sexta-feira, 31 de julho de 2015

THE HOMESMAN (2014) de Tommy Lee Jones




 Por vezes existem filmes que necessitam de uma certa bagagem, de um certo conhecimento prévio dos códigos e fórmulas do cinema. Filmes que se empenham na desconstrução, ou pelo menos, na exploração das características do cinema em si, das suas especificidades e dos seus géneros particulares. Na sua segunda obra como realizador, Tommy Lee Jones parece ter-se, mais uma vez, embrenhado no mundo dos westerns, jogando aqui com as expetativas de uma audiência conhecedora do género, e explorando aspetos deste género, poucas vezes tratados na extensa filmografia que se estende no panorama cinemático americano desde os dias de hoje até ao início de Hollywood no princípio do século passado.

  Não é que The Homesman, seja apenas uma desconstrução de género, mas é certamente aquilo que mais me fascinou num filme com uma imensidão de ideias a voar à sua volta e que parece, em certos casos, encontrar enormes problemas na exploração dessas mesmas temáticas. O próprio modo como o filme foi filmado por Tommy Lee Jones e Rodrigo Prieto, pede comparações com as imagens cristalinas que emergiram da filmografia de tão lendários criadores como John Ford e Howard Hawks. A fotografia é, aliás, dos mais gloriosos componentes deste inesperadamente complexo western.

 O filme, num modo inicial, ocupa-se com a história de uma mulher solteira e com poucas oportunidades de deixar de o ser, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank) no velho oeste americano e que acaba por obter a responsabilidade de cuidar de três mulheres supostamente loucas, Arabelle (Grace Gummer), Theoline (Miranda Otto) e Gro (Sonja Richter), através do deserto rumo à igreja de um reverendo e sua mulher (Meryl Streep), que se disponibilizam para acolher mulheres em condições assim. No início da sua viagem Cuddy encontra George Briggs (Tommy Lee Jones), um homem perseguido que ela salva do enforcamento em troca da ajuda deste na travessia com as mulheres. Assim partem na sua viagem com as três loucas com quem não conseguem comunicar, sendo que o filme vai explorando tanto o lugar da mulher na sociedade da época,como as personalidades feridas e cansadas do seu par de protagonistas. Ou pelo menos é o que parece que o filme vai desenvolver.

 Não quero revelar muito sobre o enredo do filme, um enredo que, adaptado de um romance da autoria de Glendon Swarthout, me conseguiu realmente surpreender, especialmente no que diz respeito à trajetória dos protagonistas e à estrutura do filme que parece dividir-se em duas metades com uma metade focada em cada um dos dois protagonistas, Cuddy e Briggs. Tenho que dizer que acho a primeira metade muito mais interessante, sendo que no seu niilismo e completo vácuo de esperança ou alegria, a segunda metade torna-se demasiado pesada para a sua experimentação, perdendo algum do seu impacto, especialmente com os seus ocasionais devaneios de tom e tema como um interlúdio violento num hotel que acaba por nos oferecer uma das mais belas e pitorescas imagens do filme.

 Se bem que, essas variações violentas de tom e registo, são parte do que cria um ambiente de tanta surpresa e imprevisibilidade no filme e que vão rompendo com as tradições ossificadas que tanto caracterizam o típico western. Mas, ao mesmo tempo, a falta de coerência traz ao filme problemas, especialmente no seu desenvolvimento da figura da mulher na época do western, que é interessantemente explorada na figura de Cuddy, uma mulher que, apesar de tentar incorporar em si todos os dotes e preceitos de uma boa mulher da época, e que tanto quer casar com alguém, parece estar condenada a uma invariável solidão, nem que seja uma solidão puramente na sua psique. Mas que nas figuras das mulheres, vítimas da sociedade e da austeridade violenta da vida no oeste, que aqui perde qualquer misticismo ou glamour que lhe possamos associar, parece perder-se. Elas tornam-se mais ideias que personagens, o que é bom e mau para o filme, criando imagens e momentos inesquecíveis e de enorme intensidade, mas criando também imagens bidimensionais de cifras ensandecidas em forma de mulher. A figura feminina como uma vítima indecifrável do oeste americano, algo que parece funcionar nas motivações opacas de Cuddy, mas que se torna bastante dúbio e, talvez, ineficaz nas figuras das três mulheres loucas.

