aqui.

 O enredo é tão convoluto como uma telenovela, mas contém em si uma densidade temática e desenvolvimento de personagens que não são certamente de menosprezar. E tais complexidades e densidades são maravilhosamente apresentados, tanto pelo claro e contido argumento do filme, como por um dos melhores elencos alguma vez reunidos para um filme da dupla Merchant Ivory. Parte do grande sucesso do filme provém da junção desses dois elementos, o texto e o elenco, criando uma coleção de personagens que tanto são fortíssimos arquétipos para uma representação simbólica da sociedade Eduardina como são seres humanos cheios de contradições e peculiaridades.

 As irmãs que ocupam grande parte do foco do filme são de particular mérito. Margaret, um papel e interpretação que valerão à sublime Emma Thompson um muito merecido Óscar, é uma figura particularmente complicada, uma pessoa intrinsecamente “boa” no sentido menos sarcástico da palavra e uma burguesa de pretensões liberais e intelectuais que, no entanto, caminha de livre vontade para uma existência subserviente a um marido conservador e uma família de valores claramente antagónicos aos seus. Há algo de jubilante e jovial no trabalho de Thompson, um despretensiosíssimo que esconde uma mulher claramente ciente da sociedade em que se encontra. As expressões silenciosas da atriz exploram muito mais as escolhas contraditórias de Margaret muito mais que o texto, criando alguém que tenta apelar furiosamente a um racionalismo moral perante a petulância orgulhosa dos Wilcox, e que noutro momento próximo perdoa qualquer transgressão do marido com uma piedade e empatia estranha para uma mentalidade contemporânea. Margaret é claramente, apesar das suas opiniões políticas e intelectuais, uma mulher burguesa do seu tempo, sendo que é por isso muito mais difícil de compreender que a sua radical irmã interpretada por Helena Bonham Carter como uma presença irrascível e moralmente muito mais próxima de um standard contemporâneo que a sua irmã. A fúria e paixão de Helen, especialmente em relação a Bast, são, apesar do que disse, maravilhosamente moduladas pela atriz e pelo filme, mostrando quão Helen usa os Bast, mais do que como seres humanos iguais a si, mas como uma causa social e uma visão de um sofrimento romântico pela qual ela na sua condição de mulher de confortável classe média e aspirações intelectuais tem o dever de ajudar como uma benevolente salvadora. No olhar de Ivory e na interpretação das atrizes existe um cinismo que contamina os mais joviais ou emocionais momentos, originando uma crítica social que se estende para além das classes mais abastadas e acusa também uma classe média dita liberal e de pensamento educado e artístico, apontando o dedo, de modo subtil, não só às suas personagens como também à audiência que muitos dos críticos acusam de ser o público típico deste filme e de outras respeitáveis adaptações de obras literárias importantes.

 No caso dos Wilcox, a complexidade é tão ou mais fascinante que nos Schlegel. Se as duas irmãs representam uma classe média que se identifica com os extremos sociais da sua estrutura social como modo de autodefinição e vivência, os Wilcox estão firmemente estabelecidos como uma família abastada e conservadora. Mas esse conservadorismo não é simplista e básico como poderia ser, aparecendo em várias formas, nomeadamente nas três principais figuras da família, Henry, Charles e Ruth.

 Destes o mais extremo e alienante é Charles, interpretado por James Wilby num registo de elitismo snob a que iria ocasionalmente voltar em papeis semelhantes. O seu conservadorismo é voraz, mostrando alguém a quem o mundo tudo parece dever, mais ainda do que nas outras figuras que povoam o filme, em Charles a sua existência e sua condição na estrutura social são inseparáveis. É o mais caricaturado e arquetipado dos Wilcox, sendo praticamente impossível para uma audiência simpatizar com ele, especialmente em alguns dos últimos momentos do filme em que, depois de um crime provocado pelo seu orgulho e valores aristocráticos, Charles tenta explicar e comandar a polícia numa atitude de superioridade social e existencial tanto sobre as autoridades como sobre a sua vítima. A crítica, em Charles, não é particularmente subtil ou complexa, ao contrário do que acontece com as figuras de seus pais. Henry é, por exemplo, bastante diferente como comandado por Anthony Hopkins no pico dos seus talentos e importância cinemática. Uma tormenta contínua de maneirismos e afetações rígidas, Henry é um capitalista conservador e orgulhoso com um pragmatismo impiedoso e uma filosofia francamente repugnante. Mesmo assim. Há uma humanidade latente na sua figura, uma insegurança tão vulnerável como manipuladora. As cenas partilhadas com Thompson são de particular génio e contraste, um par de humanos com valores completamente diferentes em luta continua por entendimento e comunicação.

