sábado, 6 de fevereiro de 2016

THE HATEFUL EIGHT (2015) de Quentin Tarantino




Vamos falar de Os Oito Odiados através do prisma do cinema político.

Se não tiver afugentado os meus leitores com essa proposta, prossigamos.

Se há um género cinematográfico intrinsecamente americano é o western. Desde a sua génese que este tipo de cinema se tem desenvolvido em consequência de alguns dos mais repugnantes preconceitos enraizados firmemente no âmago da identidade cultural americana. Curiosamente, este mesmo género, cujo berço é o ódio racial que resultou num quási genocídio de uma inteira etnicidade, foi também o veículo de inúmeras narrativas que puseram em questão esses mesmos preconceitos de um modo que mais nenhum género poderia fazer aquando da era dos grandes estúdios.

A partir do final da década de 40, o western tornou-se a plataforma de questionamento racial e moral no cinema americano. Autores, que outrora construíram as suas inteiras carreiras sobre os maliciosos preconceitos contra os nativos americanos, eram os primeiros a colocarem em questão toda a visão do mundo que os seus triunfos passados exacerbaram. John Ford foi um desses realizadores, Howard Hawks foi outro, explorando principalmente as ideias de heroísmo masculino enquanto falácia moral de uma inteira cultura, Fred Zinnemann pegou no género e tornou-o numa ferramenta de questionamento político sob a pátina do passado histórico, Nicholas Ray desafiou quaisquer fórmulas que posicionavam as mulheres como objetos sem agência nas mais adoradas narrativas populares americanas. Estou apenas a mencionar um número reduzido de autores, mas isto foi algo bastante generalizado, mesmo filmes tão medíocres como Broken Lance apresentam na sua narrativa uma transgressora e desafiadora avaliação de injustiças culturais.

Quando o spaghetti western emergiu, foi no seguimento de todos estes discursos fortemente políticos se terem tornado completamente inseparáveis do western americano, pelo que, não será de admirar, que o seu maior mestre e mais famoso autor tenha levado estas ousadas abordagens a níveis ainda mais fascinantes. Seguindo um pouco o exemplo de John Ford em filmes como The Man Who Shot Liberty Valance, Leone direcionou o seu olhar crítico para a estrutura de narrativas míticas que sempre tinha servido de base para os westerns de Hollywood. Arquétipos eram propostos como figuras de cuidado exame humano, a História americana era misturada com a história do género cinematográfico e exposta à audiência em forçosa demanda de reinterpretação.

Com tudo isto dito, é fácil perceber a escolha de Quentin Tarantino deste mesmo género para a construção dos seus dois filmes mais abertamente políticos, Django Libertado e Os Oito Odiados. É sobre esse segundo filme que aqui me proponho a falar, pelo que esqueçamos os numerosos problemas de Django durante a maioria desta análise.




A nona longa-metragem de Tarantino é um dos filmes mais abertamente sobre ódio que eu alguma vez vi e todas as personagens que nele se encontram, ou pelo menos os oito do título, são criaturas que estão longe de qualquer nível de básica humanidade, sendo claros símbolos usados pelo autor na sua exposição da podridão moral e filosófica da sociedade americana. A própria especificidade temporal e geográfica da narrativa aponta para uma cuidada ponderação de um discurso político aplicado à construção do filme. Nos anos que se seguem à guerra civil americana, quando veteranos dessa mesma calamidade bélica ainda vivem em comunhão com os seus inimigos de outrora, encontramos uma diligência a atravessar a gélida paisagem das Montanhas Rochosas do Oeste Americano. Os viajantes nela contidos são uma grotesca e odiosa criminosa, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), e seu mercenário captor, um caçador de recompensas pelo nome de John "Hangman" Ruth (Kurt Russell). Depressa este duo é complementado pela presença de mais um caçador de recompensas, Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), e do suposto novo xerife da cidade para onde todos se dirigem, Chris Mannix (Walton Goggins). O pai de Mannix era um soldado sulista e Daisy depressa se revela como uma enfurecida racista pelo que os dados são imediatamente lançados para uma explosiva mistura de personalidades em constante e tempestuoso ódio uns pelos outros. Acrescentamos a isto a flagrante misoginia de Ruth, que está constantemente a espancar a sua prisioneira com resultados crescentemente grotescos, e a coleção de acídicos preconceitos e monstruosas personalidades abusivas apenas aumenta.

