quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

CREED (2015) de Ryan Coogler


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan


Quem diria que em 2015, um dos mais infelizes vencedores do Óscar de Melhor Filme na história dos galardões, Rocky, teria direito a uma sequela, na verdade um reboot, que conseguiria, não só, superar o original, como ofuscar todas as sequelas anteriores e tal modo que todos os filmes sobre o célebre pugilista de Filadélfia a parecem melhorar em retrospetiva? Certamente eu não seria a pessoa a afirmar tal coisa. Mas o facto de que, Creed é um dos melhores filmes americanos de 2015 e, certamente, o melhor filme de todo este franchise.

O filme desenvolve-se à volta de Adonis (Michael B. Jordan) o filho ilegítimo de Apollo Creed que, depois de ter sido criado no privilégio disponibilizado pela mulher de Apollo (Phylicia Rashad) que lhe serviu de mãe adotiva, vai para Filadélfia com o intuito de seguir as pisadas do pai, tornando-se um lutador profissional. Nessa cidade, ele tenta convencer o lendário Rocky Balboa (Sylvester Stallone) a treiná-lo, ao mesmo tempo que vai iniciando uma relação amorosa com a sua vizinha, Bianca (Tessa Thompson), e se vai tentando afirmar sem usar o nome do pai. Eventualmente, como seria de esperar, o jovem protagonista começa a alcançar sucesso e Rocky acaba por se tornar numa inseparável figura paternal, sendo que o filme culmina numa épica luta em que Adonis é o esperançoso underdog face ao campeão do mundo.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan


O guião é dissimuladamente simples, copiando muitos dos pontos temáticos dos filmes anteriores, ao mesmo tempo que desenvolve uma perspetiva fascinante sobre a relação de uma nova geração com o legado do passado. As lendas do passado e a realidade do presente apresentam-se como forças em constante conflito e paradoxal harmonia, revelando uma complexidade temática e uma maturidade e inteligência surpreendentes. Em Creed o futuro e construído sob o passado que é respeitado, emulado, mas que é eventualmente superado ou reinterpretado. Esta abordagem multifacetada é sublime na sua sagacidade e é genialmente desenvolvida em imagens tão potentes como a do jovem Adonis a treinar em frente a uma projeção do seu pai a lutar contra Rocky, em que o protagonista parece lutar com a lenda passada de seu progenitor ao mesmo tempo que desenvolve o seu legado pessoal sob as costas da herança de Apollo Creed.

Esta relação do presente com o passado nunca é melhor espelhada que na cansada figura de Rocky, magistralmente interpretada por Sylvester Stallone. Se me dissessem que eu estaria a defender Stallone como a melhor escolha de entre os possíveis candidatos ao Óscar de Melhor Ator Secundário eu ter-vos-ia acusado de abjeta loucura. Eu teria estado completamente errado.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan Sylvester Stallone


Rocky é um mamute vivo, um fóssil que ainda respira e vibra com uma cansada vitalidade. Ele é um homem que perdeu as pessoas mais importantes na sua vida e que, na sua velhice, parece estar desgastado pelo simples ato de continuar a viver, não fosse a luminosa presença de Adonis, que força este herói a regressar às suas glórias e a lutar pela sua existência, contra a doença, contra o desgaste do tempo e contra a inevitabilidade da sua irrelevância no panorama da atualidade. Aquando de uma coleção de intensas confrontações entre o jovem lutador e o seu mentor, Stallone demonstra uma subtileza emocional mais poderosa que qualquer outro trabalho na filmografia do ator, cuja própria linguagem corporal enquanto Rocky Balboa demonstra a formidável força do seu físico passado obscurecida pelo implacável peso dos anos, da idade e da fatiga.

A acompanhar o glorioso trabalho de Stallone está um maravilhoso elenco, liderado pelo carismático Michael B. Jordan, um ator tão formidável na sua musculosa fisicalidade como na sua poderosa vulnerabilidade. Também Tessa Thompson é de destacar, pegando num papel que poderia ser facilmente unidimensional ou simplesmente funcional e tornando-o numa palpável presença humana.