 Mas é a Ruth de Vanessa Redgrave que realmente mostra o perfeito triunfo do filme, desde a sua entrada quase mística por entre os jardins noturnos de Howards End até à sua morte numa severa cama de hospital, Redgrave incorpora uma visão de tradicionalismo confortável e quase romântico na sua simplicidade. Para além de Margaret ela é a única pessoa que se poderia descrever como “boa”. A sua simplicidade e desejo por conforto e felicidade estão sempre marcados por uma melancolia permanente. Um fatalismo misturado com uma delicadeza de presença e movimento fantasmagórico que a torna num fantasma mesmo antes da sua morte. Ela é uma elegante figura de outro tempo, mas na sua simplicidade e inocência intelectual e social encontra-se alguma da mais lacerante humanidade do filme. A sua perda é sentida como uma explosão silenciosa que abala todo o filme, e a sua presença é, talvez, a mais perversa criação do filme. Nesta crítica social e exploração de valores antigos, é a mais tradicional e subserviente das personagens que parece encontrar algum nível de humanidade e felicidade pura na sua existência simples e delicada.~

 O resto do elenco é igualmente exemplar, sendo que os Bast são de particular menção por encontrarem uma visão de autovitimização e grotesco por entre a miséria que devem representar na estrutura do enredo. Ivory e o seu diretor de fotografia Tony Pierce-Roberts mostram Leonard como um herói auto romantizado, como se ele se transformasse a si mesmo no ideal de herói martirizado visionado por Helen para a sua pessoa. E é precisamente nesse tipo de uso dos visuais que Ivory mostra um estilo e personalidade que muitas vezes parecem ausentes dos seus outros filmes. Num filme em que as superfícies sociais se impõem a tudo, o modo como os visuais, e até a música, se revelam num distanciamento elegante e requintado é em si uma observação crítica e interpretativa da prosa de Forster.

 Num filme tão focado na posse, tanto de propriedade como de poder económico e até de seres humanos, é de esperar que o mundo material das personagens fosse cuidadosamente construído. A superficialidade da recriação histórica com que muita gente critica este tipo de cinema é crucial neste filme, criando um mundo de superfícies e em que uma pessoa e definida e se define pelas roupas que veste, pela mobília das suas casas. O historicismo elegante não é apenas decoração, mas sim tão fulcral para o filme como o trabalho dos atores e merecedor de semelhantes elogios pelo seu primor e precisão.

 No panorama das adaptações literárias em cinema, este filme é um triunfo, mas, para além disso, é um brilhante filme por si só, independente de quaisquer heranças ao trabalho de Forster, é um filme complexo e incrivelmente sofisticado, que esconde por detrás do seu tradicionalismo, uma crítica e exploração humana tão elegante como cortante.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SENSE & SENSIBILITY (1995) de Ang Lee

 Hoje é o aniversário de Ang Lee, o célebre autor taiwanês, e, como modo de celebração, decidi revisitar Sensibilidade e Bom Senso, um dos seus melhores filmes.


 Em 1995 despoletou-se, no cinema de língua inglesa, uma explosão de adaptações da obra literária deJane Austen, que durou anos e que também incluiu a televisão, nomeadamente as produções da BBC. De todas essas adaptações, esta versão de Sensibilidade e Bom Senso permanece, na minha mente e opinião, como a que é claramente superior a todas as outras, sendo que essa superioridade se deve invariavelmente a dois sonantes nomes do cinema. Emma Thomspon e Ang Lee.

