sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Oscar Hopefuls, Kate Winslet em STEVE JOBS

Kate Winslet Steve Jobs

 Depois de ganhar o Óscar de Melhor Atriz por The Reader, Kate Winslet parece ter passado de espírito livre e energético do cinema de língua inglesa para uma perpétua figura de entediante respeitabilidade. O seu trabalho em Mildred Pierce de Todd Haynes foi justamente galardoado com uma vasta coleção de honras, mas, para muitos dos seus fãs, estes últimos anos têm sido uma prova de fogo para quem antes era devoto admirador do trabalho da atriz.

 Essa fase de aborrecido e inerte prestígio parece estar a acabar com 2015 a ser um ano de destaque na filmografia da atriz. Winslet não só participa no popular, mas horrendo, Insurgent, como também volta a protagonizar uma comédia idiossincrática em The Dressmaker e parece estar perfeitamente posicionada para arrecadar mais uma nomeação aos Óscares pelo seu trabalho em Steve Jobs. É exatamente sobre o seu trabalho nesse último filme que eu gostaria de falar.

 Quem tiver lido a minha crítica do filme biográfico escrito por Aaron Sorkin, certamente já saberá que eu não tive a mais calorosa reação para com Steve Jobs. Apesar disso, admito que, como um exercício de atores, o filme é um sólido triunfo, e que, entre os variados intérpretes, é o trabalho de Kate Winslet aquele que mais se destaca pela positiva.

 A atriz inglesa interpreta Joanna Hoffman, fiel companheira profissional de Steve Jobs, encarregue do marketing e de origens polacas e arménias. Essa herança europeia é de particular destaque no trabalho de Winslet, sendo que o sotaque de Hoffman é o grande ponto fraco na totalidade da interpretação. Ao longo dos três atos do filme, a dicção de Winslet vai-se alterando de um modo desajeitado. Num momento inicial do filme, quando a filha de Steve comenta o sotaque de Hoffman, a audiência é deixada na confusão completa, pois até aí Kate Winslet apenas insinuara uma normal maneira de falar à americana. Nos últimos dois atos do filme, especialmente no do meio, Winslet investe muito mais nesse suposto sotaque, criando algo que quase sugere a triste caricatura. É uma falha técnica que é facilmente ignorada, mas quando se revela é imensamente distrativa.

Ignorando esse pormenor, Winslet é uma presença essencial ao moderado sucesso do filme, sendo a melhor parceira de cena de Fassbender e funcionando quase como um veículo para Sorkin comunicar e espicaçar a sua versão de Jobs durante a narrativa do Steve Jobs. Há que não ter ilusões de falsa complexidade, pois, como está escrita, Hoffman é uma personagem mais mecanicamente funcional que humana e é o formidável trabalho da atriz que a torna na mais pulsante presença em toda a construção cinematográfica de Steve Jobs.

Kate Winslet Steve Jobs

Quer seja a apressadamente discutir com Fassbender ao longo de corredores ou a coordenar o espetáculo quase teatral que é a apresentação de um novo produto ao público, Winslet é uma explosão de eficiência e energia humana. Apesar dos problemas textuais e das limitações temporais, quando chegamos ao último ato, a Joanna de Winslet parece estar alterada, o peso dos anos reflete-se no seu modo de lidar com Jobs, no seu discurso e até no seu olhar.

De entre a totalidade do seu trabalho eu gostaria de mencionar dois momentos de espetacular sagacidade na interpretação de Winslet. O primeiro ocorre no segundo ato, quando Jobs revela o seu plano para forçar a Apple a o voltar a contratar. Aqui, há algo de majestoso no modo como Hoffman começa como uma irada inquisidora mas depressa começa a mostrar admiração no seu rosto. O sorriso matreiro de Winslet revela algo de fascinante sobre Hoffman, mostrando como a personagem é mais parecida com Jobs do que talvez queira admitir e de como está longe de ser a santa que as mais simplistas escolhas de Sorkin parecem sugerir.

O segundo momento passa-se na grande confrontação do terceiro ato, de onde deverá vir o Oscar clip da atriz. Quando Hoffman enfurecida começa a atirar papéis para o chão, há breves sombras de incerteza na sua postura, como se, por momentos, Joanna tivesse decidido, como uma atriz, reforçar o dramatismo das suas afirmações, mas depois começasse a duvidar da sua escolha interpretativa mesmo enquanto continua a declamar as suas falas.

Num filme que decorre em palcos e bastidores, Winslet torna Joanan em atriz, encenadora, produtora, assistente e contrarregra dos acontecimentos à sua volta. Steve Jobs pode ser a estrela deste filme, mas sem a presença da Joanna Hoffman de Winslet todo o edifício cinematográfico cairia por terra. Esta não será das mais reveladoras interpretações de Winslet mas é das mais inteligentes e das mais necessárias dentro do seu filme.

Kate Winslet Steve Jobs

A nomeação para Melhor Atriz Secundária parece estar, de momento, garantida e, mesmo que eu não a inclua na minha lista no final do ano, penso que será uma apropriada indicação ao Óscar, assim como uma justa celebração do regresso de Kate Winslet ao tipo de energético trabalho que tanto tem enfeitiçado os seus mais devotos fãs.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

STEVE JOBS (2015) de Danny Boyle

Steve Jobs Michael Fassbender

 É difícil refletir sobre Steve Jobs, o mais recente filme de Danny Boyle, sem irremediavelmente cair numa comparação com The Social Network. Ambos os filmes partilham o mesmo argumentista e, ao contrário do filme de David Fincher, Steve Jobs é uma obra totalmente dependente da voz autoral de Aaron Sorkin. E é nesse completo domínio que Sorkin tem sobre o filme que esta obra se depara com os seus mais colossais problemas.

  No entanto, há que elogiar Aaron Sorkin pela generalidade do seu guião. A estrutura de Steve Jobs é uma obra de ostentosa genialidade, construindo um retrato do lendário fundador da Apple em volta de três longas sequências, todas elas focadas nos minutos que antecedem a apresentação pública de um novo produto. Primeiro o Macintosh em 1984, depois o Next em 1988, aquando da separação de Jobs da Apple, e finalmente o do iMac em 1999. Ao longo deste drama de bastidores, duas correntes narrativas parecem desenhar os contornos da visão de Sorkin sobre Jobs. A arrogância megalómana do protagonista em relação aos vários colaboradores que, de algum modo, o menosprezam ou duvidam da sua visão, e a relação de Jobs com a sua filha Lisa.

  A acompanhar esta brilhante estrutura, cuja teatralidade é apenas exacerbada pela constante presença de palcos e bastidores, está uma coleção das mais reconhecíveis características da obra de Sorkin enquanto argumentista de cinema. Longos diálogos floreados, cheios de humor inteligente, e irritantemente cientes da sua própria espetacularidade; discursos feitos pelo protagonista masculino que demonstram e defendem a sua superioridade; e um toque de perversivo conservadorismo moral que depressa cai em melodrama sentimentalista. Estas características não são necessariamente defeitos, mas sem um realizador que esteja disposto a moldar e catalisar o texto de Sorkin, Steve Jobs acaba por se tornar um exemplo perfeito das maiores problemáticas no estilo usual dos textos deste célebre autor.

