segunda-feira, 2 de novembro de 2015

SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA (1975) de Pier Paolo Pasolini

Completam-se hoje quarenta anos da morte violenta de Pier Paolo Pasolini, pelo que decidi revisitar o seu mais polémico e controverso filme. Salò ou os120 Dias de Sodoma foi a sua derradeira obra e talvez também a sua mais importante e indispensável, por muito horrendas que sejam as visões aí contidas.



 Com a sua Trilogia da Vida composta por Decameron, Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites, Pier Paolo Pasolini criou uma luxuriante exploração celebradora da vida, da sexualidade e da rudeza de um passado primitivo, criando os mais leves e acessíveis filmes na sua filmografia cheia de gritantes reflexões políticas. Depois de tal felicidade cinematográfica Pasolini virou-se, no entanto, para aquele que seria o seu último filme, assim como o seu mais violento e difícil de ver. Supostamente adaptado da derradeira obra, que nunca foi terminada, do Marquês de Sade, Salò ou os 120 Dias de Sodoma revelou-se como uma das mais controversas obras na história do cinema, e deveria também ter sido o início de uma segunda Trilogia, desta vez sobre a Morte, que o autor italiano nunca conseguiu completar tendo sido assassinado pouco tempo depois da finalização desta formidável e aterradora obra.

 Mais do que seguindo uma narrativa adaptada da obra de Sade, Pasolini, tal como aponta na bibliografia que recomenda para o filme, parece extrair mais ideias de várias obras de teoria académica que foram escritas sobre as perversidades do aristocrata francês. No final, o que observamos é como uma peça académica do próprio Pasolini, que no seu cinema sempre expôs as suas ideias e teorias a partir de brutais e magnificamente cruas construções. Salò, que explora o poder e a perversa visão de uma Itália Fascista, é o seu mais violento e repelente filme, sendo, talvez por isso mesmo, o mais importante da sua filmografia.

 O filme retrata a tortuosa história de um grupo de poderosos fascistas italianos que, nos últimos dias do regime, levam um grupo de jovens, tanto rapazes como raparigas, para uma propriedade em Salò onde durante vários dias, estes homens vão como que jogando uma brincadeira de perversidades e controlo sobre estes seus convidados/prisioneiros. A acompanhá-los está um pequeno grupo de prostitutas envelhecidas que, numa precisa e mecânica ordem, vão contando histórias do seu lúrido passado sexual. No final desta celebração horrenda, os jovens prisioneiros são cruelmente mortos, mutilados e destruídos sob o olhar poderoso e distante dos seus mestres.

 As intenções de Pasolini estão bem documentadas pela sua escrita e teoria, sendo que o autor aqui usa o fascismo italiano como um sujeito para o seu mordaz julgamento, mas também como um símbolo. Mais que uma reflexão chocante e alienante da história política italiana, Pasolini desenvolve aqui um último grito de fúria para com o mundo capitalista e desumano em que ele se encontrava. Um mundo em que a vida humana parece regida pelos obscenos jogos de poder dos mais poderosos para com os mais fracos e vulneráveis e onde o próprio sofrimento humano é tornado num grotesco espetáculo de horrores.

 A franqueza sexual, que, por vezes, parece ser mais criticada que os horrendos atos de mutilação ou escatologia, é do mais diferente que se possa imaginar dos seus filmes anteriores. Na Trilogia da Vida, a sexualidade era inocente e prazerosa, como que o fruto de uma existência segundo os ideias de Rousseau, enquanto nestes 120 Dias de Sodoma a sexualidade deixa de ser uma manifestação física humana ou uma fonte de prazer, para se tornar numa manifestação aterradora da posse de seres humanos por outros humanos. A sexualidade diabólica e forçosa dos senhores é como que uma violenta metáfora para o mundo que Pasolini via à sua volta. Se em Teorema, Accatone, Porcile e outras obras, a crítica do autor tinha sido óbvia e violenta, meras palavras não conseguem completamente descrever a força malévola por detrás das visões que Pasolini conjura neste filme.

 Há algo, no entanto, de profundamente artificial e distante na construção da depravada história como se as olhássemos de uma perspetiva fria e afastada pelo filtro da interpretação puramente intelectual. Um formalismo rígido e desumano que impede a visceralidade dos atos de atingirem um potencial de realismo insuportável. No entanto, essa mesma falsidade palpável ajuda à consideração deste desfile de horrores como um espetáculo para a audiência de cinema. No final, devido a tudo isto, há algo de horrendamente acusatório no filme que oferece um cruel julgamento sobre, não só as suas personagens, mas também sobre uma nação, sobre o autor e sobre os próprios espetadores que se disponibilizam a observar esta obra cinematográfica.

 Isto devém principalmente de uma precisão quase desumana na apresentação estilística de Salò. Composições que tornam as salas em palcos completos com proscénios, uma brilhante construção cenográfica que mistura um modernismo surpreendente com a arte fascista de geometrizações precisas e impulsos futuristas, uma iluminação bela, figurinos teatrais na sua elegância, música sedutora e leve, tudo isto cria uma das mais elegantes criações do autor. Há uma opulência que quase relembra uma produção glamorosa e respeitável dos estúdios europeus, mas que aqui é concedida a uma narrativa de horrores humanos, e que é aqui empregue por um autor famoso pela crueza primitiva do seu cinema. A própria elegância e agradável ambiente sonoro e visual, se torna em sublime tortura para uma audiência que observa este espetáculo de armadilhados prazeres e titilantes massacres.

 O filme é imensamente criticado, proibido e recriminado, mesmo por quem admira a retórica de Pasolini, e tem sofrido acusações de amoralidade desde os seus primeiros dias, fazendo desta talvez das mais conhecidas, se infames, obras do autor. É difícil, e mesmo tolo, separar a reação quase física de nojo e fúria que uma audiência tem de uma pura apreciação da obra como objeto cinematográfico, mas quando isto se consegue fazer, Salò emerge como das mais formidavelmente concretizadas visões de Pier Paolo Pasolini. Raramente se viu um realizador mergulhar de modo tão controlado e decidido na negrura absoluta do potencial do ser humano para o mal, assim como no modo como as sociedades são construídas a partir de construções de poder e subjugação, mesmo quando a liberdade se mostra como uma ilusória e atraente fachada. Mas, ainda mais raro que tudo isto é observar-se a precisão ensandecida de um mestre de cinema no píncaro das suas capacidades, onde tudo, da montagem à caracterização, está marcado por um controlo de absoluta mestria.

 Mesmo para quem odeie o filme e se sinta repugnado pela sua mera existência, penso que Salò é uma obra essencial, uma cruel exposição do lado diabólico da humanidade, tanto a que está presente no comportamento das personagens, a que está presente na beleza desumana da construção formal, e a que está latente na admiração ou no choque enfurecido do seu público.


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