Creed O Legado de Rocky Michael B. Jordan Tessa Thompson


Com uma matura e energética abordagem da parte de Ryan Coogler, um guião surpreendentemente complexo e um formidável elenco, Creed já seria um legítimo sucesso cinematográfico, mas o filme não se fica por aí. Dos seus aspetos técnicos, a música é de particular magnificência. Ludwig Göransson compõe uma poderosa banda-sonora, onde o tema principal pulsa com uma maravilhosa intensidade, construindo uma identidade sonora para Adonis tão memorável como o tema que Bill Conti escreveu para o Rocky original. A música de Conti chega mesmo a marcar a sua presença num dos momentos mais intensos do clímax, naquele que é a mais gloriosa e inteligente utilização de música no cinema de 2015.

A banda-sonora é um perfeito acompanhante da montagem, sendo que estes aspetos conferem ao filme um preciso e dinâmico ritmo, que vai modulando as tonalidades do filme, nunca descurando ora nas partes mais emocionais e pausadas ora nos momentos mais épicos e gritantes. As lutas em que Adonis participam são o ponto alto para a montagem e para a brilhante fotografia de Creed, quer seja a magistral luta filmada num ensandecido plano sequência ou a operática luta final. Esse derradeiro conflito é uma sequência de pura glória do cinema americano de 2015, construindo uma complicada, mas eficiente, mistura de ritmos díspares, tensão arrebatadora e uma comovente empatia para com ambos os oponentes e as personagens que os apoiam e observam.


Creed O Legado de Rocky Ryan Coogler



Creed é um dos mais surpreendentes triunfos do ano, sendo uma obra que não deveria ser subestimada pelo seu apelo populista ou seu estatuto como mais uma sequela na máquina de infinita e doentia reciclagem de ideias que é a Hollywood contemporânea. Coogler, Jordan, Thompson, e outros, provam-se aqui como vozes essenciais para o futuro do cinema de Hollywood, e as lendas do passado como Stallone, demonstram como ainda nos conseguem surpreender e revelar uma genialidade usualmente ignorada no seu trabalho. 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

BRIDGE OF SPIES (2015) de Steven Spielberg




Depois de Lincoln, a possibilidade de Steven Spielberg regressar tão rapidamente a um drama de época com uma narrativa fortemente política era algo de criar água na boca de qualquer cinéfilo. Eu, pelo menos, fiquei estonteado com a qualidade de Lincoln em 2012, especialmente tendo em conta a minha relativa falta de afeição para com o estilo classicamente convencional de Steven Spielberg. Para aumentar ainda mais as espectativas, o argumento deste novo projeto tinha como autores os incomparáveis irmãos Coen. Estava então cimentada uma incontornável promessa de grandeza. A Ponte dos Espiões, infelizmente, não é tão formidável como Lincoln mas continua a ser um fascinante filme coberto pela pátina da nostalgia cinematográfica e construído por um dos autores mais gentilmente populistas do cinema americano. Quem diria que eu começaria a perceber a adoração generalizada pelo trabalho de Steven Spielberg nos anos mais tardios da sua carreira?

O filme, facilmente bipartido em dois impulsos narrativos, centra-se à volta de James B. Donovan (Tom Hanks), um comum, mas respeitado, advogado americano, a quem é pedido que defenda em tribunal o agente soviético Rudolf Abel (Mark Rylance) em plena Guerra Fria. Com uma fé desmesurada na justiça e nos ideais mais nobres da sociedade americana, Donovan monta a defesa de Abel, acreditando ser o seu dever defender o seu cliente, possibilitando-lhe um justo tratamento face ao sistema judicial americano. Como consequência das suas ações modestamente heroicas, Donovan torna-se num dos homens mais infames dos EUA nos anos 50, apelidado de traidor e com a sua família a ser tão perseguida como ele mesmo.




A primeira metade de A Ponte dos Espiões trata do julgamento de Abel e da confrontação do idealismo de Donovan face ao cinismo hipócrita e bastante fanático da sociedade americana da época, mas a segunda é bastante distinta. Depois do julgamento, Abel é considerado culpado, mas, graças a apelos de Donovan, condenado à morte, sendo que, quando um soldado americano (Austin Stowell) numa missão de espionagem é capturado pela União Soviética, as duas nações compõem um complexo esquema de troca de espiões. Donovan, um cidadão privado, torna-se no principal agente nas negociações cobertas pelo subterfúgio quase teatral das políticas da Guerra Fria, sendo enviado para Berlim, logo após ao muro ter sido erguido. Aí, no gélido mundo de uma Europa dividida, o filme torna-se num completo thriller político, onde os interesses da União Soviética, da Alemanha de Leste e dos EUA vão colidindo com a humanidade das pessoas envolvidas neste esquema, nomeadamente de Donovan.