  A narrativa do filme propõe-se a retratar e a criticar a lendária figura de Steve Jobs, concretizando uma visão que tanto disseca a humanidade imperfeita do homem como a sua genialidade, mas Steve Jobs não tem uma ponta da sofisticação e complexidade que The Social Network conseguiu alcançar. Como um filme, Steve Jobs comete o mesmo erro fulcral do seu protagonista, que é o de veementemente acreditar na sua grandiosidade e importância, negando qualquer outro tipo de visão contraditória. Não estou a dizer que Jobs não foi um génio, mas o que vemos neste filme, apesar de uma estrutura invulgar, é o mesmo tipo de retrato superficial e vazio que tantos outros filmes biográficos apresentam. Sorkin nunca desvia o seu retrato de uma visão limitada do arquétipo do génio arrogante e incompreendido, forçando a sentimentalidade da narrativa paternal como modo de humanizar, como que por uma formula, a sua figura central. Sorkin cria mais uma narrativa do anti-herói popular na ficção contemporânea, e imensamente vazia, apesar de ilusoriamente sugerir alguma complexidade.

 Apesar do que tenho afirmado, Danny Boyle tenta acrescentar algo de cinemático ao texto de Sorkin, conseguindo nunca perder a energia ao mesmo tempo que demonstra algumas ideias formais com interesse. O uso da música e da fotografia para diferenciar os três atos da narrativa é de particular genialidade, mas, como no resto do filme, apenas a superfície consegue alcançar algo de genuinamente louvável. Flashbacks, montagens de transição e ridículas projeções, demonstram a usual indisciplina do realizador, que nunca parece muito interessado em juntar-se a Sorkin na dissecação das suas personagens, estando contente com a simples ilustração. Para ser mais claro, volto a lembrar The Social Network, em que a frieza, distância e sofisticação de David Fincher mitigaram os maiores problemas do estilo de Sorkin. Fincher evitou o melodrama e chegou à melancolia de ares subtilmente trágicos, pegou no diálogo e mecanizou-o, retirando a teatralidade inerente nos discursos grandiosos, e acrescentou ainda mais complexidade à narrativa ao abordar todos os acontecimentos com uma surpreendente frieza, que contrapunha as noções de importância pessoal das suas arrogantes personagens.

 Mas isto não é um texto de celebração do trabalho de David Fincher, mas sim uma análise de Steve Jobs e, por muito que o filme seja problemático como uma narrativa, ou como um estudo de personagem, na condição de exercício para os seus atores, Steve Jobs é um triunfo. Kate Winslet é o claro elo mais forte do elenco, apesar de um inconsistente sotaque, mas todos estão de parabéns, sendo que Seth Rogen e Jeff Daniels não eram tão impressionantes há anos. A única interpretação que provoca algum desapontamento é, curiosamente, a de Michael Fassbender. A sua presença é de um carisma supremo e os seus diálogos de uma precisão admirável, não fosse ele um dos melhores atores do cinema atual, mas, no final, a sua interpretação é tão prisioneira da superficialidade do guião como o resto do filme. Jobs nunca me pareceu ser um ser humano, ou uma personagem complexa, mas sim um arquétipo sem subtilezas, sendo que nem mesmo o ator consegue esconder quão forçados no filme são os últimos momentos entre Jobs e sua filha.

  Numa cena, Steve Jobs explica a Lisa o significado da palavra anomalia e eu recordei-me de outro filme deste ano em que um protagonista semelhante teve de explicar o mesmo a outra mulher chamada Lisa. Tal como em Anomalisa, a incapacidade do protagonista se relacionar normalmente com os seres humanos à sua volta é um foco do filme, e tal como nessa obra de Charlie Kaufman, Steve Jobs peca pelo modo como cai na arrogância e noção se superioridade da sua figura central. Ambos os filmes almejam a uma complexidade humana que nunca conseguem alcançar, ambos se revelando como primorosos exercícios técnicos, cheios de aspetos louváveis e performances pulsantes, mas onde por detrás da respeitável e grandiosa superfície apenas existe um triste vazio de ideias e nuance.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

LEFFEST'15, Post Mortem


 Apesar da inatividade deste blog nas últimas semanas, consegui ir escrevendo a cobertura do LEFFEST'15, apenas não o fiz totalmente neste site. Se desejarem ler as minhas opiniões sobre grande parte dos títulos a serem exibidos na edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival, deixo-vos aqui links para alguns dos meus artigos na Magazine HD, assim como para o que já aqui tinha publicado. No total, vi 26 filmes, sendo que ainda não escrevi sobre alguns deles, nomeadamente aqueles que vi como parte das Homenagens e Retrospetivas, mas talvez ainda o consiga fazer este mês.



11 Minut de Jerzy Skolimowski
"11 Minut, é um impressionante feito técnico, mas, tirando os seus sons e visuais, tem pouco para oferecer que não seja um risível e forçado dramatismo."


45 Years de Andrew Haigh
" (...)É especialmente nesses silêncios e subtilezas que existe o génio e humanidade dolorosa de 45 Years, que, nos seus derradeiros momentos, nos oferece um dos finais mais emocionalmente esmagadores no cinema de 2015."

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ROOM (2015) de Lenny Abrahamson


 As miraculosas interpretações de Brie Larson e Jacob Tremblay fazem de Room um dos filmes mais comoventes de 2015, assim como um dos mais indispensáveis para quem esteja interessado na corrida aos Óscares.




 Room, uma adaptação de um romance de Emma Donoghue dirigida por Lenny Abrahamson, relata a história de uma mãe e filho que, depois de anos aprisionados num quarto, são confrontados com a sua liberdade, que está longe de ser um idílico e romantizado desfecho para o seu tormento. Toda a narrativa se desenrola a partir da perspetiva de Jack (Jacob Tremblay), uma criança de 5 anos que, no início do filme, nunca viu nada do mundo que se estende para além da sua prisão, sendo que inicialmente nem consegue acreditar que tal exterior possa existir. Longe de limitar prejudicialmente o impacto ou complexidade do filme, esta insistência na perspetiva infantil confere à obra uma dimensão trágica onde, mesmo assim, ainda há espaço para alguma esperança e luminosa humanidade.

 Joy (Brie Larson) é a mais fascinante presença em Room, sendo vista unicamente a partir dos olhos de seu filho que muito não conseguem compreender devido à sua ingénua inocência. Isto torna a observação da protagonista maternal num jogo de perceção com a audiência que, mais do que o seu jovem protagonista, consegue ir-se apercebendo de quão estilhaçada pelo seu trauma está a personagem de Brie Larson. Um voz-off constante de Jack vai contribuindo para este gentil retrato dos dois protagonistas, caindo, por vezes, num sentimentalismo desnecessariamente evidenciado tanto pelo texto como pela irritante e melodramática banda-sonora.

 É o seu elenco que permite a Room ser uma obra de glorioso sentimentalismo que, na sua generalidade, consegue evitar o melodrama forçoso sugerido por alguns dos seus elementos. Trembley, com apenas oito anos, cria um dos mais avassaladores retratos do ano, e Larson oferece aqui o melhor esforço da sua jovem, mas ilustre, carreira, sombreando a sua interpretação com momentos de abrasiva frustração, fúria e desespero. O restante elenco é igualmente formidável apesar dos seus limitados papéis, com especial menção para Joan Allen como a mãe de Joy, que em breves momentos consegue estabelecer uma presença tão complicada e multifacetada como a de Larson.

