domingo, 18 de outubro de 2015

ANNA KARENINA (2012) de Joe Wright

 A versão de Joe Wright de Anna Kareina é uma orgia de exuberância e teatralidade, e encerra temporariamente esta minha retrospetiva sobre o realizador. Esta semana deverei ir ver Pan, e ai poderei finalmente encerrar esta exploração da filmografia deste autor inglês.



 Em Anna Karenina, o quinto filme de Joe Wright, temos o que é provavelmente o mais divisivo filme do realizador. Mas a disparidade de opiniões não devém certamente de banalidade ou falta de ambição, pois este é um filme que inexoravelmente explode em ambição criativa, propondo uma corajosa visão de um dos clássicos da literatura ocidental que mais tem sido adaptado para os cinemas ao longo da história do meio. O esqueleto da obra-prima de Leo Tolstoi ainda se encontra na adaptação de Wright, escrita por Tom Stoppard, mas o que aqui temos é uma interpretação do autor sobre o material textual que desafia o tipo de adaptação passiva que estamos habituados a ver no panorama do cinema contemporâneo. Concordo completamente com a visão de Wright sobre o texto de Tolstoi? Não. É o filme uma prova da hubris de um realizador enlouquecido pela sua criatividade formal? Talvez. É Anna Karenina um dos mais impressionantes e delirantes espetáculos cinemáticos que tenho tido o prazer de ver nos últimos anos? Definitivamente sim.

 O filme segue o enredo básico da sua origem literária, dando uma enorme atenção à narrativa de Levin (Domnhall Gleeson), uma figura quase autobiográfica para Tolstói. Penso que mais nenhuma adaptação na língua inglesa deu tanta relevância a esta narrativa paralela à da protagonista nominal da obra, aqui interpretada por Keira Knightley. Estruturalmente isto é extremamente arriscado e não paga grandes dividendos, sendo que toda a energia ebuliente da história de Anna vai morrer na maioria das cenas de Levin, nomeadamente depois de abandonar o teatro do filme.

 Quando falo de teatro, não estou a ser poético ou metafórico pois o filme passa-se maioritariamente no interior de um teatro, onde todo o espaço é gloriosamente aproveitado e utilizado como um mundo de estratificações codificadas. O desenho de cenografia de Sarah Greenwood é uma maravilha de proporções monumentais, usando técnicas classicamente teatrais na construção do ambiente que está num constante estado de transição. Em séculos passados, grande parte do prazer do teatro provinha da sua opulência e na magia conjurada pelos cenários em mudança, sendo que aqui Wright e Greenwood parecem negar na ideia da transição cenográfica e aplicá-la de um modo ensandecido e glorioso. Tal como os atores se movimentam numa constante coreografia balética, os cenários também o fazem e com eles a câmara de Seamus McGarvey, cujos movimentos são tão gloriosos como os mais ambiciosos planos de Expiação, mas com uma complexidade caótica acrescentada. Como um espetáculo de pura beleza e técnica cenográfica, é difícil encontrar melhor filme que este.

 Mas se o cenário se baseia em volta do teatro do século XIX, o desenho dos figurinos de Jacqueline Durran inspira-se numa base bastante distinta. A sociedade russa dissecada por Tolstoi na sua obra, era obcecada com França, sendo que a aristocracia falaria mais francês que russo, e isso é espelhado do modo mais excessivo imaginável nos figurinos que de subtil nada têm. Numa mistura da moda da década de 70 do século XX com a moda francesa dos anos 50 do século XX, Anna Karenina apresenta um elenco vestido com uma dos mais gloriosos guarda-roupas dos últimos anos, com um nível de opulência e elegância que, para alguém com o meu tipo de interesses, é simplesmente extasiante. Knightley, em particular, é uma Anna vestida com a elegância francesa da Dior aquando do New Look, coberta de joias da Chanel, com o cabelo em constante turbilhão de sedutores caracóis e uma emoção que, apesar de manienta e teatral como todo o filme, pulsa de uma intensidade por vezes aterradora.