A Ponte dos Espiões não contém as mesmas complexidades políticas e ideológicas de Lincoln mas usa a sua abordagem fortemente nostálgica como um perfeito veículo para levar as audiências a contemplar questões normalmente envolvidas na segurança conferida pela pátina do passado. O texto dos Coen é de particular relevância, conferindo uma certa acidez textual que vai sempre complicando mesmo os impulsos mais adocicados da mise-en-scène de Spielberg, cujo trabalho realmente brilha aquando da construção de tensão e suspense nas negociações internacionais em Berlim. Mas o filme não prima apenas por um sólido guião e realização inteligentemente convencional, sendo que o seu elenco é inegavelmente louvável pelo final sucesso do projeto.

Tom Hanks no papel de James B. Donovan é como que um James Stewart renascido. Há uma decência e moralidade na caracterização de Donovan que seria facilmente forçada ou cliché se outro ator estivesse a cargo da sua encarnação, mas Hanks é uma escolha perfeita. O seu trabalho de modulação tonal entre o drama, a tragédia, o thriller e a comédia é de uma precisão fantástica, assegurando que o filme nunca se perde, ou se torna pouco convincente. Em Hanks o classicismo da velha Hollywood encontra a contemporaneidade textual de algumas porções do guião, fazendo de Donovan um dos melhores protagonistas e heróis no cinema americano de 2015, sendo que o seu principal atributo é a sua surpreendente e magnifica modéstia.




O resto do elenco de A Ponte dos Espiões é bastante sólido, mas mais ninguém tem o mesmo tipo de triunfo que Hanks. Quem mais se aproxima é, certamente, Mark Rylance, um veterano dos palcos ingleses que é, de momento, o grande favorito para o Óscar de Melhor Ator Secundário. O seu trabalho é bastante delicado e gentil, nunca caindo em quaisquer histerias ou gritados dramatismos, e perfeitamente servindo de propulsionador para a maioria dos conflitos do filme. É graças ao ator que Abel se torna uma presença tão humana na narrativa do filme, tanto que o seu destino incerto se torna na perfeita nota amarga a complicar o triunfo do final.

A um nível mais técnico e formal A Ponte dos Espiões é concretizado com toda a usual eficiência do cinema de Spielberg. A montagem é de particular destaque, especialmente na segunda metade do filme, onde ajuda a criar um maravilhoso jogo de tensão prolongada. Infelizmente, nem tudo é tão eficiente como o trabalho de Michael Kahn, o editor de A Ponte dos Espiões. A fotografia de Janusz Kaminski e música de Thomas Newman são particularmente problemáticas. Kaminski é demasiado indulgente para com os seus usuais gostos por iluminação imensamente artificial que confere uma beleza bastante inapropriada e simplista a toda a construção visual de filme, onde as cenas noturnas são particularmente afetadas. A respeito da banda-sonora é incrivelmente claro que Spielberg necessita do trabalho bombástico e sentimentalista de John Williams, o seu perfeito companheiro para as suas nostálgicas viagens pelo classicismo do cinema americano.



Em conclusão, A Ponte dos Espiões é um filme que surpreende pela multiplicidade de tons que se propõe a abordar, sugerindo a comédia e o ridículo nas situações mais tensas, e sombreando o triunfo com a tragédia humana que nunca é completamente exposta. Spielberg criou assim um belo exercício de eficaz convencionalismo cinemático. Este realizador americano é um dos cineastas contemporâneos que mais se deixa cair no seu amor por valores do passado e uma nostalgia cinematográfica bastante forte mas que, ocasionalmente, concebe obras como esta, onde isso nunca é um defeito mas sim um dos seus mais fascinantes aspetos e inteligentes decisões estilísticas.