 Da obra completa de Jane Austen, o livro de onde este filme é adaptado foi o primeiro a ser escrito e, comparando-o com as suas seguintes publicações, é algo bastante visível, tanto em termos de ritmo como de diálogo. É por isso, talvez, a sua obra menos apropriada a uma interpretação cinematográfica com os seus limites temporais e estruturação própria, mas Emma Thompson consegue alcançar milagres com a sua adaptação. O seu guião é uma das mais exímias adaptações que eu já vi, condensando e sintetizando o livro, não pela criação de cenas de exposição sucessivas ou pelo resumo da obra em passageiros momentos que representem todos os movimentos do enredo literário, mas realmente adaptando o livro à sua visão cinematográfica. Personagens são criadas, nomes mudados, o diálogo de Austen é quase completamente cortado e reinventado mas, no entanto, é uma das adaptações da obra da autora inglesa que mais parece manter as intenções e tonalidades característicos do seu trabalho. Nunca perdendo o tom sardónico que tantas adaptações de Austen parecem esquecer, Thompson cria aqui, não só uma belíssima trama de romance e relações intrafamiliares, mas também um estudo sobre o papel da mulher numa época passada, tanto a nível social como económico, obtendo um dos mais belos e exatos retratos de uma sociedade passada, que nunca cai com o peso da História, mantendo sempre uma agradável leveza e humor por entre o drama fortemente humano.

 E se o texto de Thompson não fosse suficiente, o filme tem como realizador uma das mais estranhas escolhas que eu já vi para a realização de um filme de época britânico, Ang Lee. Em 1995, a obra do realizador resumia-se basicamente a explorações da vida de famílias taiwanesas na contemporaneidade, estando incrivelmente removido da herança cultural e literária contida na obra de Jane Austen. No entanto, é fácil ver no seu trabalho uma contínua progressão dos mesmos temas, e o seu inegável talento para o drama familiar e histórias de emoções contidas e reprimidas volta-se a verificar aqui, com um guarda-roupa e cenário diferente, mas a humanidade serena do seu trabalho evolui assim numa espécie de continuidade cinemática. E essa serenidade é essencial na criação de um dos mais dinâmicos e fulgurosos filmes de época a alguma vez emergirem da literatura inglesa.

 A câmara de Lee está muitas vezes distante, filmando as personagens como elementos de pinturas, 
muitas vezes paisagísticas, e encontrando uma harmonia visual tão presente nos interiores ora opulentos ora austeros, ou nos verdejantes exteriores. Isto pode parecer paradoxal, o dinamismo e a serenidade, mas tal é o génio de Lee, que recria não só o visual de uma época mas toda uma atmosfera de códigos sociais e regras nunca ditas ao mesmo tempo que filma calmamente um turbilhão emocional. Há uma perspicácia precisa nos eu trabalho que é visto no modo como insiste em usar o espaço, o lado coletivo do seu numeroso elenco, assim como a cor e o clima na criação de um filme tão sensorialmente imediato que quase conseguimos cheirar a relva húmida, mas que é tão distante e reticente que sentimos o peso da sociedade em que a história se insere. As suas escolhas vão desde o subtil, como o seu uso de vento a baloiçar os casacos pendurados em cabides num plano de modo a indicar uma tempestade futura, assim como quebrando a superficial calma de Elinor (Emma Thompson) com um movimento na periferia, e chegam mesmo ao óbvio mas delicado, como o seu uso de retângulos e molduras arquitetónicas para filmar Eleanor, o bom senso, e janelas para o exterior ou elementos curvos como pianos para filmar Marianne (Kate Winslet), a sensibilidade.
 Apercebo-me que ainda pouco ou nada falei do enredo do filme mas não quero estragar o prazer de descobrir o filme a quem ainda não o viu, tão maravilhoso que é, e penso que quem leu o livro ou viu o filme não necessite de uma imediata lembrança sobre a história que se centra sobretudo à volta da relação entre duas irmãs, Elinor e Marianne, e suas histórias familiares e românticas após a morte de seu pai e destituição da sua unidade familiar.