 Infelizmente nem todo o filme prima pela sua complexidade e surpreendente eficácia, sendo que a, já mencionada, banda-sonora é um imparável desastre. Em vários momentos, a música apenas acaba por revelar quão emocionalmente manipulador todo o exercício cinematográfico está a ser, traindo, de certo modo, os esforços do seu elenco e mesmo do ocasionalmente problemático texto. O último plano do filme, por exemplo, perde todo o seu poder emocional devido a um acompanhamento musical demasiado insistente na manipulação chorosa das emoções da sua audiência, quando a simples imagem dos dois protagonistas a se afastarem do quarto titular pela derradeira vez seria suficiente.

 Isto é tão culpa de Stephen Rennicks, o compositor do filme, como de Abrahamson que, especialmente no que diz respeito aos sons, tem uma tendência para o convencionalismo simplista que apenas prejudica a experiência total do filme. No entanto, há que admitir que o realizador tem uma surpreendente capacidade de moldar o espaço com a sua câmara, nunca permitindo que a primeira metade do filme desabe num registo teatral, apesar do seu confinado espaço. A sequência de fuga também revela um bom domínio de Abrahamson no que diz respeito à criação de tensão e adrenalina, não esquecendo o seu foco humano, não fosse Room essencialmente um espetacular exercício de atuação e perseverança humana.

 Room é o único filme norte-americano em competição no LEFFEST’15, e mesmo que não arrecade qualquer prémio na cerimónia de Encerramento do festival, o seu lugar na corrida aos Óscares parece estar cimentado. Brie Larson, em particular, tem vindo a revelar-se como a inicial favorita para o galardão de Melhor Atriz. No entanto, Trembley será tão merecedor de tais honras como a sua coprotagonista, sendo que o jovem ator oferece às suas audiências uma das mais formidáveis interpretações infantis das últimas décadas de cinema. O filme como um todo tem alguns problemas, há que dizer, mas é uma inegável experiência de emoções arrebatadoras, que consegue ser tocante mesmo quando a manipulação emocional é grosseiramente óbvia.


domingo, 8 de novembro de 2015

ANOMALISA (2015) de Charlie Kaufman e Duke Johnson

Já vamos no terceiro dia do LEFFEST ’15 mas acho que vale a pena relembrar o filme de abertura. Anomalisa é o primeiro filme de animação de Charlie Kaufman, sendo que Duke Johnson também assina a obra. Apesar de grandes reservas que tenho em relação ao filme, Anomalisa é uma das experiências essenciais deste ano.


 Durante os créditos finais de Anomalisa, a mais recente obra de Charlie Kaufman e o seu primeiro esforço no cinema de animação, chegamos a uma porção em que se listam os nomes dos vários contribuidores que, a partir do Kickstarter, financiaram o filme. Os nomes destes adoradores de Kaufman são de um imenso número, sendo irrevogavelmente mais numerosos que os nomes da própria equipa de produção do filme. Enquanto somos expostos a esta parede de texto, uma cacofonia de vozes assalta os nossos ouvidos. Todas as vozes são, contudo, do mesmo ator (Tom Noonan) no que é um dos marcos estilísticos do filme. Durante Anomalisa, Kaufman tece uma tragédia humana à volta da incapacidade de um homem se relacionar com o resto do mundo, que ele vê como uma multiplicidade infinita da mesma cara e voz. Muitas vezes, ao longo da história, várias pessoas proclamam o seu amor pelo protagonista e neste momento que referi dos créditos, há algo de inequivocamente inseparável entre o protagonista de Anomalisa e o próprio Kaufman. O autor, com o amor e adoração de uma imensidão de fãs criou aqui uma obra de insular indulgência, onde nos pede a pena lacrimosa e a simpatia, ao mesmo tempo que ignora o resto do mundo que não a sua individual psique e frustrações.

 Isto está longe de ser uma novidade no trabalho de Kaufman. Praticamente todos os filmes escritos por este autor têm como protagonista um homem bem-sucedido, branco, heterossexual e solitário que demonstra problemas em se relacionar com a realidade à sua volta. E, nesses filmes passados, nunca tive um problema com a limitada perspetiva da sua visão e das suas preocupações mas penso que isso se deveu maioritariamente a uma dose de humor, surrealismo e criatividade que fazem dos seus filmes obras tão fascinantes. Em Anomalisa a criatividade regista-se, nem que seja a um nível de simples técnica, o surrealismo marca presença, mas praticamente nada se vê do humor que tanto caracteriza o usual trabalho do autor. Em Sinédoque Nova Iorque, a obra-prima máxima da sua voz autoral, havia uma completa aceitação do ridículo e das limitações do seu protagonista, e era a partir desse lado mais sardónico e irónico que o filme encontrava a humanidade pulsante que tanto o caracterizou, como que emergindo do ridículo do indivíduo. Anomalisa tem pouco tempo para tais levezas, sendo um filme caracterizado por uma colossal sinceridade e seriedade, de tal forma que parece forçar a sua tragédia humana na audiência, ao invés de a deixar emergir do ridículo, do espetacular e do surreal.

 Com isto não quero afirmar que a sinceridade nunca resulta neste filme. De facto, Anomalisa obtém os seus mais gloriosos momentos durante uma prolongada sequência em que Michael Stone (David Thewlis), o protagonista, leva uma sua fã para o quarto de hotel em que habita por uma noite e acaba por dormir com ela. A fã chama-se Lisa e apresenta uma face e voz distintas da restante população. A sua voz é a de Jennifer Jason Leigh que nesta alma entristecida encontra um dos melhores papéis da sua carreira recente. Quando Kaufman e Duke Johnson, o co-realizador, observam estes dois humanos, uma mulher que não espera o reconhecimento, apreciação ou simpatia do mundo e um homem que não consegue evitar recusar tais simpatias à humanidade, há algo de mágico na intimidade conjurada. Aqui sim, a sinceridade e seriedade resulta, mas, infelizmente, o filme não é apenas uma curta-metragem sobre esta delicada sedução e consumação, mas sim uma prolongada experiência da hubris de um autor em aparente crise de meia-idade.

 Por muito que me seja difícil engolir a narrativa, a técnica demonstrada na execução deste filme é estrondosa. Utilizando impressões em 3D, Kaufman e Johnson constroem um mundo de figuras tão artificiais quanto humanas. Os corpos são realistas, assim como a expressão, mas as faces apresentam as marcas da união das várias componentes da marioneta, e as próprias proporções parecem, ocasionalmente, sugerir algo de irremediavelmente desumano nas pessoas que povoam o mundo de Anomalisa. E não é só a animação das figuras humanas a primar, sendo que os cenários, a música, o som e a belíssima fotografia também demonstram uma impressionante construção formal. No entanto, toda esta virtuosidade tem o deliberado efeito de provocar uma enorme alienação entre as audiências e o drama humano que Kaufman quer espremer do seu protagonista, pelo que longe do filme ser uma experiencia de comovente humanidade, há algo de controlado e frio exercício estilístico durante toda a experiência.