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

STAR WARS: THE FORCE AWAKENS (2015) de J.J. Abrams



Eu sei que devia tentar evitar spoilers mas, tendo em conta que já passaram duas semanas desde a estreia mundial do sétimo episódio da saga Star Wars e que, segundo os números do box office, parece que metade da população mundial tem vivido dentro dos cinemas a ver o filme e dar o seu dinheiro à Disney, parece-me desnecessário ter tais precauções. Com isto dito, todos os que tiverem receio de spoilers afastem-se, saiam da página, arranquem os olhos. PAREM DE LER!


Já fiz o aviso obrigatório a este tipo de críticas. Continuemos.


A razão pela qual eu coloquei esse aviso acima e pela qual eu até percebo a fobia generalizada a qualquer tipo de spoilers do enredo de Star Wars: O Despertar da Força, é que, para mim, a completa ignorância em relação ao conteúdo deste filme possibilitou-me uma das melhores experiências que tive este ano nos cinemas. Eu não sou um fã devoto da saga Star Wars, mas admito que os filmes são dos melhores exemplos de entretenimento leve e eficiente a sair de Hollywood desde o final da era dourada dos estúdios. Estou, pois claro, a falar da trilogia original e não das desastrosas prequelas, onde apenas a música de John Williams e, em dois dos filmes, os figurinos de Trisha Biggar conseguem merecer algum mérito.

O Despertar da Força é uma perfeita máquina de deliciosa nostalgia, constantemente referenciando os filmes passados e deleitando-se numa réplica da estrutura narrativa do primeiro filme de 1977, pelo que é imensamente surpreendente que o filme contenha tantos prazeres mesmo para quem não é um completo apaixonado por esse universo cinemático. Há algo de energético e inegavelmente apelativo em relação a toda a obra, que consegue captar a atenção da audiência de modo constante mesmo quando se torna previsível ou preso a fórmulas narrativas do passado. Nas mãos de um realizador incompetente (George Lucas), o guião completamente inspirado nas narrativas da trilogia original teria sido um desastre de indulgência entediante, mas, graças ao trabalho de Abrams, de toda a sua primorosa equipa técnica e do seu elenco, O Despertar da Força é dos mais prazerosos filmes à disposição de qualquer cinéfilo nestes últimos dias de 2015.

A narrativa começa 30 anos depois de O Regresso do Jedi, quando Luke Skywalker está desaparecido e os Rebeldes, agora apelidados como a Resistência, estão a lutar contra as forças malignas da Primeira Ordem (basicamente o que sobrou do Império do passado), sem o seu lendário salvador. A partir desta premissa narrativa entramos numa espécie de colagem de pedaços do enredo dos primeiros filmes, com um novo Darth Vader, o filho de Han Solo (Harrison Ford) e Leia Organa (Carrie Fisher) que se autointitula de Kylo Ren (Adam Driver), a tomar um membro da Resistência, Poe Dameron (Oscar Isaac), como prisioneiro, forçando esse herói rebelde a enviar o seu companheiro droide, o adorável BB-8, para o meio de um planeta deserto, guardando um pedaço de informação crucial para os esforços da Resistência. Basicamente é o mesmo tipo de situação que inicia o primeiro filme com Poe a ocupar a posição de Leia e BB-8 a de R2-D2.




Dameron consegue eventualmente escapar com a ajuda de um dos dois protagonistas desta nova trilogia, Finn (John Boyega), um stormtrooper com uma consciência que renuncia à tirania dos seus mestres. No entanto, os dois acabam por se despenhar no planeta deserto, onde Finn encontra BB-8 e o Luke Skywalker desta nova era da saga, Rey (Daisy Ridley).

E agora uma pequena pausa nesta descrição da história, pois há que celebrar o facto de que, pela primeira vez num filme desta saga, a grande figura heroica, a entidade salvadora de todo o Universo, o Jesus Cristo da narrativa, é uma mulher. Num franchise corroído por um sexismo crónico desde o primeiro filme, é refrescante ver um tão grande esforço em iniciar a nova era da saga com uma clara evolução nos seus valores.

Como cereja no topo do bolo, Rey é uma fantástica personagem, maravilhosamente interpretada por Daisy Ridley num papel que a deverá catapultar para o absoluto estrelato do cinema de Hollywood se tudo correr bem. Ela bem merece, assim como todo o elenco. Praticamente todos os atores são brilhantes, e todos eles são fabulosas escolhas criando uma raridade cinematográfica que é essencial para uma saga deste género, uma coleção de numerosas personagens com quem a audiência quer passar o seu tempo e com quem quer crescer.

