quarta-feira, 14 de outubro de 2015

AS MIL E UMA NOITES, VOLUME 3: O ENCANTADO (2015) de Miguel Gomes



 Com este terceiro volume, encerra-se a trilogia épica de Miguel Gomes sobre a austeridade em Portugal. Nos textos que anteriormente escrevi sobre os dois volumes iniciais, já falei sobre o método que o realizador utilizou na construção desta sua obra, pelo que não me parece necessária uma repetida explicação. A estrutura deste volume, no entanto, difere um pouco da dos outros dois volumes, sendo que anteriormente cada volume continha em si três contos narrados por Xerazade (Crista Alfaiate), tendo o primeiro uma espécie de introdução tanto à estrutura do filme como a toda a experimentação aqui desenvolvida. Em O Encantado, não temos os usuais três episódios, mas sim um enorme episódio sobre passarinheiros que criam tentilhões e com eles entram em competições, inserindo-se pelo meio deste conto, um minúsculo episódio sobre uma imigrante chinesa chamada floresta em chamas. O filme também conta com a mais desenvolvida porção da trilogia sobre Xerazade, a contadora de histórias que sempre é uma constante nestes filmes, assemelhando-se quase à introdução que abre o primeiro volume, mas num registo imensamente mais fantasioso.

  A observação feita à comunidade dos passarinheiros irá possivelmente testar a paciência de muitos cinéfilos, aqui aparecendo o mais direto e observacional de todos os episódios, assim como o mais longo. Há uma densidade temática e informacional de impressionante monumentalidade nas histórias de vida dos passarinheiros, aqui capturados num retrato de uma comunidade em que, apesar do registo maioritariamente realista, temos a usual mistura de realidade e fantasia que tanto têm caracterizado toda a construção do épico de Gomes.

 Neste estranho exercício de retrato e observação intimista, o realizador captura algo de curiosamente tocante e sério sem deixar de ser delirantemente excêntrico. A montagem nunca foi nesta trilogia mais precisa que neste episódio, aqui entrecortando variadas histórias individuais numa imensa tapeçaria de vidas humanas, em que se entrelaça o peso da História nacional e comunitária assim como uma fúria social acídica e gritante na sua intensidade. Quando, por entre a interminável cacofonia do cantar de pássaros que, aparentemente, cantam tanto que morrem de esforço melódico, Gomes insere o cantar do hino nacional por manifestantes durante o 25 de Abril, há algo de indescritivelmente avassalador que emerge. Na miséria e sofrimento, as pessoas viram-se para a religião, para o desporto, para algo que ocupe o vazio do desespero, viram-se para os tentilhões, e aí se consome a sua vida. Há algo de simples neste episódio quando comparado com as criações exuberantes d’“As Lágrimas da Juíza” ou d’“Os Homens de Pau Feito”, e precisamente a partir dessa simplicidade se encontra o final perfeito para tão complexa criação como este filme. Um homem solitário que, depois de libertar uma criatura sobrenatural de uma rede e recusar compensação, anda pela paisagem natural, uma dedicação a uma filha que só no futuro poderá apreciar a criação de um pai, e assim termina o filme.

  De certo modo, este volume revela-se como o mais melancólico dos três, não havendo grande quantidade do humor irreverente que tanto marca os seus antecessores. E a melancolia é tão verificável no episódio dos passarinheiros que fecha a trilogia como na introdução por meio da história de Xerazade. Passamos um dia com a rainha que vai narrando os seus contos como método de se manter viva, e acompanhamo-la no encontro de várias figuras tão fantasiosas e extravagantes como alegóricas, sendo um diálogo numa roda gigante uma das mais belas sequências de toda a trilogia, tanto pelo seu movimento hipnotizante que lembra a cena no casino no anterior filme de Gomes, como pelas suas entristecidas palavras em que o fatalismo e o simbolismo da figura de Xerazade aparecem na sua mais bela expressão.

   Assim se encerram as minhas divagações acerca desta obra de Gomes, que será o inquestionável evento cinematográfico do ano. Um épico tão ambicioso na sua crítica e observação como na sua forma, uma orgiástica explosão de criatividade e experimentação como poucas vezes se tem registado nos cinemas internacionais dos últimos anos e um dos mais belos exemplos da fúria do cinema político, aqui tornado magnífica epopeia cinemática. Um filme imperdível e indispensável, cujo único defeito que tenho a apontar é o facto de terminar e assim nos privar de mais horas das suas fantasias e absurdos retratos de uma realidade tão dolorosa de viver como é extasiante de observar nesta trilogia.


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