 Com tudo isto dito, tenho de admitir que, apesar dos seus numerosos defeitos e problemas, Anomalisa é uma das obras essenciais de 2015. Charlie Kaufman é uma voz imperdível no panorama do cinema contemporâneo, mesmo quando se mostra indulgente consigo mesmo e estranhamente sério, e com esta sua primeira obra de animação, o autor demonstra uma formidável nova possibilidade para o mundo da animação stop-motion.  Anomalisa está longe de ser dos melhores filmes de Kaufman mas, na sua delicada passagem central entre dois solitários humanos, há algo de efemeramente humano e intenso e de uma beleza rara e fugaz tanto na totalidade do filme como no cinema americano atual.

sábado, 7 de novembro de 2015

MIA MADRE (2015) de Nanni Moretti

 O LEFFEST ’15 teve o seu início ontem. Como filme de abertura em Lisboa, foi Anomalisa de Charlie Kaufman o filme selecionado, mas, numa sessão especial, foi primeiro exibido o novo filme de Nanni Moretti. Mia Madre já passou por Cannes, e outros festivais, tendo já arrecadado alguns galardões, entre eles o prémio do Júri Ecumérico de Cannes.


 Para um realizador que por duas vezes ganhou a honra máxima do festival de cinema mais importante do mundo, Nanni Moretti é, para mim, uma figura um tanto ou quanto estranha se não sobrevalorizada. Tenho sempre a expetativa que com um dos seus novos filmes eu vá perceber esta admiração generalizada que o mundo tem pelo seu trabalho, mas sempre me acontece o mesmo. Apesar de Mia Madre estar longe de ser o pior filme que já vi de Moretti, é, mesmo assim, mais um desapontamento para mim, que espero um dia conseguir compreender o resto da massa crítica que venera este autor italiano.

 O filme vai buscar a sua história a inspirações reais da vida do realizador, não fosse a protagonista do filme, Margherita (Margherita Buy), uma realizadora de cinema. Quando filmava Habemus Papam, Moretti foi confrontado com o definhar e morte da sua mãe, e aqui também Margherita se depara com o fim da sua matriarca aquando das difíceis filmagens de um novo filme. Acrescentamos a isto uma relação tempestuosa entre a realizadora e Barry Huggins (John Turturo), uma estrela de Hollywood envolvida neste novo filme, e uma boa dose de sonhos da protagonista e temos o esqueleto narrativo de Mia Madre.

 Muitos têm proclamado este filme como uma das obras mais comoventes do ano, e tenho de admitir que é difícil negar as emoções suscitadas pelo filme nos seus melhores momentos. Isto deve-se tanto a um guião de carácter extremamente pessoal, assim como a uma coleção de exímias interpretações, nomeadamente as de Margherita Buy e Giulia Lazzarini como a mãe da realizadora. Buy tem alguma tendência em cair nas mais melodramáticas tendências do texto, mas ao mesmo tempo mostra uma refrescante vulnerabilidade, para além de ser o único intérprete no filme que consegue pôr a funcionar o humor forçado de Moretti. Mas é Lazzarini a chave do filme, com um papel tão humano como simbólico a atriz é impressionante no modo como conjura uma visão de uma mulher inteligente e independente a progressivamente perder o controlo de seu corpo, mente e existência. As cenas entre as duas atrizes são as melhores do filme e graças ao seu trabalho, quando a perda final ocorre, é difícil não nos deixarmos levar pelo sofrimento que pulsa do ecrã.

 Infelizmente, o filme não é apenas um comovente, se simples, retrato do definhar de uma mulher e sua relação com seus filhos, sendo que Moretti interpreta o irmão de Margherita num gesto que parece indicar algo de expiação cinemática. O realizador, como me parece ser usual na sua filmografia, tenta injetar uma leveza humorística em contraste com a tragédia humana e, como tem sido usual no seu trabalho, a comédia é da mais forçada e irritante que se encontra no panorama do cinema de autor contemporâneo. Eu percebo que é suposto que Turturo seja insuportável como Huggins, mas há um exagero imensamente grotesco na sua presença que longe de expor um ator caprichoso, apenas nos revela um ator mal dirigido por um realizador à procura de um humor fácil e francamente estúpido. Mesmo os momentos cómicos que não giram à volta do deplorável trabalho de Turturo são, na sua maioria, intragáveis, corroendo mesmo os momentos mais íntimos e bem construídos da história familiar.

 Outro elemento que me deixa muitas dúvidas é o uso insistente de sonhos de Margherita, simplesmente porque nunca me convenço pelo estilo de Moretti. O realizador, apesar da sua fama de autor consagrado, tem uma abordagem estilística que, por vezes, mais se assemelha a um filme televisivo. Planos médios e close-ups predominam, cenas bem iluminadas e com ar de polida eficiência são a norma, e as composições são sempre o mais básico e desinteressante imaginável. Há algo nos filmes de Moretti que ultrapassa a mera austeridade, classicismo ou mesmo simplicidade cinemática, e que ameaça sempre sugerir uma certa displicência por parte do seu realizador.

 Apesar disso, quando Mia Madre funciona, nomeadamente nos seus momentos de maior sinceridade emocional, há algo de tocante na sua humanidade latente. Numa cena de jantar, a personagem de Moretti brinca que “a realizadora tem sempre razão”, o que, infelizmente, não poderia estar mais longe da verdade quando somos confrontados com Mia Madre. Neste filme a delicadeza emocional é fruto do trabalho do elenco e de um texto de Moretti que, ocasionalmente, consegue encontrar transcendência humana na sua simples sinceridade emocional.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

LEGEND (2015) de Brian Helgeland


 2015 não tem sido um ano particularmente bom para filmes sobre gangsters. Depois da desastrosa falta de criatividade ou energia de Black Mass, Lendas do Crime invade os cinemas com mais aborrecidos convencionalismos e uma história que, apesar de sugerir algo de substancial e interessante, apenas consegue ocasionalmente fugir ao seu geral tédio.

 O filme conta a história dos irmãos Kray, Ronnie e Reggie, um par de irmãos gémeos que se tornaram figuras lendárias do mundo do crime inglês durante o seu domínio de Londres na década de 60. Ao invés de se iniciar com a sua ascensão, o filme tem a mercê de nos poupar tais clichés narrativos e tem o seu início aquando do encontro de Reggie com aquela que viria a ser a sua mulher, Frances. É ela, aliás quem narra o filme em voz-off, indo desde as suas primeiras impressões do charmoso gangster até ao final declínio dos dois irmãos.

 A escolha de colocar Frances numa posição de destaque e protagonismo é algo de interessante e levemente subversivo, especialmente se contarmos com um toque de humor pós-moderno que se manifesta após o suicídio de uma das personagens. No entanto, a atriz que tem a responsabilidade de encarnar esta personagem é Emily Browning, uma das mais desinteressantes presenças no cinema britânica da última década e que nada faz no filme, senão apagar qualquer resquício de interesse e energia que pudesse existir nesta curiosa perspetiva feminina. Frances não é nenhuma Karen Hill, por muito que o desinspirado guião Brian Helgeland nela insista.

 Mas, há que dizer, Lendas do Crime é principalmente uma showcase inigualável para Tom Hardy, e o ator, ao contrário da generalidade do restante elenco, está bastante apto a injetar uma dose de monumental energia explosiva neste vagaroso exercício de clichés aborrecidos. A interpretar os dois gémeos, Hardy tem a oportunidade de desenvolver, quase que excessivamente, os dois principais aspetos que têm demarcado a sua persona como estrela em ascensão. Em Reggie, o mais calmo dos irmãos, o ator encontra o perfeito veículo para o seu charme maroto que tem deliciado espetadores desde que o ator começou a ganhar alguma relevância, encontrando momentos ocasionais em que a frustração e violência têm tendência a sujar, de modo bastante deliberado, a imagem de sedutora estrela de cinema. Ronnie é um caso bastante diferente. Nesse gangster irrascível, com problemas mentais e abertamente homossexual, Hardy constrói uma mistura explosiva da sua característica agressividade e presença que tende a sugerir um animal enraivecido e imprevisível, quase que ameaçando a caricatura.