 As irmãs, como já disse, são interpretadas por Emma Thompson e Kate Winslet, alcançando com este filme algum do melhor trabalho das suas carreiras como atrizes. Thompson tem o papel da irmã sensata e severamente pragmática, reprimindo os seus desejos em função da estabilidade e felicidade familiar. O seu timing e ritmo é perfeito, mostrando bem as raízes de Thompson na comédia, mas o que realmente impressiona é a sua expressividade facial e o modo como estabelece uma complexa e conflituosa interioridade a Elinor, que na sua ordem e abnegação existe maioritariamente como uma presença reacionária e moderadora do que acontece à sua volta. Tenho de dizer, no entanto, que a sua reação no momento mais romântico na trajetória da sua personagem é magnífico, tornando uma explosão emocional, não numa cena de Óscar, mas numa humorística reinterpretação de um momento pesado e dramático.

 Se Thompson é precisa e contida, Winslet é uma revelação de emoção e energia controlada, Há uma imaturidade na personagem que parece ameaçar insurgir-se a qualquer momento, que no entanto é modulada por uma precisão magistral e momentos de surpreendente calma e sensatez que insinuam uma grande complexidade à personagem. Há algo de fogosa heroína romântica no seu trabalho misturado com a ideia que Marianne apesar da sua impetuosidade é uma jovem mulher que sabe manejar a sociedade rígida em que se encontra. A sua inocência é sempre temperado com momentos em que olhares e expressões faciais sugerem uma maior maturidade e perspicácia do que, superficialmente, se poderia atribuir a uma personagem que existe como uma espécie de personificação de sensibilidade feminina. Eu diria mesmo que o grande sucesso das duas atrizes está no modo como ambas contrariam a possível simplicidade das personagens, nunca agarrando os conceitos principais do texto de Austen, mas deixando transparecer duas irmãs complexas, humanas e longe de qualquer estereótipo simplisticamente romântico.

  O resto do elenco é igualmente soberbo, mas falar de cada ator individualmente seria ridículo nem que seja pela simples vastidão do elenco, onde se encontram alguns dos melhores atores ingleses em atividade em 1995. Um dos grandes prazeres do filme é, aliás, simplesmente observar a coleção de personagens criadas por Austen e Thompson a interagir, viver e conviver. O trabalho exímio de Lee, do diretor de fotografia Michael Coulter, e de Tim Squyres que ao montar o filme permite a existência de um olhar geral onde combinações de planos gerais, médios e ocasionais grandes planos, oferecem um retrato coletivo do elenco. A sua habilidade em estabelecer ritmos precisos, não só nas cenas individuais ou nos extensivos diálogos, mas também no ritmo geral do filme, permite que Sense & Sensibility, apesar da sua considerável duração, se desenrole num delicado mas fluido movimento, nunca caindo em tempos mortos, e sempre com uma serenidade que deixa a audiência respirar por entre as complexidades do enredo e da historia emocional das protagonistas.

 E há que louvar o trabalho dos outros membros da equipa criativa, sendo que o filme é praticamente perfeito em todos os aspetos imaginários. Os figurinos de John Bright e Jenny Beavan e cenografia de Luciana Arrighi são irrepreensíveis recreações do mundo da sociedade inglesa do final do século XVIII, sendo os figurinos particularmente cruciais na visualização da estratificação social e económica, como numa brilhante cena num baile em que, à medida que as protagonistas avançam por entre diferentes salas, as vestes dos convidados se vão tornando cada vez mais luxuosas. Os cenários são de particular genialidade quando filmados por Michael Coulter que transforma paredes despidas com pequenos apontamentos de mobília modesta numa pintura de Vermeer tornada viva. Mesmo a música de Patrick Doyle é absolutamente magnífica, encontrando um balanço entre jovialidade, romantismo arrebatador e delicada melancolia nas suas composições, que ainda hoje não consigo arrancar da minha cabeça.