 Mas complementando a aparente discordância temática e de tom, vem a concretização técnica do filme, que tudo faz para pegar nessa discordância e a tornar numa escolha deliberada e estilística, elevando todo o filme com isso. O som, em particular, é de salientar, usando efeitos sonoros expressivos e volumosos com uma banda-sonora da autoria de Marco Beltrami que torna toda a paisagem sonora do filme em algo alienígena e estranho. Junte-se à violenta atmosfera sonora com a fotografia que parece querer criar imagens cristalinas e potentes com uma inegável beleza estética, e temos um filme de intencionais contrastes e dissonâncias.

 A fotografia cheia de beleza estética é particularmente interessante, tendo em conta o modo como a cenografia de Merideth Boswell e os figurinos de Lahly Poore criam um mundo de paisagens e casas áridas onde as pessoas parecem enclausuradas em roupas desconfortáveis e rígidas, sujas, mas com pretensões de respeitabilidade. Existe uma beleza na criação da vida dura do Oeste, sendo que a fotografia de Pietro é, mesmo assim, essencial em diferenciar o filme de tantas outras duras e realistas representações da mesma época. O filme parece, a partir dos seus visuais e sons, comentar o modo como o próprio género cinematográfico que é o western glorifica e embeleza uma existência de interminável sofrimento e de uma natureza violenta e estéril, ignorando essa rudeza da realidade ou glorificando heroicamente esse mesmo sofrimento.

 A acompanhar este inspirado trabalho técnico vem o trabalho do elenco, que apesar de ter os seus limites textuais, especialmente no que diz respeito às três mulheres loucas, consegue trazer uma coleção de interpretações exemplares que parecem concretizar perfeitamente a visão de Jones. Swank é particularmente eficaz naquela que é, para mim, a sua melhor interpretação desde a sua vitoriosa performance em Boys Don’t Cry, trazendo uma vulnerabilidade inesperada ao seu trabalho e uma dureza e força superficial à sua postura. Apenas James Spader me desiludiu, mas isso é tanto um problema de interpretação, como é um problema de casting.

 Apesar de certos problemas com o guião, especialmente de um ponto de vista de análise feminista da segunda metade, o filme traz uma inesperada experimentação a um género que nos passados anos tem parecido perdido e sem rumo, mas a que Jones dá uma nova energia e vigor. Mesmo que nada traga de novo, este é um filme que me faz esperar antecipadamente a próxima aventura deste criador no papel de realizador.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

MADAME BOVARY (2014) de Sophie Barthes



 O que é que faz de um filme uma adaptação de uma obra de literatura? Uma transladação eficiente das intenções do autor literário para uma plataforma cinematográfica? Uma exploração nova por parte do autor do filme sobre a obra, criando uma obra independente da sombra do livro em si? No caso de uma obra como Madame Bovary, uma representação da psicologia das figuras literárias?

 Não quero afirmar desde já que a adaptação de Sophie Barthes da obra máxima de Gustave Flaubert, é uma boa adaptação literária em filme, mas quero desde já apontar para o facto que o filme desta realizadora (a primeira mulher a filmar esta tão adaptada obra) de certo modo falha todos os parâmetros acima referidos.

 Mas falha de um modo fascinante, não parecendo de todo ter como sua intenção suceder a nenhum desses parâmetros.

 Isto é possibilitado, em parte, por um guião que corta partes aparentemente essenciais da obra, como o facto de eliminar o final do livro, ou mesmo a filha do casal no centro do enredo. O outro elemento fulcral para esta minha conclusão acerca do filme é o modo como o filme observa e representa a figura central de Emma Bovary.

 Nas mãos de Barthes e da sua atriz principal, a australiana Mia Wasikowska, Emma Bovary nunca deixa de ser uma completa cifra para a audiência, algo a ser observado à distância com um olhar e motivações impenetráveis tanto pelo observador como, em certos momentos, pela própria personagem. Um momento em que Wasikowska se olha n um espelho lembra um momento semelhante em New York, New York (1977) em que Martin Scorsese dirigiu Liza Minnelli, indicando-lhe que apenas pensasse em não pestanejar os olhos, criando um olhar vítreo e impenetrável no produto final do filme. Tal como nesse momento do filme de Scorsese, persiste sobre Madame Bovary uma aura de estranheza em relação à sua figura central assim como uma aparente relutância de todos os envolvidos para interpretar, explorar ou resolver a personagem de Emma Bovary.