 Observar o espetáculo fogoso de Hardy é, no entanto, uma experiência em frustração e desapontamento, sendo que parecemos observar o ator a desesperadamente tentar revitalizar o cadáver do filme, sem grande sucesso. Lendas do Crime é um peso morto e em putrefação pestilenta e não há suficiente energia na presença dos protagonistas para ressuscitar a sua carcaça cinematográfica.

 Algo que irrevogavelmente contribui para o derradeiro fracasso da obra devém de uma considerável distanciação entre o olhar elegíaco de Helgeland dos seus célebres sujeitos. Ao atribuir a perspetiva do filme a Frances e encher a estrutura de Lendas do Crime de momentos exteriores aos irmãos, o realizador e argumentista parece ter criado um frio e aborrecido retrato dos irmãos em que os seus protagonistas pouco mais são que superfícies fascinantes e sem percetível interioridade. Isto não seria necessariamente mau, mas mesclado com uma forma completamente desinteressante e uma duração imensamente excessiva, todo o filme acaba por se tornar em algo maçador e desapontante no modo como é colossalmente previsível, mesmo pelos standards deste tipo de história verídica do mundo do crime.

 Apesar de estar sempre a sugerir violência e a pavonear insinuações de perversidades nos seus diálogos e voz-off, Lendas do Crime é um filme insultuosamente respeitável e comedido. Tudo é demasiado polido e coberto pela pátina da respeitabilidade convencional dos estúdios ingleses para realmente conseguir transmitir alguma da rude e grosseira energia das suas origens verídicas. Talvez no passado, na era dourada dos kitchen sink dramas, ou durante a explosão de barroquismos cinemáticos ingleses, Lendas do Crime pudesse ter brilhado com tal intensidade como a sua excessiva performance central. Infelizmente, tal não acontece, e somos deixados com um aborrecido filme, que nem chega a ser verdadeiramente mau, sendo ainda pior. Lendas do Crime é odiosamente medíocre e, mesmo com alguns momentos de glória consequentes do desenfreado esforço de Tom Hardy, é uma obra imensamente dispensável e esquecível.


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

SPECTRE (2015) de Sam Mendes


 O mais recente filme sobre o charmoso agente secreto James Bond, nome de código 007, começa em pleno Dia de Los Muertos na Cidade do México. O nosso herói, um assassino profissional, apresenta-se vestido de esqueleto, um emissário da Morte, e está em mais uma das suas missões cujo objetivo é eliminar um alvo. A morte é uma constante no universo de James Bond, mas raramente foi tão tematicamente prevalente do que em Spectre, com uma abertura cheia de óbvio simbolismo na mesma medida em que está recheada de elétrica ação. Com uma abertura tão espetacular, a nível visual, sonoro, rítmico e até humano, seria de esperar uma gloriosa e excitante aventura capaz de ameaçar superar Skyfall. Infelizmente, energéticas batalhas em helicópteros sobre uma cidade em coloridos festejos e sublime, se sinistra, atmosfera de mistério não são uma constante em Spectre, sendo que o filme tende a piorar à medida que avança na sua triste história.

 Como já disse, Spectre é um filme sobre a morte, o seu mundo povoado de figuras em luto, moribundas e fantasmas. Os espectros de Casino Royale, Quantum of Solace e, especialmente Skyfall abatem-se sobre Spectre. Fotos das personagens, partes do enredo dos filmes anteriores, mesmo um vídeo da falecida M são uma constante neste filme cujo explosivo clímax decorre na carcaça cadavérica da antiga sede do MI6, repleta de lembranças dos fantasmas desses filmes passados. Um dos maiores erros do filme é precisamente o modo como está sempre a olhar para o passado, forçando a sua audiência a relembrar quão espetaculares dois desses filmes foram e como esta presente obra não lhes chega aos calcanhares.

 O enredo do filme desenvolve-se à volta de Spectre, uma organização malévola que, para além de tentar alcançar o controlo global a partir de horrendos atos de terrorismo e assassínio, tem como alvo pessoal o nosso favorito agente secreto. Interpretado pela quarta vez por Daniel Craig, Bond nunca se apresentou mais cansado com a sua condição como impiedoso assassino, sendo, mais que uma figura de charme fácil e sedutor, uma presença de constante solidão à procura de algo novo. Passando pelo México, por Roma, pela Áustria, Tânger e Londres, este filme é repleto de presenças carismáticas, se simplistas, com duas Bond Girls surpreendentemente interessantes e um vilão originário no passado de Bond. E essa ligação com o passado pessoal de James Bond é o meu maior problema narrativo com o filme que, numa insistência em escavar na backstory do seu herói, acaba por ir aniquilando o mistério que tem, até agora, sido uma componente essencial do apelo da personagem de James Bond, para não falar do vilão principal.

 Interpretado por Christoph Waltz, em mais uma interpretação que emprega os mesmos ritmos, maneirismos e afetações usados pelo ator no seu trabalho com Quentin Tarantino, Oberhausen é o pior vilão com quem o James Bond de Craig alguma vez se deparou. Apesar de uma introdução em glorioso jogo de sombras teatrais, Oberhausen acaba por ser das presenças com menos impacto de Spectre, sendo que quanta mais informação nos é revelada sobre as suas motivações, menos interessante vai ficando a sua presença. No final, apesar dos seus diabólicos atos, a sua derrota parece inconsequente, sendo que Andrew Scott como C, um vilão coadjuvante a Oberhausen, consegue ter uma presença infinitamente mais eficaz, apesar de um final igualmente desapontante. Apenas Dave Bautista como um capanga que quase não faça consegue lembrar alguma da glória dos vilões de outrora e injetar alguma real ameaça num filme em que poucas vezes se sente real perigo. Apenas uma cena de tortura consegue atribuir alguma necessária maldade e ameaça a Waltz, mas mesmo aí, há uma promessa de horror para Bond que acaba por ser, tal como todo o enredo de Oberhausen, inconsequente e esquecível.

 Se os vilões são uma amarga desilusão, as Bond Girls são uma doce surpresa. Monica Bellucci, na posição da Bond Girl inicial que normalmente acaba morta, é de particular interesse, conseguindo miraculosamente injetar um sentido de medo e perigo numa figura perfeitamente descartável nas mãos de uma atriz com menor presença. O modo como a atriz, mesmo assim, consegue perfeitamente mostrar o tipo de estilização sensual de uma Bond Girl clássica é impressionante e apenas me fez desejar que a sua personagem tivesse tido mais tempo de ecrã. Léa Seydoux é a principal Bond Girl de Spectre e, apesar de uma boa interpretação da atriz francesa, é vítima de um guião que força demasiadas expetativas e importância desmesurada na sua pessoa. O filme insiste que ela é a perfeita companheira para Bond, tal como ele nunca antes encontrou, mas, ao mesmo tempo, está-nos constantemente a relembrar a Vesper Lynd de Eva Green, completamente destruindo qualquer ideia de Madeleine Swann como a perfeita amante para o agente secreto. E isto é apenas se considerarmos a história recente do franchise, não estivesse a sombra de Dianna Rigg também a contaminar qualquer esforço de Seydoux. No final, temos de acreditar que Bond deixaria tudo, a sua profissão, identidade, estilo de vida, raisond’être, para ficar com Swann mas, no entanto, a motivação para tais ações e escolhas nunca é particularmente credível.