Ridley é, portanto, uma joia de carisma e surpreendente força e potente vulnerabilidade. Boyega é um achado cómico, um perfeito herói relutante para o panorama atual onde humor pós-moderno é a escolha de eleição. Oscar Isaac é uma supernova de charme e sedutora luminosidade de estrela de cinema, tornando impossível que a audiência o ignore ou que evite apaixonar-se pelo seu sorriso matreiro e atitude obstinada atitude de herói levemente arrogante. Adam Driver pega no tipo de conflito que Lucas tentou desajeitadamente conceber para Anakin Skywalker nas prequelas e torna-o uma dolorosa realidade humana, injetando uma complexidade estonteante no que poderia ser um completo cliché. A imaturidade e fisicalidade latentes no trabalho de Driver é de particular génio.




Não são só os nomes dos atores mais jovens que merecem ser mencionados. Carrie Fisher é uma presença que é sempre bem-vinda nos ecrãs de cinema, trazendo uma bela maturidade à sua personagem envelhecida. Mas é Harrison Ford que realmente se destaca, oferecendo o seu melhor trabalho de sempre na pele de Han Solo que aqui é uma espécie de Obi-Wan Kenobi para os novos heróis. E tal como Obi-Wan, Solo perde a vida na mais discutida cena de todo o filme, às mãos do próprio filho, como que numa grotesca paródia da confrontação entre Vader e Luke.

Quem não viu o filme e continuou a ler depois do meu aviso deve estar furioso de momento.
Continuando, mesmo nos seus mais dramáticos momentos, como a morte de Solo (estou a atirar sal para a ferida?) o filme oferece uma refrescante vitalidade na sua reinterpretação, que é maioritariamente bem conseguida. As únicas exceções negativas que eu me sinto forçado a apontar é a nova Death Star, chamada Starkiller, que apenas difere das originais pelo seu tamanho, e uma sequência a meio do filme que parece ser uma reprodução quase exata do ambiente na cantina do primeiro filme.

Nem tudo é perfeito, é verdade, mas O Despertar da Força brilha nos seus melhores momentos com uma intensidade perfeita para este tipo de cinema de entretenimento. A salientar é uma sublime luta de sabres de luz, que contém em si uma dolorosa fisicalidade nunca antes vista na saga, nem mesmo no Império Contra-Ataca.




Sinceramente poderia continuar a escrever e acabar com uma crítica de 4000 palavras, mas penso que me devo conter. O filme é simples nas suas intenções, que são as de entreter e de criar uma base sólida para o desenvolvimento futuro desta nova trilogia ao mesmo tempo que homenageia o passado da saga, e faz tudo isto com uma respeitável eficiência. O filme está longe de se encontrar livre de quaisquer problemas estruturais, narrativos ou mesmo formais, mas é uma delícia de cinema, perfeito para esta época festiva para qualquer pessoa que queira ir ao cinema simplesmente para ser deliciado por um espetáculo de ação e aventura sem grandes complexidades ou problemáticas desconfortáveis. Star Wars: O Despertar da Força nunca acabará em nenhuma lista pessoal de melhores filmes de 2015, mas certamente tem um lugar na dos meus favoritos do ano, e penso que, ocasionalmente, isso pode ser mais admirável que inovação, qualidade ou invenção artística. Só ocasionalmente.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Oscar Hopefuls, Jane Fonda em Youth



 Os Óscares têm uma esporádica afeição por honrar prestações de reduzidas durações. Trabalhos de atores que, em apenas alguns minutos, capturam a atenção da audiência e deixam um impacto inesquecível e incontornável nos seus filmes. Alguns exemplos são Viola Davis em Doubt, Hermione Badley em Room at the Top e Ned Beatty em Network, são alguns dos intérpretes indicados ao Óscar pelo seu trabalho em pouco mais de uma ou duas cenas nos seus respetivos filmes. Apesar deste tipo de nomeação não ser completamente incomum, premiar uma prestação tão diminuta é algo raro, sendo que a santa padroeira de tais atores é, sem sombra de dúvida, Beatrice Straight que, com pouco mais de uma cena, conseguiu ganhar o Óscar para Melhor Atriz Secundária pelo seu trabalho em Network. Este ano, mais uma atriz parece ter esperança de seguir o exemplo de Straight*.