  A acrescentar a este glorioso conjunto de cenografia, fotografia, figurinos, caracterização e movimento coreografado temos uma sonoridade luxuriante. A banda-sonora de Dario Marianelli é uma louca orgia de sons tipicamente russos com o seu romantismo usual. O ritmo estabelecido pela música é essencial para a velocidade precisa que o filme impõe à narrativa de Tolstoi, e aí também os efeitos sonoros, muitas vezes exagerados e imensamente expressivos, são cruciais. A glória máxima de toda esta construção formal nunca é melhor experienciado que em sequências como o baile em que Anna dança com Vronsky (Aaron Taylor-Johnson), seu amante e responsável pelo despoletar da sua espiral cataclísmica, pela primeira vez. Não é uma sequência subtil (tal palavra não tem lugar neste filme) mas é apaixonante, seguindo Anna e seu futuro amante numa dança que mistura uma valsa clássica com movimentos declarativamente contemporâneos e alienantes. À sua volta, os restantes pares apenas se começam a movimentar depois do par principal por eles passar. A câmara, como que embriagada pela visão dos dois futuros amantes, vai-se aproximando deles os dois, acabando por subir com Knightley quando o seu par a eleva no ar. Quando com ela descemos e nos afastamos, o casal está sozinho no espaço. A luz muda e eles dançam num foco luminoso por entre a escuridão, num momento reminiscente de dança semelhante em Orgulho e Preconceito, não fosse que aqui o estilo é elevado a um nível quase chocante no modo como é desavergonhadamente vistoso e apaixonado pela sua própria beleza.

 Esse tipo de paixão, explodindo em excesso cinemático é bastante comum em todo o filme, por vezes resultando em cenas menos opulentas mas não por isso menos prazerosas. Os momentos de sexo entre Anna e Vronsky são de particular realce e contêm em si a melhor utilização que o filme tem para Taylor-Johnson, cuja atraente superfície é sua única salvação. Ele é dos piores e mais desinteressantes Vronskys já capturados por uma câmara, se bem que como adereço desnudo Wright consegue nele encontrar algo que se aproveite. O resto do elenco, em contraste, é bastante sólido, a maioria dos atores, percebendo as necessidades estilísticas do filme e nunca impondo nenhum naturalismo excessivo e indesejado nos procedimentos. Já elogiei o trabalho estudadamente artificial mas emocionalmente explosivo de Knightley, mas falta-me referir o trabalho absolutamente perfeito de Jude Law no papel de Karenin, o marido de Anna. Esse papel já foi tantas vezes vilificado ao longo da história do cinema que a delicada e entristecida presença de Law é uma revelação estonteante. Há uma palpável benevolência e valor no seu Karenin, fazendo de suas contidas indignações e rasgos de crueldade momentos não de malevolência simplista, mas de dolorosa e rígida humanidade.

 Taylor-Johnson não é, contudo, o único problema que eu tenho com o filme. Voltando ao texto do filme, tenho que reforçar quão desastrosa é a decisão de investir tanto tempo e relevância à narrativa de Levin, sendo o que resulta em literatura não necessariamente eficaz numa estrutura cinemática. Também as constantes utilizações de imagética de comboios, se bem que presente na prosa de Tolstoi, parece-me forçosa de mais e um pouco descoordenada com o resto da dança cinemática orquestrada pelo realizador, a não ser numa sequência específica, onde num reflexo o comboio serve como que pontuação expressiva no ritmo ensandecido do momento. A escolha de, ocasionalmente, sair do edifício teatral é outro problema de Anna Karenina. Em tais cenas, Wright parece começar a perder-se por entre a tempestade de ideias formais que aqui desenvolve. O plano que encerra o filme e conjuga as duas realidades presentes no filme, o exterior “real” e o artifício teatral, é de particular confusão ideológica.

 Tudo isto resulta em algo pelo qual muitos criticaram o filme, que é o modo como o teatro parece ser um modo de Wright criticar a sociedade russa mas é, ao mesmo tempo, o mais excitante aspeto do filme. Não sou um particular apoiante de tal crítica pois penso que existe uma precisa modulação do ambiente teatral que, pelo fim do filme, se tornou claustrofóbico e opressivo nos seus espaços fechados e desenho sufocante, onde a própria violência cromática das paredes azuis do cenário de um hotel é suficiente para causar desconforto na audiência. Para além disso, algo pode ser belo, prazeroso e delirante, e ao mesmo tempo ser destrutivo, cruel e injusto, não fosse esta a história de uma mulher que, para além de ser destruída por uma sociedade, também é vítima do poder destrutivo das suas paixões e do amor em si.

  Como uma adaptação fiel do texto, ideias e intensões de Tolstoi, o filme parece-me ser uma catástrofe apoplética, mas nunca me parece estar a propor-se a tal julgamento. O que aqui temos é mais interpretação que adaptação e penso que por isso mesmo é de um incalculável valor. Há uma coragem na abordagem e ousadia de Wright que, apesar de por vezes resultar em alguns aspetos menos positivos, tem como final resultado a mais fascinante versão de Anna Karenina que alguma vez vi em cinema. Mesmo quem deteste as ideias de Wright ou o artifício maniento aplicado a tudo o que a vista alcança, penso ser inegável que como básica experiência sensorial o filme é um triunfo que convida as suas audiências a simplesmente se deixarem embriagar pela sua assombrosa beleza.

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