 O trabalho de Wasikowska é essencial no sucesso de tal retrato distante e essencialmente superficial de uma tão célebre figura literária que lembra o seu semelhante trabalho em Jane Eyre de Cary Fukunaga. Enquanto nesse filme, a atriz parecia conter no seu olhar uma vida interior nunca expressa pelas suas ações, neste filme o contrário existe, sendo que temos uma figura cheia de ações e reações externas cuja interioridade nos é completamente inacessível. Muitos dirão que isto é um defeito inabalável do filme, mas para mim uma interpretação assim confere algo especial ao filme, algo que o separa da infinidade de adaptações banais desta mesma obra que se espalham pela história do cinema como ervas daninhas a tentarem fazer-se passar por rosas.

 Ao negar a exploração ou mesmo a visibilidade ou mera compreensão de Emma, o filme nunca cai nos erros de simplificação ou interpretação forçada que atormentaram e afetaram outras mais célebres adaptações da obra de Flaubert, como o sufocante trabalho de Claude Chabrol de 1991. A distância que mantém da sua protagonista é também imensamente ajudada pelas escolhas textuais brevemente mencionadas anteriormente, mas também pelas escolhas de Barthes no que diz respeito ao restante trabalho de ator do filme, assim como aos aspetos formais do filme.

 Uma das escolhas mais discutidas da realizadora, foi o facto de esta ter decidido usar um elenco com sotaques deliberadamente díspares, não existindo, de todo, o normal sotaque inglês de filmes de época. Pondo logo de parte o facto que este é um filme passado em França no século XIX, e não em qualquer país de língua inglesa, há que observar o modo como tal escolha contribui para o jogo de distanciamento que parece caracterizar o filme. Isto é particularmente evidente quando temos cenas com um elenco maioritariamente a utilizar sotaques americanos, alguns deles com um toque de contemporaneidade que parece sempre chocar com todo o ambiente envolvente. A própria linguagem parece distanciar-se da narrativa, das personagens, da própria realidade em que os eventos do filme se desenrolam.

 Esse distanciamento da realidade dentro do próprio mundo do filme nunca é melhor expresso do que quando observamos os figurinos de Emma Bovary em relação ao mundo que a rodeia. O trabalho dos figurinistas deste filme (Christian Gasc e Valérie Ranchoux) em obras como Adieux à la Reine, deixou-me no passado bastante insatisfeito, mostrando um certo amadorismo e estilização desajeitada que nunca pareciam corresponder às produções onde se inseriam. Tal não acontece aqui.

 Visualmente, é impossível não olharmos para a figura de Emma sem nos apercebermos da sua desconexão com tudo o que a rodeia. Enquanto o resto do elenco do filme parece trancado numa estética de elegante reprodução de vestuário de época, um tanto ou quanto banal e tradicional, a figura de Wasikowska emerge constantemente como um figura estranhamente estilizada e colorida no meio do filme. As suas roupas parecem emergir de um filme completamente diferente, especialmente no que diz respeito à cor, sendo que em quase todos os planos em que se encontra presente, a figura de Wasikowska rasga a composição como uma pincelada de cor ácida e agressiva, quebrando e desequilibrando até as mais idílicas e pastorais imagens atraentemente capturadas pela fotografia de Andrij Parekh.

  Bovary é assim quase que incompreensível tanto para si, como para a audiência, como para o próprio mundo físico que a rodeia. Ora um insecto colorido ora uma flor tropical no meio de uma paisagem classicamente romântica. A distância, até visual, que Barthes insiste em impor à sua protagonista faz desta adaptação, não perfeita ou particularmente excitante, mas faz dela uma adaptação diferente. Quando falamos de uma obra que já foi tantas vezes adaptada, um pouco de surpresa e um pouco de variedade de intenções é muito mais do que a grande maioria deste tipo de adaptações de obras literárias de prestígio tem para oferecer.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Hit Me With Your Best Shot: SAFE (1995)


 Ao invés dos textos que tenho vindo a publicar neste blogue até agora, aqui está a minha contribuição para a maravilhosa série do blogue The Film Experience de Nathaniel Rogers. O objetivo é escolher um plano de um filme específico, sendo que o exemplo de hoje é Safe de Todd Haynes. Como este é um texto feito para uma série de um blogue americano, o texto será excecionalmente em inglês.