 Ela é Jane Fonda, que em A Juventude/Youth, o novo filme de Paolo Sorrentino, interpreta Brenda Morel, uma estrela de cinema envelhecida que em tempos foi a grande musa do cinema de Mick Boyle, a personagem de Harvey Keitel. Sorrentino faz tudo para despertar a atenção da sua audiência, fazendo-a antecipar a chegada de Brenda, de quem se fala bastante durante todo o filme. Há uma carga de expetativas que se criam antes do primeiro vislumbre de Fonda, e, quando ela entra, é como um choque de explosiva energia.


 Infelizmente para Fonda, apesar de toda a antecipação que Sorrentino conjura para a sua entrada, o texto com que este presenteia a atriz é certamente um dos piores diálogos de todo este ano cinematográfico, independentemente da sua carga narrativa no desenvolvimento da personagem de Keitel. O autor italiano parece ter escrito Brenda como se ela fosse a namorada de um gangster num filme americano dos anos 30, apenas com uma considerável utilização da palavra ‘shit’ a diferenciar o texto desses filmes de décadas passadas. Conjugue-se isto com um visual que se aproxima do grotesco na sua extravagância, e temos, não um ser humano minimamente credível, mas sim uma ferramenta narrativa e estilística. Essa é, na verdade, uma descrição que não se restringe apenas à personagem de Fonda, mas sim a todo o elenco de A Juventude. Ela, como completa marioneta de Sorrentino, entra no filme, pega fogo à narrativa e sai, como uma total diva, completo com um dramático colocar dos seus óculos-de-sol.

 Fonda oferece um trabalho gritado na pele de Brenda Morel. É uma prestação que não tem sequer uma sugestão de subtileza, mas tem energia de sobra, o que também tem valor. Apesar do seu catastrófico diálogo e grotesca caracterização, Fonda oferece ao filme de Sorrentino uma intensidade proveniente do seu inegável poder de estrela. Ela é carismática e explosiva, grosseira e agressiva em todos os segundos que está no filme, e uma presença cheia de peculiar vitalidade. De um modo geral, apesar de estar terrivelmente escrita, a cena entre Keitel e Fonda é um tremendo sucesso, injetando uma necessária fogosidade no filme, e isso depende bastante do modo não modulado como a atriz cria esta diva. No final do diálogo, acabamos por concordar com ela, apesar da sua agressividade, e esta seria uma formidável, se monumentalmente problemática, participação, não fosse o facto de Sorrentino incluir no filme mais dois momentos com a atriz.



 Para quem não quiser ler spoilers do enredo de A Juventude, por favor pare de ler agora.
Os dois momentos de Jane Fonda depois desse infame diálogo com Keitel são breves, mas imensamente importantes para a generalidade do filme. Primeiro, voltamos a ver Brenda durante uma alucinatória cena em que Mick vê o que parece ser a totalidade das protagonistas dos seus filmes.


 Sinceramente, penso que é nesta breve cena que Fonda justifica os prémios com que tem sido recentemente agraciada. Há algo de intensamente rancoroso no seu olhar venenoso que transcende qualquer pueril texto que Sorrentino impõe aos seus atores. Infelizmente, o segundo momento de Fonda a seguir à sua confrontação com Keitel, não pede apenas à atriz que olhe ameaçadoramente para outro ator. Depois de  Mick se ter suicidado, vemos Brenda em completa histeria dentro de um avião, a pedir o perdão do seu realizador que ela ajudou a levar ao píncaro do desespero. Qualquer dignidade que a atriz conseguiu conjurar nas suas aparições anteriores se desvanece nestes terríveis momentos. Brenda é apresentada como uma harpia ensandecida com a sua peruca a cair e a sua face contorcida numa máscara de demoníaco desespero.

 Depois de ter aparentemente saído vitoriosa da sua confrontação com o realizador, esta diva é completamente exposta como uma cruel força de orgulho e destruição. Ela torna-se um símbolo de todas as supostas injustiças que deitaram abaixo a personagem de Harvey Keitel, e é consequentemente despida de quaisquer pretensões de ser mais que um simples arquétipo de monstruosidade feminina que Sorrentino decidiu colocar no seu problemático filme.