 Se esquecermos momentaneamente a narrativa, o principal problema técnico e estrutural do filme é um ritmo errático que tem a triste tendência de cair em demasiados momentos mortos. Tirando isso, e uma irritante canção de Sam Smith, o filme segue o caminho recente dos filmes de 007 e é uma maravilha sensorial. A fotografia de Hoyte Van Hoytema é tão bela como é diferente do trabalho formidável de Rodger Deakins em Skyfall. Spectre, ao contrário do seu antecessor, é uma coleção de ambientes fumarentos e suavemente funéreos, onde as cores quentes e fortes são quase completamente ausentes. Há algo de melancólico e deliberadamente frio em todos os elementos do design. Os figurinos de Jany Temime* mostram uma marcada preferência por tons escuros, com pretos e cinzentos a cobrirem a maioria do elenco na sua usual elegância própria dos filmes de Bond. Os cenários de Denis Gassner, longe do exotismo exuberante de anteriores obras do cânone, são discretamente opulentos, com um marcado toque de retro e uma frieza maioritariamente sentida nas construções de metal e vidro como uma importante torre espiralada que interpreta um papel narrativo crucial. Mesmo os sons são um perfeito exemplo de perfeição técnica infundida por uma negrura temática, com a música de Thomas Newman a ganhar uma qualidade fantasmagórica que substitui os ritmos fogosamente energéticos do seu trabalho em Skyfall.

 Spectre está longe de ser um mau filme, sendo que temo estar a ser demasiado negativo nesta minha reflexão. Apesar de uma duração excessiva e um ritmo ocasionalmente entediante, o filme contém algumas das mais gloriosas cenas de alão na recente presença cinematográfica de James Bond. O enredo e o fracassado vilão são a principal problemática do filme que, possivelmente, será o último filme em que vemos Daniel Craig como 007. Mesmo que o ator deixe este franchise, tenho esperanças que o resto do elenco não o siga, sendo Naomie Harris, Ben Wishaw e Ralph Fiennes são das mais agradáveis presenças deste filme, conferindo uma leveza e energia por vezes perdida por entre as assombrações do passado de James Bond e seus filmes. E volto a reforçar que poucas experiências cinemáticas do ano de 2015 são tão simplesmente excitantes como a explosiva abertura de Spectre, independentemente do filme que se segue.


* Se quiseres ler mais sobre os figurinos deste filme, consulta Spectre | A elegância intemporal de James Bond, um artigo que escrevi para a Magazine HD.


terça-feira, 3 de novembro de 2015

THE REMAINS OF THE DAY (1993) de James Ivory

Um Quarto com Vista sobre a Cidade, Regresso a Howards End e agora Os Despojos do Dia. Este trio representa o píncaro do trabalho da dupla Merchant Ivory e, apesar da sua convencionalidade, detém um impressionante poder na sua melancolia. Emma Thompson e Anthony Hopkins foram raramente tão devastadores.


 Duas figuras, um homem e uma mulher, estão sentadas à mesa de um salão numa região costeira de Inglaterra nos anos 50. Apesar da sua aparência severa e cinzenta, as pessoas à sua volta vestem-se coloridamente e algumas dançam numa pista visível da mesa dos dois indivíduos que conversam. Eles são Miss Kenton (Emma Thompson) e Mr. Stevens (Anthony Hopkins), ambos foram em tempos colegas de trabalho em Darlington Hall, uma casa aristocrática inglesa onde ambos ocupavam as posições de governanta e mordomo respetivamente. Os dois têm entre si o peso de uma relação que nunca chegou a acontecer, ambos mostram uma absoluta reticência e repressão nas suas palavras e ações, nunca dizendo realmente o que querem expressar, ambos calcificados nas posições e regras a que uma sociedade hierarquizada e anacrónica os condenou. A meio da sua conversa, em que Stevens tenta sondar e atrair Kenton a voltar ao seu posto em Darlington, ouvimos que uma personagem pela qual a audiência já estabeleceu uma relação próxima morreu. A informação é dada sem emoção ou importância dramática, a tragédia algo que se confunde com a negrura e melancolia que parecem consumir a atmosfera tanto do espaço como dos humanos que nele habitam.

 Essa magnífica cena é, talvez, o meu predileto momento em Os Despojos do Dia, um filme da célebre equipa formada pelo realizador James Ivory, produtor Ismail Merchant e argumentista Ruth Prawer Jhabvala que adaptou o romance de Kazuo Ishiguro para o filme sobre o qual aqui falamos. O filme em si, não se resume apenas ao encontro dos dois protagonistas nessa região costeira nos anos 50, passando-se principalmente nos anos que antecederam a 2ª Guerra Mundial e em que Stevens e Kenton trabalhavam juntos em Darlington Hall, servindo o perigosamente ingénuo e orgulhoso Lord Darlington (James Fox).

 Figuras silenciosas e sem opiniões próprias, em abnegação da sua própria condição como seres humanos, servos subservientes ao seu mestre, Kenton e Stevens são imagens dos perfeitos membros da classe servil, sendo que Stevens é mais mecanismo desumano que pessoa na sua fanática devoção ao seu dever como mordomo. Lord Darlington vai, ao mesmo tempo que a relação dos dois protagonistas se vai desenvolvendo em reticentes silêncios, vai-se aliando com a causa nazi, procurando uma suposta paz entre Inglaterra e Alemanha e organizando reuniões diplomáticas em sua propriedade. A sua trajetória é a de um tolo que vê na filosofia fascista uma validação da sua superioridade e posição na hierarquia social, um homem com ilusões de grandeza e perigosa ambição, a quem Stevens é completamente subserviente, que se define grandemente pela sua relação com Darlington. A queda de graça de Darlington corresponde a uma destruição de Stevens, que julgava cumprir o seu papel na História a partir do seu amo, ambos validando-se a partir de ingénuas estruturas e filosofias de poder e subserviência.

 Mas, antes de ser qualquer análise política da Inglaterra aquando da ascensão nazi na Europa, o filme de James Ivory é um romance uma tragédia de um amor frágil e silencioso, nunca confessado ou consumado. O mesmo não acontecerá na obra de Ishiguro, pelo que, de modo a manter a sua atenção fixamente na história de amor entre os dois protagonistas, o texto do filme é obrigado a simplificar, por vezes de modo grotesco e simplificador, o lado político e social do romance, acabando a subtileza e complexidade de Darlington e todo esse ângulo da obra literária, por estarem contidos na exímia e louvável interpretação de James Fox. O ator consegue insinuar as complexidades que Ivory, Merchant e Jhabvala parecem intentos em remover da narrativa, ou pelo menos abafar. Seguindo-se esta obra ao seu mais triunfante trabalho, Howards End, isto é uma enorme desilusão, especialmente quando consideramos a cortante precisão do texto e concretização desse filme e suas acídicas observações à sociedade inglesa.