  Having never participated in The Film Experience’s Hit Me With Your Best Shot series, or any series of this sort, I was feeling invariably unprepared when faced with the challenge of picking my favorite shot from what I considered one of the most essential films of American cinema, Todd Hayne’s Safe.

 I tried, initially, even before watching the film with the intention of picking a shot, to reduce the aspects of the film that most fascinate me, that most refuse to leave my head even after the several years since I watched it for the first time. What I came up with was basically this:

·         Julianne Moore's performance
·         The use of space, especially the interiors
·         The themes of victimhood and self-culpability

 Without even watching the film again, I already had in mind a shot that would exemplify my thoughts on two of those aspects, Julianne Moore and the exploration of self-culpability. This shot:


Runner-up

 It’s the last shot of the film and it accompanies the last words spoken in the film. “I love you”. Words have never felt more tragic or perverse.

It’s an amazing image and the perfect ending for the film and for a while this was my best shot, it was perfect, and it was a shot that I still could remember, it was so embedded in my mind that I simply couldn’t forget it even after all this time. I even started writing my defense of it as my best shot.

 But then I decided to watch the film again.

 This time around, after having already fully processed the genius of Julianne Moore before, my attention was drawn mostly to the spaces in the film. Mostly the interiors and the way the character of Carol is positioned in the shots, as if a prolongation of the geometry and coldness of the set design.

 I was particularly enthralled by the use of rectilinear shapes and lines throughout the film. There’s a certain sparsity of circles and curved lines in the first half of the film, contrasting greatly with the second half where circular lines seem to overpower the compositions, culminating in the igloo-like building Carol ends up in.

 This is a great contrast to the way the first half uses straight lines and especially rectangles to construct its visual world. There are frames everywhere, be it picture frames or door frames, or frames that are singularly created by the way Haynes positions his camera. This is a world of rigidity, of boxes in which Carol is inserted, very rarely breaking the geometry of the shot, she is mostly seen as being a part of the harmonious compositions.

 Here is small collection of shots from the film where you can see some of what I’m referring to:






 The camera rarely moves in the first half, and, when it does, it’s usually in push-ins emphasizing Carol and her position in the frame. This general lack of movement, combined with the extensive use of long shots, makes for a distant and cold look at the world we’re observing. The way the camera is often positioned above the characters helps even more in the general sense that we’re watching a space where humans exist, rather than watching the humans that happen to exist in this space.

 It’s like watching the antithesis of Renoir, for example, who used movement in ways that defined and explored the three-dimensionality of space. Here despite the compositions and set design highlighting the depth of the space where the people are inserted, there is an almost two-dimensional flatness in the way the scenes unfold. Frames and rectangles rather than tridimensional rooms where people actually live. Life seems almost impossible in this spaces despite the generally naturalistic way in which the sets seem to be designed.

 In the second half of the film, the camera actually starts to move with the characters. In many cases, it follows Carol through Wrenwood, but rather than opening the space, this technique only manages to actually entrap Carol in the frame even more- If before we could envision her leaving the frame, and escaping our eyes, in Wrenwood, escape from observation seems impossible.

 In the first half of the film she is suffering from what seem to be exterior causes, she is victimized by her world, by her environment. In the second, by contrast, she is told she is the cause of her illness. She is still a victim, but she’s also the destroyer of herself. Positivity is perverted into a game of self-blame that eventually culminates with the ending I’ve mentioned before. The film thus seems to follow this thematic differences with its visuals. In the first half the emphasis is on the space and its oppressive relationship with the figure of Carol, in the second we have something more invasive, more predatory in the way I visualizes Carol and her blankness.

 This left me with a particularly difficult conundrum, what half of the film should I pick the shot from?

 I ended up deciding to go with the first one. Not that the second half is less visually arresting, but there’s a cold geometry to most of the first half that attracts  me to it, much more than the roundness, bleakness, and general lack of color of the second. Which is sort of a ridiculous thing to say when considering the shot I chose and the reasons behind the choice.


Best Shot


This shot occurs very early in the film when Carol sees the sofas she just bought and realizes they came in the wrong color. They are black and contrast sharply with the rest of the house, black rectangles disturbing the aesthetic order of Carol’s suburban environment. 