 Mesmo assim, apesar de tudo o que já disse, parece-me que ainda falta mencionar tanta coisa do filme, tal é o tamanho do seu triunfo. Gostaria principalmente de celebrar o modo como, apesar de ser essencialmente um romance de época com traços de sátira social, o filme tem em si uma enorme complexidão de temas e intenções, desde a desconstrução subtil tanto do herói romântico literário como do seu equivalente cinemático, ou o modo como parece haver uma tentativa de evitar o dramatismo usual em tais filmes, tanto da parte do realizador como do elenco, e que confere ao filme uma subtileza emocional que tanto expressa a atmosfera de uma época passada como separa o filme de tantos outros melodramas crassos.

 Para encerrar esta jubilante celebração desta essencial obra de Ang Lee, há que mencionar o final do filme, talvez a mais clara exemplificação de tudo o que até agora disse. O esplendor visual e sonoro é obvio nestes momentos em que vemos o casamento triunfal de Marianne, mas, para além disso, temos grande parte do elenco presente, cada um no seu registo cómico trágico particular, assim como temas a mistura precisa de camadas temáticas que tanto caracterizam o filme, sendo que a imagem final do filme, apesar do caracter romântico da cena, não poderia ser mais sardónico e cortante no seu comentário sobre a sociedade e sobre as pessoas que temos vindo a acompanhar. O noivo atira moedas ao ar, uma tradição antiga local, e as pessoas ora olham maravilhadas para cima ora tentam agarrar o que conseguem, independentemente da sua condição social. No final, apesar de todo o romantismo e sofrimento emocional, a celebração que pontua o último suspiro do filme é caracterizada por dinheiro, estando o dinheiro, a propriedade e o poder económico no centro de todas as interações do filme, mesmo as mais românticas e sentimentais. O espírito da obra de Austen perfeitamente capturado num momento passageiro, uma sátira precisa, um romance tocante, e maravilhosamente concretizado numa irrepreensível visão e interpretação cinemática.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

SICARIO (2015) de Denis Villeneuve



 Depois do tecnicamente impressionante, mas textualmente limitado, Raptadas e da opacidade intrigante de O Homem Duplicado, eu não sabia bem o que esperar de Sicario - Infiltrado, o novo filme de Denis Villeneuve e o seu terceiro em inglês. O cinema e, especialmente, a televisão americana têm estado pejados de narrativas em volta da guerra contra a droga e da relação entre os EUA e o México, sendo que nos últimos anos tem havido como que uma calcificação narrativa e formal neste tipo de histórias, infetadas por uma banalidade e simplicidade politica que me têm repelido. Sicario – Infiltrado está longe de qualquer acusação de complacência ou simplismo, sendo um dos mais surpreendentes filmes narrativos a sair de Hollywood e a debruçar-se sobre temas tão politicamente acesos como estes.

 O filme desenvolve-se à volta de Kate Macer (Emily Blunt), uma agente do FBI que, depois de uma horrenda abertura numa casa armadilhada e forrada de cadáveres, é convidada a fazer parte de uma equipa especial, com supostas ligações com a CIA, que está envolvida na guerra da droga. Sem grande informação e desejosa de finalmente fazer alguma diferença, Kate é mergulhada num pesadelo acordado, seguindo a liderança dúbia de Matt Graver (Josh Brolin), um agente da CIA, e Alejandro Gillick (Benicio del Toro), um misterioso consultor que outra foi um advogado cuja família foi devastada por um dos senhores da droga perseguidos pela equipa central ao filme. O que, juntamente com Kate, vamos descobrindo é uma teia de horrenda manipulação em que os “heróis” americanos são, em parte, culpados pela criação do inferno na Terra que observam no México.