  Apesar dessa relativa simplificação, essa equipa, que é sinónima de adaptações literárias de prestígio, não mostra aqui qualquer desleixo no que é talvez o mais significativo aspeto da sua filmografia conjunta, a criação de personagens complexas maravilhosamente interpretadas por elencos compostos por alguns dos mais ilustres e sonantes nomes do cinema britânico. Hopkins é um particular milagre, criando em Stevens uma tempestade de emoções reprimidas calcificada em forma de estátua humanoide. O modo como modula as suas expressões e linguagem corporal dependendo de quem está com ele em cena é de particular relevância, assim como a curiosa e vital escolha de fazer Stevens progressivamente mais solto e subtilmente energético à medida que envelhece, sendo que na parte do filme passada na década de 30, a sua linguagem corporal é de uma rigidez que, mais do que ser afetada, mostra uma assustadora autorrepressão crónica que se estende ao seu próprio movimento. Thompson tem uma personagem muito menos extrema, mas não por isso menos interessante. Lembro-me em particular do modo como, numa cena de efusiva e furiosa emoção, Thompson demonstra, em silenciosas reações, o modo como Kenton, apear da sua rebeldia superficial e jovialidade, é imóvel e presa por ação própria à sua posição hierárquica e profissional. Peter Vaughn, Christopher Reeve e Hugh Grant interpretam outros papéis cruciais, sendo que este último é particularmente brilhante, usando o carisma e efusiva vitalidade para definir uma figura que aparece apenas brevemente, mas cuja fúria e integridade enraivecida causam choques sentidos por todo o filme.

 Tão importante como o elenco é Darlington Hall, o magnifico casarão da aristocracia, cuja opulência contém em si um legado de história e rigidez social que esmagam todas as figuras humanas em si contidas. O modo como Ivory filma os atores, muitas vezes rigidamente posicionados em relação à arquitetura, em contraluz de modo a serem silhuetas negras contra as paredes requintadamente decoradas, ou vistos através de arcos, pórticos ou janelas, é pouco original mas inegavelmente eficaz. O espaço não é habitado por humanos, mas os humanos funcionam como extensão do espaço. A reconstrução histórica é, como seria de esperar, exímia e evita ser vistosa, tanto a nível de cenografia como de figurinos e caracterização. Na exatidão visual, e também sonora, do filme existe algo de frio e mecânico que é tão apropriado à narrativa como consegue ser um pouco cansativo ou mesmo desconfortável para a audiência, nunca sendo tão bem usado como semelhante exatidão e frieza no filme que antecede Os Despojos do Dia na sua filmografia.

 Tenho certas reservas em relação ao filme, especialmente em relação à abordagem romântica de Ivory e Jhabvala, mas, mesmo na sua distância e frieza, o filme é imensamente tocante. Há uma enorme potência emocional contida em reações silenciosas e pausas reticentes que outros filmes iriam perder ou ignorar, não possuindo a delicadeza exímia desta obra. Certos momentos como o final parecem descambar numa simplicidade nociva e desajeitada, mas na maioria do filme há uma perspicácia e subtileza primorosa pontuada por momentos de gloriosa sentimentalidade reprimida e frieza explosiva como o momento mencionado no início deste texto. Em cenas como essa, é fácil pensar no filme como num dos mais curiosamente arrebatadores e desoladores romances na oeuvre de Ivory, Merchant e Jhabvala.


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA (1975) de Pier Paolo Pasolini

Completam-se hoje quarenta anos da morte violenta de Pier Paolo Pasolini, pelo que decidi revisitar o seu mais polémico e controverso filme. Salò ou os120 Dias de Sodoma foi a sua derradeira obra e talvez também a sua mais importante e indispensável, por muito horrendas que sejam as visões aí contidas.



 Com a sua Trilogia da Vida composta por Decameron, Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites, Pier Paolo Pasolini criou uma luxuriante exploração celebradora da vida, da sexualidade e da rudeza de um passado primitivo, criando os mais leves e acessíveis filmes na sua filmografia cheia de gritantes reflexões políticas. Depois de tal felicidade cinematográfica Pasolini virou-se, no entanto, para aquele que seria o seu último filme, assim como o seu mais violento e difícil de ver. Supostamente adaptado da derradeira obra, que nunca foi terminada, do Marquês de Sade, Salò ou os 120 Dias de Sodoma revelou-se como uma das mais controversas obras na história do cinema, e deveria também ter sido o início de uma segunda Trilogia, desta vez sobre a Morte, que o autor italiano nunca conseguiu completar tendo sido assassinado pouco tempo depois da finalização desta formidável e aterradora obra.

 Mais do que seguindo uma narrativa adaptada da obra de Sade, Pasolini, tal como aponta na bibliografia que recomenda para o filme, parece extrair mais ideias de várias obras de teoria académica que foram escritas sobre as perversidades do aristocrata francês. No final, o que observamos é como uma peça académica do próprio Pasolini, que no seu cinema sempre expôs as suas ideias e teorias a partir de brutais e magnificamente cruas construções. Salò, que explora o poder e a perversa visão de uma Itália Fascista, é o seu mais violento e repelente filme, sendo, talvez por isso mesmo, o mais importante da sua filmografia.

 O filme retrata a tortuosa história de um grupo de poderosos fascistas italianos que, nos últimos dias do regime, levam um grupo de jovens, tanto rapazes como raparigas, para uma propriedade em Salò onde durante vários dias, estes homens vão como que jogando uma brincadeira de perversidades e controlo sobre estes seus convidados/prisioneiros. A acompanhá-los está um pequeno grupo de prostitutas envelhecidas que, numa precisa e mecânica ordem, vão contando histórias do seu lúrido passado sexual. No final desta celebração horrenda, os jovens prisioneiros são cruelmente mortos, mutilados e destruídos sob o olhar poderoso e distante dos seus mestres.

 As intenções de Pasolini estão bem documentadas pela sua escrita e teoria, sendo que o autor aqui usa o fascismo italiano como um sujeito para o seu mordaz julgamento, mas também como um símbolo. Mais que uma reflexão chocante e alienante da história política italiana, Pasolini desenvolve aqui um último grito de fúria para com o mundo capitalista e desumano em que ele se encontrava. Um mundo em que a vida humana parece regida pelos obscenos jogos de poder dos mais poderosos para com os mais fracos e vulneráveis e onde o próprio sofrimento humano é tornado num grotesco espetáculo de horrores.

 A franqueza sexual, que, por vezes, parece ser mais criticada que os horrendos atos de mutilação ou escatologia, é do mais diferente que se possa imaginar dos seus filmes anteriores. Na Trilogia da Vida, a sexualidade era inocente e prazerosa, como que o fruto de uma existência segundo os ideias de Rousseau, enquanto nestes 120 Dias de Sodoma a sexualidade deixa de ser uma manifestação física humana ou uma fonte de prazer, para se tornar numa manifestação aterradora da posse de seres humanos por outros humanos. A sexualidade diabólica e forçosa dos senhores é como que uma violenta metáfora para o mundo que Pasolini via à sua volta. Se em Teorema, Accatone, Porcile e outras obras, a crítica do autor tinha sido óbvia e violenta, meras palavras não conseguem completamente descrever a força malévola por detrás das visões que Pasolini conjura neste filme.

 Há algo, no entanto, de profundamente artificial e distante na construção da depravada história como se as olhássemos de uma perspetiva fria e afastada pelo filtro da interpretação puramente intelectual. Um formalismo rígido e desumano que impede a visceralidade dos atos de atingirem um potencial de realismo insuportável. No entanto, essa mesma falsidade palpável ajuda à consideração deste desfile de horrores como um espetáculo para a audiência de cinema. No final, devido a tudo isto, há algo de horrendamente acusatório no filme que oferece um cruel julgamento sobre, não só as suas personagens, mas também sobre uma nação, sobre o autor e sobre os próprios espetadores que se disponibilizam a observar esta obra cinematográfica.