Unlike with most of the shots inside the house, the camera actually moves, creating a diagonal lines in the composition, obscuring the perfect rectangle created by the curtains that cover the windows (I think there’s not a single shot of the house where we can actually see the exterior). The doorframe, although only partially visible, becomes a frame inside the frame to the rest of the house, where the maid eventually appears after Carol calls her.




The diagonal lines may point at Carol complaining on the phone about the sofas, but the placement of the maid in the shot almost makes her the center of the shot rather than her employer.

 The maid is bigger in the frame than Carol. While the maid is wearing a blue uniform and yellow gloves, Carol almost disappears in the shot due to the way her costume blends with the colors of the set. The way she's positioned, looking at Carol from above almost puts her in the position of a superior judging observer, almost mimicking the way the camera shoots Carol throughout the film.

 It may not be the most beautiful of shots but there’s a strangeness in it that captivates me. When compared to the rest of the shots that feature the interior of the house it stands out mostly for its movement, but the end result is basically the same, the audience observes distantly as Carol is consumed by the visual space she inhabits. 



terça-feira, 28 de julho de 2015

TIMBUKTU (2014) de Abderrahmane Sissako




 Vivemos numa época em que a ameaça dos fundamentalistas islâmicos parece emergir com cada vez mais tenebroso poder todos os dias, como uma sombra de opressão crescente na nossa sociedade moderna. Com tal presença nas nossas vidas é impossível caminhar para um filme como Timbuktu sem uma certa carga de expectativas e opiniões preformadas. Mais do que qualquer mensagem política, o filme que retrata a vida em Timbuktu no Mali sob o recente controlo de fundamentalistas islâmicos, este filme revela-se como um filme fortemente humanista, onde a exploração sensacionalista da violência do enredo nunca se verifica, substituída por uma frieza distante e bela, intercalada com um olhar sardónico e irónico sobre a futilidade ridícula e cruel das tentativas de opressão religiosa e violenta contra os habitantes de Timbuktu.

 Talvez a maior ironia do filme seja mesmo o suposto impulso religioso e purificador dos invasores à comunidade, com a forçosa virtuosidade religiosa a ser imposta violentamente à população, ao invés de criar um ambiente de ordem pura, cria um inferno terreno, onde o sofrimento humano parece transpirar da própria paisagem que envolve todo o filme num manto de dourado constante em contraste com o azul suave do céu. Um mundo ora belo e simbólico do mundo existente independente do conflito humano, como imagem da prisão que envolve e esmaga as figuras humanas ao longo do filme.

 A paisagem parece prolongar-se na própria arquitetura local, unindo a vida humana e a natureza envolvente. A comunidade de Timbuktu está ligada ao seu lugar físico no mundo. As suas tradições e imagens culturais, como esculturas femininas africanas, são uma prolongação de um sistema vivo invadido por uma força exterior destruidora. Uma força que ora destrói os humanos e seus símbolos, ora parece envenenar a própria natureza como numa cena de uma violência imensa em que um casal é enterrado na areia e executado pelos fundamentalistas.

 O indivíduo é aqui literalmente soterrado pela paisagem, preso ao materialismo físico da sua posição no mundo, e atacado pelo humano violento que tudo corrói na sua procura por ordem e poder.

 Outra imagem inesquecível no filme, talvez até o seu mais celebrado momento, mostra-nos um assassinato num lago, durante o fim do dia. Uma personagem até aí, o centro moral do filme para a sua audiência, é mostrado numa cena de violência despropositada, inserido na paisagem envolvente. A câmara distancia-se da ação, friamente e esteticamente. A água reflete o dourado do céu do crepúsculo iminente. É assim que o mais cortante momento de perversão moral humana é apresentada como silhuetas em movimento distante que quase se esvanecem na luz líquida que enche o olho do espetador. O mundo impõe-se ao indivíduo, julgando-o, expondo-o e envolvendo-o na sua perversão humana e no seu crime.