 Eu gostava de poder dizer que Fonda se eleva acima do ambicioso e terrível A Juventude, mas isso não é verdade. Mas, apesar de tudo isto, adoraria ver Jane Fonda de volta aos Óscares como uma nomeada, depois de ter alcançado a sua última nomeação em 1986 pelo seu trabalho em The Morning Afteruma prestação de semelhante intensidade e histeria. Neste momento, a nomeação de Fonda não é algo seguro, mas decerto que a nomeação aos Globos de Ouro ajudou. Por muitos que sejam os meus problemas em relação à personagem de Brenda Morel, e à prestação de Fonda, uma coisa é certa, depois de a vermos na sua incendiária confrontação com Harvey Keitel, é difícil nos esquecermos dela e da sua presença de absoluta estrela de cinema.




*A prestação mais curta a alguma vez ganhar um Óscar foi a de Judi Dench em Shakespeare in Love, mas Straight veio primeiro e, apesar de ter mais tempo de ecrã, tem ainda menos cenas que as três ocasiões em que Dench agracia o seu filme.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

YOUTH (2015) de Paolo Sorrentino


A Juventude Youth Sorrentino Michael Caine

 Em 2013 parecia que a crítica internacional, pelo menos a online, se tinha dividido em duas fações no que dizia respeito ao muito celebrado filme de Paolo Sorrentino, A Grande Beleza. Havia quem proclamasse a obra como uma das melhores do ano cinemático, enquanto outros a acusavam de ser um exercício em vazia opulência e superficialidade pueril. Eu, apesar de ainda não estar a escrever sobre cinema nesse ano, fazia parte da ideologia primeiro referida. Nesse filme, como na maior parte da sua filmografia, Sorrentino usava um estilo exuberante, bastante derivativo de Fellini, como instrumento para a criação de um mundo de superfícies tão belas como bizarras. O génio do autor italiano estava precisamente no vazio da suas visões, cuja falta de conteúdo humano era o próprio sujeito dos seus filmes. Em A Grande Beleza, a beleza é vazia e espetacular, e apenas no momento final somos confrontados com a totalidade de nada que se esconde por detrás de tal fachada, num momento de pulsante humanidade. Em Il Divo, Sorrentino usou a estrutura do filme biográfico para tornar um dos mais infames políticos italianos numa gárgula monstruosa, e tornar lenda grotesca as maquinações governamentais e criminosas da sua nação. Em Consequências do Amor, A beleza era como que atirada para os olhos da audiência como modo de salientar a solidão e desconexão absoluta na vida do seu protagonista, ao mesmo tempo que o realizador olhava com pena e acídico humor o enredo humano.

 Em A Juventude, o seu mais recente filme, Sorrentino volta a usar o seu característico estilo mas, infelizmente, o autor parece ter substituído o vazio superficial por uma tentativa de filosofia humana. O resultado final é, talvez, o maior desastre na carreira de um realizador que eu tinha vindo a adorar nos últimos anos.

 Depois de ter homenageado La Dolce Vita com A Grande Beleza, Sorrentino parece ter-se inspirado noutra das obras-primas de Federico Fellini para A Juventude, neste caso 8 ½. Neste novo filme, observamos a vida de Fred Ballinger (Michael Caine), um compositor inglês, enquanto este está recluso numa estância de luxo, na companhia do seu amigo Mick Boyle (Harvey Keitel), um realizador americano que está a desenvolver aquele que será o seu filme testamento, e ocasionalmente pela sua filha e assistente pessoal, Lena (Rachel Weisz). A juntar-se a este trio está uma coleção de outras figuras, muitas delas bizarras.

 Apesar do elenco estar repleto de sonantes nomes, e das personagens apresentarem-se como um vasto leque de excêntricas criações, como um ator tragicamente sério interpretado por Paul Dano, é na perspetiva dos dois amigos idosos que o filme se apoia. Convém dizer, há nessa perspetiva um absoluto elitismo, especialmente no modo como estas privilegiadas personagens olham e encaram o mundo à sua volta e seus humanos.