 Longe de simplificar a visão do México e da guerra contra os cartéis, o filme parece recusar-se a cair nos simplicismos de outras narrativas semelhantes. Quase todo o filme é passado a acompanhar Kate e a partir da sua perspetiva olhamos o mundo dos agentes americanos a ser um pesadelo tão sufocante e imoral como o caos aterrador das cenas passadas no México. Apenas nos afastamos ocasionalmente da perspetiva horrorizada e quase paralisada da protagonista, sendo que, num momento crucial do filme, acompanhamos Gillick. A sequência relembra tantas outras narrativas de anti-heróis vingadores. Aqui, no entanto, a figura do anti-herói e suas ações estão longe de glorificações banais, sendo que nos apercebemos da irremediável amoralidade e desumanidade das suas ações. A outra figura que observamos proximamente é um polícia envolvido com os cartéis, Silvio (Maximiliano Hernández). Vemo-lo maioritariamente em casa com sua família, sendo que antes de ser mais um peão neste violento jogo de guerra, o vemos como um pai, como um humano com quem é fácil simpatizar. Quando o seu final chega, temos a impressão que, em outros filmes, esta personagem seria uma figura de uma só cena, algo dispensável e esquecível, mas aqui é uma vítima, não completamente inocente, de um mundo negro que se parece ter esquecido da noção de básica humanidade.

 O mundo aterrador do filme é requintadamente criado por um formidável trabalho técnico que faz a precisão admirável de Raptadas parecer um pueril exercício escolar. A fotografia é um dos melhores trabalhos na filmografia do mestre Roger Deakins, assim como é um dos seus trabalhos menos característicos. As imagens são cristalinas e precisas, evitando os filtros amarelados que na televisão americana parecem sinónimos do México, e trabalhando com sombras negras e profundas que ora se manifestam como manchas cortantes na paisagem luminosamente infernal ou como ambientes envolventes de sombras que tudo parecem consumir, abatendo-se ameaçadoramente sobre as personagens. O visual do filme também deve muito à discreta e eficaz cenografia de Patrice Vermette, sendo a casa de horrores que abre o filme um espaço de particular horror e eficácia visual.

 Ainda mais importante e magistral que o visual do filme é o seu estupendo som. A música, da autoria de Jóhann Jóhannsson, funde-se com os efeitos sonoros numa avassaladora atmosfera de constante ameaça. Há algo de horrendamente opressivo na sonoplastia do filme, como se criaturas infernais se fossem movimentando debaixo dos pés da audiência, sendo que por vezes parecemos ouvir a terra mover-se em estrondosa intensidade, como se num submundo invisível o caos fosse tão grande como na realidade em que habitam as figuras humanas do filme, e seus movimentos cataclísmicos se fizessem ouvir por toda a narrativa. Há algo de demoníaco no som, e ao mesmo tempo de impressionantemente expressionista e imersivo, tornando, em algumas sequências, o som de um caótico ambiente urbano numa cacofonia infernal digna de pesadelos aterradores.

 Este fantástico ambiente é habitado e vitalizado por um elenco formidável com Emily Blunt no protagonismo e a apresentar o seu mais complexo e impressionante trabalho até à data. A sua presença aterrada e impetuosidade palpável lembram Jodie Foster em O Silêncio dos Inocentes, sendo que, especialmente na segunda metade do filme, Blunt vai muito mais longe que Foster mostrando como Kate quase fica paralisada pela descoberta da realidade corrupta e horrenda e seu papel nas maquinações masculinas à sua volta. O filme sem Blunt sem Blunt seria impensável, sendo que a luta de Villeneuve pela sua escolha de uma atriz para protagonista do filme bem pagou os seus dividendos. Del Toro, Brolin e Daniel Kaluuya, como o parceiro de Kate, são de louvar também. Del Toro é particularmente estrondoso na sua reticência misteriosa e agressividade assustadora, enquanto Brolin brilha na sua repugnante criação de arrogância nojenta e perigosa e Kaluuya oferece uma visão de rara humanidade e apoio num mundo em que o perigo parece espreitar por entre as sombras.