 Descrevi duas imagens poderosas, mas há que admitir que todo o filme é magnificamente filmado. As imagens apresentam uma precisão geométrica na composição mais comum do cinema europeu que do mais cru e direto cinema africano. As cores intensas tornam cada imagem uma pintura viva e em movimento. A paisagem e a sua beleza são inescapáveis. Um contraste doentio é assim criado entre a precisa e esteticamente bela imagética e a temática da crueldade humana sobre o ser humano. O contraste é central ao filme e essencial na criação do olhar que para mim caracteriza o filme. Um olhar distante, cheio de compaixão mas frio, observando o ridículo do comportamento humano com ironia e ao mesmo tempo piedade.

  Ajudando a isto vêm também os fabulosos figurinos que cobrem a paisagem cromaticamente simples com os seus azuis e laranjas dourados do deserto, com uma infinidade de pinceladas coloridas até que as regras religiosas impostas à comunidade vão substituindo as suas vestes por roupas negras que cobrem todo o corpo feminino, até as mãos com longas luvas que estão no centro de uma das mais brilhantes cenas do filme em que uma peixeira se recusa a usar luvas no seu trabalho provocando uma altercação pública com os homens que patrulham as ruas.

 Esse tipo de momento de conflito entre a comunidade e os seus invasores e suas normas violentamente impostas marca o movimento rítmico do filme. Uma narrativa principal de Kidane, um dono de gado, e seus conflitos com um pescador próximo e com as novas leis impostas sob o regime dos fundamentalistas islâmicos, é constantemente entrecortada com uma crescente torrente de violência como consequência dessas mesmas leis, desde chicoteadas a apedrejamentos até à morte, sendo que a violência se vai intensificando ao longo do filme, sempre e olhada com a mesma distância que tanto parece transmitir frieza como respeito pelas vítimas de um regime injusto e desumano.

 Apesar de toda esta sufocante seriedade e desfile moribundo de sofrimento e injustiça humana, o filme é cheio de momentos de humor negro e seco, nomeadamente à custa dos próprios invasores e sua incapacidade de viver com as suas próprias regras de conduta, assim como de viver com o seu papel de controlo sobre uma comunidade invadida. Cenas como discussões de futebol, que é proibido pelas leis novas, ou uma tentativa falhada de fazer um vídeo de propaganda, são espalhadas pelo filme cortando o sofrimento com um certo ridículo, quase que tornando a crueldade do filme ainda mais forte, mostrando o lado humano e ridículo dos próprios invasores e carrascos das figuras humanas do filme. A violência parece nunca ser mais ácida neste filme, do que quando é cortada com uma exposição do ridículo por detrás da violência em si.

 Sissako nunca deixa o filme cair no miserabilismo sem sentido, chegando a um nível de precisão formal e rítmica impressionantes para um filme que sob a sua beleza estética e momentos de humor negro, vibra com uma fúria impossível de ignorar. Olhamos os crimes cometidos no filme à distância, respeitamos as vítimas em silêncio, os gritos de agonia parecem transparecer como momentos precisos na mise-en-scène, mas a experiência total do filme é uma de raiva moral e humanística, um grito elegante pelo fim do comportamento desumano que marca cada momento do filme que termina com uma imagem ao mesmo bela e aterrorizante de uma inocente a correr no deserto, quase que uma última esperança de fuga ao mundo exposto no filme até então.




segunda-feira, 27 de julho de 2015

QIU JU DA GUAN SI (1992) de Yimou Zhang




 É usual, quando se fala em longas e prolíferas parcerias entre atores e realizadores,  mencionarem-se associações como De Niro e Scorsese, Ullmann e Bergman, Farrow e Allen, e até Mifune e Kurosawa. Um outro par que parece seguir o caminho trilhado por estas célebres colaborações é a de Yimou Zhang e a sua musa por excelência, a luminosa e impossivelmente bela, Li Gong, com quem já fez até à data sete filmes, incluindo criações tão admiráveis como Da hong deng long gao gao gua de 1991 ou Ju Dou de 1990.

 É interessante mencionar esses dois filmes, pois são os filmes na carreira de Yimou, que imediatamente antecedem este filme. Se nessas outras obras havia quase que uma romantização visual de um mundo cruel e frio, tendo este antigo diretor de fotografia trazido à crueldade humana uma beleza estonteante, aqui vemos uma fuga para um realismo mais simples e mais interessado numa crítica social, que apesar de presente, nunca havia sido tão óbvia nas suas obras anteriores com esta atriz.