 Isto devém principalmente de uma precisão quase desumana na apresentação estilística de Salò. Composições que tornam as salas em palcos completos com proscénios, uma brilhante construção cenográfica que mistura um modernismo surpreendente com a arte fascista de geometrizações precisas e impulsos futuristas, uma iluminação bela, figurinos teatrais na sua elegância, música sedutora e leve, tudo isto cria uma das mais elegantes criações do autor. Há uma opulência que quase relembra uma produção glamorosa e respeitável dos estúdios europeus, mas que aqui é concedida a uma narrativa de horrores humanos, e que é aqui empregue por um autor famoso pela crueza primitiva do seu cinema. A própria elegância e agradável ambiente sonoro e visual, se torna em sublime tortura para uma audiência que observa este espetáculo de armadilhados prazeres e titilantes massacres.

 O filme é imensamente criticado, proibido e recriminado, mesmo por quem admira a retórica de Pasolini, e tem sofrido acusações de amoralidade desde os seus primeiros dias, fazendo desta talvez das mais conhecidas, se infames, obras do autor. É difícil, e mesmo tolo, separar a reação quase física de nojo e fúria que uma audiência tem de uma pura apreciação da obra como objeto cinematográfico, mas quando isto se consegue fazer, Salò emerge como das mais formidavelmente concretizadas visões de Pier Paolo Pasolini. Raramente se viu um realizador mergulhar de modo tão controlado e decidido na negrura absoluta do potencial do ser humano para o mal, assim como no modo como as sociedades são construídas a partir de construções de poder e subjugação, mesmo quando a liberdade se mostra como uma ilusória e atraente fachada. Mas, ainda mais raro que tudo isto é observar-se a precisão ensandecida de um mestre de cinema no píncaro das suas capacidades, onde tudo, da montagem à caracterização, está marcado por um controlo de absoluta mestria.

 Mesmo para quem odeie o filme e se sinta repugnado pela sua mera existência, penso que Salò é uma obra essencial, uma cruel exposição do lado diabólico da humanidade, tanto a que está presente no comportamento das personagens, a que está presente na beleza desumana da construção formal, e a que está latente na admiração ou no choque enfurecido do seu público.


domingo, 1 de novembro de 2015

IN JACKSON HEIGHTS (2015) de Frederick Wiseman

 Um dos últimos filmes que vi nesta ultima edição do DocLisboa foi a nova monumental obra de Frederick Wiseman, In Jackson Heighs, onde este mestre do cinema documentário vira o seu olhar para o bairro mais multicultural de Nova Iorque.


 Frederick Wiseman tem-se cimentado ao longo da sua carreira como um mestre do cinema documentário, tanto que, hoje em dia, para apreciadores de documentários a sua imagem é quase a de uma lenda viva. Um dos aspetos mais impressionantes da sua filmografia é a sua surpreendente consistência de qualidade alcançada a partir de um estilo que parece quase manifestar-se contra o toque autoral no cinema documental. Wiseman é um observador, e os seus filmes, longe de parecerem forçados, moldados ou manipulados por uma perspetiva de autor, têm sempre a formidável característica de parecerem incríveis retratos de pessoas, comunidades e instituições em que toda a glória do cinema provém da simples e direta observação sem floreados ou manipulações desnecessárias.

 Com composições discretas e muitas vezes estáticas, recusa de som não diegético e de qualquer manifestação textual do olhar do realizador, Wiseman explora o bairro de Jackson Heighs em Brooklyn. Para um realizador que, especialmente nas suas mais recentes obras, tem mostrado um colossal interesse em explorar as dinâmicas internas de comunidades e instituições, este bairro, o mais diversificado dos EUA e talvez do mundo, é um sujeito de miraculosa perfeição. E, na perfeita continuação do seu trabalho recente, o filme consegue em pouco mais de três horas estabelecer uma visão coletiva que pulsa de um humanismo latente e raro no panorama do cinema contemporâneo.

  O filme inicia-se com orações muçulmanas seguidas de uma sequência numa sinagoga onde uma organização de seniores homossexuais se reúne, e termina com um apelo à tolerância durante uma reunião de uma organização de imigrantes latinos a discutirem os direitos dos trabalhadores. Algo que se verifica logo nesta minha introdução é o modo como o filme não retrata concretamente uma comunidade unificada e idilicamente interligada mas sim uma conjunção de micro comunidades e grupos que coexistem entre si.

 Ao longo de In Jackson Heights seguimos uma imensidão de indivíduos e grupos e inúmeras vezes ouvimos essas mesmas pessoas a descreverem como se integram nesses mesmos grupos. O realizador consegue estes momentos de apresentação e exposição pessoal não pela entrevista tradicional, mas por uma fixação nesses momentos comunitários em que os diversos indivíduos interagem com a sua comunidade e consequentemente interagem e apresentam-se à audiência que os observa a partir da construção de Wiseman. Vamos, por consequência, começando a identificar histórias de vida nas várias pessoas que por vezes apenas aparecem no background dos momentos gravados pelo realizador. E é precisamente aí que eu julgo estar o génio do filme.

 Atualmente aclamamos noções de igualdade enquanto, paradoxalmente, fechamos as pessoas em caixas cada vez mais específicas de identificação social. Etnicidades, heranças culturais, línguas, sexualidades, géneros, classes sociais, etc. O que Wiseman acaba por fazer, como que subvertendo a ideia de uma comunidade criada por um conjunto de grupos e microcosmos sociais, desenvolvendo como que uma celebração da diversidade que foge às falácias desinteressantes e clichés da retórica que parecem corroer as conversas sobre igualdade que hoje em dia temos. Ao retratar Jackson Heights, numa derradeira análise, mais que uma comunidade ou um conjunto de comunidades, Wiseman cria uma visão de uma imensidão de vidas individuais e diferentes. Não admira, portanto, que o autor termine o filme num apelo à tolerância e, de certo modo, à diferença.

 Mas In Jackson Heights não é somente uma luminosa construção de humanismo cinematográfico mas também uma perfeita exemplificação de subtileza e eficiência autoral. Fazer um filme tão preso à observação simples e com tal vastidão e ambição, sem deixar toda a experiência cair no aborrecimento ou em momentos mortos é uma prova do génio absoluto de Wiseman. O realizador, que também editou o filme, cria um ritmo de precisa e magnífica leveza, pontuado por discursos compridos, momentos musicais, e surpreendentes momentos de comédia humana, nunca tornando o filme numa experiencia de maçadora documentação.

 In Jackson Heights é tão impressionante e miraculoso como National Gallery e At Berekely e talvez essa seja a única coisa que possa deixar uma audiência reticente, Wiseman, por muito genial que seja, encontrou o seu registo e continua a usá-lo em repetição consistente simplesmente virando o seu olhar para diferentes sujeitos, substituindo a grandiosidade artística e ancestral de um museu pela belissimamente grosseira existência de um bairro em Brooklyn. Eu diria, no entanto, que tal tipo de pensamento é desnecessário, senão simplesmente estúpido. Quando os resultados são tão consistentemente perfeitos e quando a sua visão, por muito dissimuladamente simples que seja, é tão única e característica no panorama cinematográfico atual, o cinema de Wiseman é uma preciosidade que nunca deveria ser menosprezada e In Jackson Heights é mais uma joia a acrescentar à luminosa filmografia deste mestre do documentário.