 Sem Dilleneuve, contudo, toda esta mestria técnica e performativa seria inútil, sendo a mão segura do realizador que une todos os componentes do filme numa obra de mestria quase maquinal na sua precisão. Uma das sequências mais impressionantes do filme passa-se no regresso de uma frota de carros aos EUA, depois de passarem por Juarez. Num engarrafamento, na fronteira entre os países, os carros ficam bloqueados e explode um confronto violento. Aqui todos os componentes do filme chegam a gloriosa união, sendo a tensão criada por Villeneuve uma maravilha que lembra o que Hitchcock em tempos fez com uma bomba escondida na pasta de um rapaz. Sabemos há muito que algo violento vai ocorrer na passagem pela fronteira, sendo essa informação explicitamente atirada à audiência, a construção cénica aponta inexoravelmente para o conflito que se despoleta, mas no entanto há algo de fulgurante em toda a experiência da sequência. Tal como na maior parte do filme, aqui a violência é repentina, expectável e intensa, sendo mais aterradora pela sua fugaz banalidade que pela glorificação acentuada que outros realizadores menores tentariam nela explorar.

 Sicario – Infiltrado funciona como uma das armas que tanto aparecem ao longo da sua narrativa. Todos os seus componentes estão precisamente criados e calibrados para uma violenta funcionalidade final, sendo que nada é desperdiçado ou erroneamente concebido. Por detrás de toda a sua perfeição estrutural, interpretativa e formal está ainda um dos mais formidáveis e desafiadores textos sobre a guerra contra a droga no México e nos EUA, renunciando a simples dicotomias entre o bem e o mal ou a glorificações repugnantes de desumanidade e amoralismos. Não é um filme fácil de ver ou particularmente agradável de experienciar mas é, sem dúvida, uma das mais importantes obras a sair de Hollywood neste ano cinematográfico.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

PAN (2015) de Joe Wright

Assim termina a minha retrospetiva sobre a obra de Joe Wright com a sua obra mais recente, o detestável Pan: Viagem à Terra do Nunca.


 Depois de cerca de uma semana a ver filmes de Joe Wright e a apreciar os seus esforços cinematográficos não poderia ter havido pior final que a sua última, e pior, obra, Pan: Viagem à Terra do Nunca. O filme parece ser como que uma coleção de alguns dos piores impulsos na Hollywood contemporânea como a moda das histórias de origem e dos contos de fada tornadas histórias supostamente complexas e cheias de grosseiro pseudo realismo. Até a malfadada narrativa do Escolhido está aqui presente na figura de Peter Pan (Levi Miller), que longe de ter a origem deliciosamente absurda e simplisticamente melancólica que James Barrie inventou, é aqui o filho de uma guerreira (Amanda Seyfried) e de um príncipe das fadas, que uma profecia o destina a ser o salvador da mítica Terra do Nunca.

 Este filme padece de um dos piores textos do ano, um pesadelo de fórmulas imbecis e estrutura incompetente, e nem alguns rasgos criativos de Wright conseguem atenuar o espetáculo de estupidez cinematográfica do filme. O estilo do realizador está imensamente atenuado neste filme, talvez devido à magnitude do projeto ou a interferências dos estúdios. Não se encontrando aqui nenhum dos movimentos orgiásticos que se espalham pela sua filmografia, a steadycam característica de Wright aparentemente esquecida, sendo que nem no design parece existir a marca romântica e forçosamente artificial do cinema do autor inglês, nem mesmo a velocidade rítmica que tem sido tão impecavelmente criada em filmes como Expiação, Hanna e Anna Karenina. Eu diria mesmo que o filme apenas mostra alguma possibilidade de se elevar acima da monstruosidade do seu inepto texto quando Wright mais se consegue deixar levar pelo absurdismo cinemático sugerido pela obra, como quando a banda-sonora é invadida por covers dos Nirvana e dos Ramones, ou Peter brinca com Saturno como se o planeta fosse um brinquedo ou mesmo quando ao invés de mostrar sangue e cadáveres, a morte dos índios é mostrada através de explosões de pó colorido.