 O filme retrata a busca de uma camponesa por um pedido de desculpas pela parte do líder da sua comunidade rural, depois de este ter pontapeado o marido de Qiu Ju nos testículos. Para conseguir esta simples justiça, a protagonista irá passar pelas mais ridículas explorações do sistema burocrático chinês até que no final do filme, obtém uma aparente justiça. O sistema que até não parecia surdo e inativo, castiga de modo desmesurado o líder da comunidade, algo que Qiu Ju nunca teria tentado causar.

A palavra sátira parece apropriada a esta estranha comédia realista, em que o realizador parece apontar o dedo a uma sociedade e a um sistema burocrático contemporâneo em que nada parece resultar do modo que deveria, e em que os seres humanos afetados pelo sistema parecem sempre ser uma consideração esquecida. E dentro dessa sátira, o filme parece ir em busca de um grande realismo, podendo-se mesmo comparar este filme com as grandes obras realistas que deflagraram pela Europa no período do pós-guerra, pelo menos na minha muito pessoal perspetiva.

Veja-se a insistência em usar o dialeto singular da região onde o filme tem o seu começo, um dialeto que seria familiar para o realizador que aqui utilizou as suas origens humildes na criação de um incisivo retrato social. O próprio modo como o filme vai utilizando locais reais, avançando de um mundo rural e subdesenvolvido para as crescentemente caóticas paisagens urbanas, mostra uma preocupação com um realismo aplicado a uma contemporaneidade sofredora mas resiliente.

E não são só as palavras das personagens ou o visual do seu espaço envolvente, mas também o sempre presente som que parecem procurar um realismo cru. O modo como a música tradicionalmente chinesa e os constantes sons de rua se unem na criação de uma paisagem sonora de considerável verismo, também é essencial na construção realista desta trama social.

O filme inicia-se, expondo logo os seus interesses realistas e sociais. Vemos uma multidão na rua. A câmara não se parece focar em nenhum destes indivíduos em particular, sendo que lentamente percebemos quais são os nossos protagonistas emergentes desta amorfa massa de gente. O filme parece condicionar-se a si próprio como apenas uma de várias histórias de vida que se vão desenrolando em paralelo à trama dos nossos protagonistas, que são apenas alguns indivíduos numa imensidão de pessoas nessa sobrepopulada nação que é a República Popular da China.

Há que lembrar, no entanto, o caráter cómico deste filme. Apesar de todo o seu dramatismo apoiado numa base realista, este filme é uma espécie de comédia. Aproxima-se muito mais das estranhas comédias negras que marcam a produção cinematográfica da Europa de Leste do que da maioria das comédias americanas, muito mais presentes no nosso panorama cinematográfico geral. O modo como o próprio comportamento das pessoas envolvidas no desenrolar do enredo parece sempre pretender uma certa delicadeza e gentileza natural, impedem o filme de chegar a quaisquer níveis de melodrama, havendo sempre uma curiosa e extremamente insistente simpatia humana neste filme, que na sua exploração social consegue adquirir um grande caráter humanístico.

 Voltemos ao início deste texto e lembremo-nos de Li Gong e sua contribuição indispensável ao sucesso geral desta produção. O filme apoia-se no trabalho da sua protagonista sem no entanto descurar a vida das suas outras personagens. Repare-se no modo como a câmara raramente dá a esta estrela do cinema chinês, a proeminência que seriam de esperar. Li Gong nunca é uma presença demasiado forçada no filme, cedendo qualquer holofote que lhe possamos querer oferecer e sempre se reduzindo ao seu papel como outro elemento deste jogo burocrático que o filme insiste em retratar.

 Há, no entanto, um momento em que Gong Li é tratada como a estrela e como a luminosa presença que é, falo dos momentos finais do filme. Esses momentos são, sem dúvida, os mais dramáticos e de caráter mais trágico em todo o filme. A comédia e a sátira parecem tomar um lugar de menos relevo em relação a uma emergente tragédia humana e tudo isto pode ser lido no trabalho de Li Gong, cuja expressão de angústia ocupa o ecrã nos últimos momentos do filme, quase que nos forçando a ver o elemento humano por detrás de toda esta história. Yimou e Li, impõem-nos esta imagem humana, este reforço de que, apesar de toda a sua exploração social e burocrática, este é um filme interessado nas pessoas que explora e não apenas em ideologias e imagens vazias de humanidade.