A tempestade eventualmente piora, forçando todo o grupo a se refugiar numa estalagem, cuja dona está aparentemente ausente. Nesse estabelecimento, este quarteto torna-se no grupo de oito apontado pelo título. As personagens que ainda me falta apresentar são Oswaldo Mobray (Tim Roth), o carrasco inglês que irá supostamente assegurar a execução de Daisy, Bob (Demian Bichir), um mexicano amistoso a quem terá sido deixada a responsabilidade de cuidar do estabelecimento durante a ausência da sua dona Minnie, Joe Gage (Michael Madsen), um cowboy de poucas palavras e mínima caracterização, e o general Sandy Smithers (Bruce Dern), uma verdadeira lenda envelhecida da Confederação.




Será fácil de deduzir, depois desta sumária introdução, como não nos encontramos na presença de personagens, mas sim de figuras simbólicas, peças de xadrez em forma humana com a qual Tarantino pode jogar uma horrenda partida contra as hipocrisias da sociedade, História e cultura americanas. Ao reunir estas odiosas figuras, o autor constrói algo semelhante a um barril de pólvora narrativo cujo pavio está obviamente aceso desde a reunião de todas as personagens no mesmo espaço fechado. De modo semelhante ao que já tinha feito em Cães Danados, Quentin Tarantino deixa o seu filme prolongar-se enquanto leva a sua audiência a sanguinariamente antecipar a explosão inevitável, que aqui se materializa, como seria de esperar, numa completa carnificina de onde ninguém sai ileso.

Com esta criação de forte teatralidade e classicismo dramático que quase chega a níveis aristotélicos, Tarantino, ignorando quaisquer conceitos de politicamente correto, cria uma exposição de alguns dos mais horrendos aspetos da sua nação. Este é um filme em que uma carta de Abraham Lincoln, abertamente apontada como uma falsidade, é tida como uma espectral presença de nobreza americana, mesmo pelos mais odiosos racistas e apoiantes de escravização humana, e também é uma obra em que a única personagem afro-americana de alguma relevância tem o seu maior momento de triunfo jubilante aquando do recontar da violação sexual que fez ao filho de outra personagem antes de o matar a sangue frio. Aqui está a América que Tarantino expõe, uma nação que sobrevive em hipócrita exacerbação de superficiais valores de nobreza moral e histórica, que, na verdade, é um poço de preconceitos e desumana violência.




Na sua acídica exposição dos EUA como esta monstruosidade de uma nação, seria de deduzir que Tarantino se cimentasse como um dos mais interessantes realizadores de cinema político no panorama americano, ousado o suficiente para questionar os valores da sua audiência e atacar as próprias fórmulas que está a homenagear na sua estética. No entanto, para mim, isto não se verifica, de todo.

Como já apontei, na sua construção da narrativa, Tarantino recorreu a fórmulas e mecanismos já por si mesmos popularizados e mestrados. Aliás, esta é uma obra inteiramente construída sobre a base do estilo habitual do realizador. Por muito que o seu discurso fora do filme possa apontar, há muitos poucos riscos estéticos na construção de Os Oito Odiados. Mais à frente tentarei mencionar esses alguns contraexemplos positivos, mas, de momento, peço que aguentem a minha enfurecida crítica por mais algum tempo.