 Estes momentos de delicioso e criativo absurdo estão, no entanto, em desconexão quase completa com as intenções textuais e sua tentativa de acrescentar alguma complexidade pseudo realista na história de Peter Pan. O pó de fada é um cristal capaz de conceder imortalidade e de ser escavado em minas, chama-se Pixum, a habilidade de Peter voar advém da sua descendência de fada e da profecia que o aponta como salvador, o próprio nome Pan necessita de uma explicação convoluta. O problema com todas estas explicações e forçosos momentos de pseudo realismo, é que faz com que uma audiência comece a exigir uma certa lógica e racionalidade no resto do filme. Pan está cheio de momentos de ilógica narrativa como o modo como o vilão, Capitão Barba Negra (Hugh Jackman), se queixa no início da ameaça destrutiva dos índios, mas é capaz de os destruir facilmente quando está à procura de Peter, ou o facto de nunca ser explicado ou sugerido como é que os navios piratas voam, apesar de todos olharem um rapaz a flutuar no ar como o maior dos milagres. O próprio facto da história ter sido transportada para a 2ª Guerra Mundial me causa transtorno, especialmente porque parece ter sido uma escolha singularmente motivada pelo desejo de ter uma batalha aérea sob os céus londrinos com aviões a dispararem contra um navio voador.

 E depois há o modo como filme se inicia, prometendo uma narrativa que mostre a origem da animosidade entre Pan e Hook (Garrett Hedlund). Para além da história de origem das figuras, há aqui uma promessa de uma narrativa de amigos tornados inimigos, acabando o filme, no entanto, com os dois em perfeita amizade. Mesmo na sua estrutura e narrativa inventada sobre o cadáver dos textos originais sobre Peter Pan, o filme parece gozar com a audiência, estando sempre a mostrar elementos como o gancho, o crocodilo ou o navio, mas nunca explorando o modo como Hook passou de herói relutante a vilão icónico. Não que eu deseje uma sequela. O mundo não necessita de tal calamidade cinematográfica.

 Mas não é só o insultuosamente incompetente texto ou a realização desinspirada que mostram uma falta de equilíbrio ou visão, estando todos os elementos do filme sob a mesma pátina de confusa incompetência. Dos atores, eu diria que apenas Hugh Jackman consegue alcançar algo vagamente positivo, encontrando uma certo equilíbrio entre a estilização histriónica e uma ameaça vilanesca. Hedlund, por outro lado, é um perfeito desastre de caracterização cómica, sem nenhum charme capaz de distrair do seu ridículo sotaque ou maneirismos claramente forçados. Rooney Mara como Tiger Lily, longe de justificar toda a controvérsia à volta do seu casting, é simplesmente banal e aborrecida. Joe Wright já mostrou no passado a sua capacidade para trabalhar com atores jovens mas nem ele consegue retirara algo que se aproveite do trabalho entediante e pouco convincente de Levi Miller no papel titular.

 O próprio design está preso numa esquizofrenia incompetente, misturando uma opulência desenfreada e fantasiosa com escolhas bizarras e estúpidas. A cenografia é ocasionalmente bela e inspiradora de fantasia infantil, mas depois aparece com visões pontuadas por um realismo desnecessário como a estrutura envelhecida das minas. E nem quero gastar muito latim nos cenários da selva e sua clara falsidade, sem qualquer estilização atraente. Talvez o que mais me destroçou tenha mesmo sido o desenho de figurinos de Jacqueline Durran, que na ridícula e excessiva figura do Barba Negra tem o maior desastre de toda a sua filmografia. Apenas alguns dos figurinos dos índios me capturaram a atenção num modo positivo, encontrando uma espécie de multi referencialidade colorida que evita prender-se demasiado a qualquer etnia real, especialmente fugindo à imagética expectável dos nativos americanos.

 Em relação aos outros aspetos do filme há pouco a acrescentar. Os efeitos visuais são eficazes se demasiado presentes, sendo especialmente formidáveis no clima do filme num gigantesco ambiente coberto de cristais. A música de John Powell é energética e agradável sem nunca chegar ao génio de romantismo dinâmico de Dario Marianelli e seus trabalhos com Wright. A montagem e o som, por outro lado, tendem a cair nas mesmas escolhas e ritmos erráticos e aborrecidos que infetam todo o filme.

 Em resumo este é o pior filme de Wright e o melhor que um fã do realizador tem a fazer é tentar esquecer a sua existência. Pan: Viagem à Terra do Nunca é uma tempestade de estupidez, de incompetência e de más escolhas, sendo completamente dispensável e piedosamente esquecível.