 Este referido elitismo é ainda mais forte e inescapável na abordagem de Sorrentino. O elitismo e superioridade deste autor não se trata apenas de uma manifestação de privilégio social, ou conhecimento artístico, pois no modo como Sorrentino fetichiza os corpos desnudos, envelhecidos e decadentes ou luminosos com a flor da juventude, há algo de desconfortável, senão eticamente dúbio.

 Por muito que esta observação autoral me irrite e destrua a experiência do filme, talvez o maior problema não seja o trabalho de realização, mas sim o horrendo argumento, uma verdadeira montanha de clichés mascarados de profundos pensamentos filosóficos. Tirando os dois protagonistas, o desfile de personagens bizarras nunca contém sombra de humanidade. Sorrentino quer fazer grandes reflexões sobre a vida, o amor, o envelhecimento, etc., mas parece preferir olhar com desejo, escárnio ou curiosidade juvenil as suas belas marionetas de carne e osso, do que se confrontar com qualquer complexidade humana que não corresponda ao seu mundo de superfícies extravagantes e emoções gritadas que pintam o filme como grossas pinceladas em tons ácidos e puramente artificiais. Tenho de honestamente admitir que, aquando do meu visionamento de A Juventude, quase tive pena do elenco que tem de se debater com tal monstruosidade textual, especialmente Michael Caine que, mesmo assim, é quem se demonstra como uma das poucas salva-graças de A Juventude.

 Fred Ballinger como interpretado por Caine não difere muito do usual modelo de protagonista dos filmes de Sorrentino. Jep Gambardella e Titta di Girolamo poderiam ter acabado por viver a sua velhice numa posição semelhante à deste compositor, mas há algo de indubitavelmente distinto na abordagem do veterano inglês. Caine consegue encontrar alguma emoção genuína no artifício sufocante de A Juventude, sendo o único membro do elenco que realmente encontra alguma réstia de humanidade nas marionetas de Sorrentino, algo essencial para que o filme tenha esperança de funcionar.

 Neste vazio de artifícios e pirotécnicas estilísticas, o restante elenco está completamente perdido. Harvey Keitel é bastante sólido, mas os desenvolvimentos tardios da sua personagem são completamente repentinos e nunca justificados no trabalho do ator. Weisz tem um monólogo cortante, mas rapidamente se torna num adereço vivo ao estilo do pseudo-Maradona que se passeia pelos cenários como um símbolo de decadência depressiva e glórias passadas, ou mesmo a Miss Universo que parece uma revista da Playboy que ganhou vida para atormentar os homens que a observam. Paul Dano perde-se por completo nas reviravoltas deste circo cinemático e Jane Fonda, muito admirada pela sua minúscula presença no filme, é uma explosão de enfurecida energia, onde, no entanto, qualquer sombra de complexidade, nuance ou subtileza foi completamente obliterada.

 Em contrapartida, os visuais, como seria de esperar, sendo este um filme de Sorrentino, são maravilhosamente concebidos como um espetáculo absoluto de visões ousadas e pitorescas. No entanto, é a sonoridade de A Juventude que realmente se mostra como a absoluta joia da coroa deste filme e sua luminosa salvação. A climática canção, Simple Song #3, é particularmente extasiante na sua gloriosa intensidade, simplicidade, e carga emocional. No seu clímax, o filme é glorioso e um dos melhores de 2015. É só pena o resto do filme que antecede estes derradeiros momentos.

 Uma sedutora mistura de epicúria e primor técnico fazem de qualquer obra de Sorrentino uma criação essencial, mas, ao fugir à abjeta superficialidade inteligentemente vazia que tem caracterizado o seu trabalho e tentando criar um filme cheio de sabedoria e filosofia barata, o realizador trai-se a si mesmo e constrói um dos seus piores filmes. Sorrentino parece propor-se a dissecar uma cultura obcecada com a juventude, a superficialidade, a glória passada, o vazio, mas o seu olhar é demasiado caracterizado por tudo isto para poder fazer algo mais do que simplesmente se deixa cair na indulgência dos seus próprios vícios. É triste, pois A Juventude contém em si o inequívoco potencial para ser algo infinitamente superior, que, infelizmente, nunca se materializa por completo na final construção do filme.