Portanto, ao contrário dos autores do passado por si abertamente admirados, Tarantino não ousa em desafiar a sua própria linguagem cinematográfica. Para quem tem uma voz autoral tão característica isso não seria algo inquietante, mas nessa relutância em desafiar o seu discurso artístico e a audiência já acostumada a esse mesmo discurso, Tarantino mostra a primeira das suas fragilidades aquando da abordagem da podridão americana, por ele mesmo exposta, em Os Oito Odiados.

Mais do que criticar, desafiar, desmantelar, desconstruir ou mesmo confrontar estes aspetos horrendos dos EUA, Tarantino, caindo no seu usual gosto por carnificina e violência verbal, acaba por construir todo o filme como uma violenta celebração desses mesmos males. Mas Tarantino não é Stanley Kubrick e não teve a mínima coragem para propor à sua audiência um reexame destas facetas, pelo contrário. Para quem seja afetado por estes mesmos preconceitos, o filme será certamente uma ótima exacerbação dos ideias já enraizados na sua filosofia, para quem se oponha, o filme força a festejar esses mesmos aspetos. Em resumo, ao contrário do que eu pessoalmente valorizo em cinema político, Tarantino acaba por desafiar tanto o seu público como o mais prosaico filme de prestígio. Chamar transgressivo a este filme torna-se portanto, algo impensável.




Depois de dissecar a nação dos EUA, Tarantino torna a sua podridão numa comodidade comercial e artística, abordando-a do mesmo modo que sempre fez nos seus filmes. Mas a horrenda história de preconceitos raciais, sexuais, de género, etc. na sociedade americana não é a estética energética de um filme de kung fu. Ao recusar-se a sair da sua zona de conforto, Tarantino demonstrou, para mim, uma imensa imaturidade que eu anteriormente não reconhecia na sua oeuvre, e ao nunca tentar questionar ou desafiar o seu público, ele prova-se como um hipócrita tão monstruoso como a sociedade que ele se propõe a expor.

Muito se pode falar da complexidade de Os Oito Odiados e da ousadia de Tarantino, mas, para mim, esta obra é o equivalente a um imaturo adolescente decidir formar uma banda, acrescentar uma coleção de palavrões e temas que sabe serem superficialmente polémicos e no final autoproclamar-se como uma voz de incalculável relevância e importância.




Isto poderia ser uma atitude inofensiva, mas, infelizmente vivemos num mundo em que tais preconceitos são comuns, e em que imaturidade não é impeditiva de monstruosidade e carnificina. Por vezes o mundo de Tarantino pode parecer um cartoon inofensivo e distante da nossa realidade, mas há que lembrar quão próximos de nós estes horrores estão. Para mim, pelo menos, a celebração jovial disto mesmo, é algo, no mínimo, repreensível senão perigoso.

Sinceramente nunca tinha pensado dizer isso de Quentin Tarantino, mas não consigo apoiar a sua repugnante filosofia de jubilante niilismo e imatura exploração de temas políticos. Enfim, talvez agora seja altura de falar de alguns dos elementos mais positivos do filme.

Tal como se tem tornado norma na filmografia de Tarantino, o elenco de Os Oito Odiados oferece uma bela coleção de consumados atores em energéticas e coloridas caracterizações. No entanto, devido aos limites textuais que reduzem todos os seres humanos a meros símbolos e cartoons, os atores têm problemas em oferecer prestações particularmente complexas ou tridimensionais. Apesar do meu amor por Jennifer Jason Leigh, ela é a maior injustiçada pelo guião, sendo uma presença de unidimensional e grotesca violência. Mesmo as mais simples figuras de Kill Bill, por exemplo, apresentavam complicadas personalidades e valores, mas o mesmo não ocorre em Daisy, ou em metade destas personagens se formos honestos. Por muito talentosa que Leigh seja, nem ela consegue escapar aos problemas do argumento.




Muito melhores que Leigh, Bichir, Madsen ou Roth, que estranhamente decidiu criar a mais pueril imitação de Cristoph Waltz a agraciar o cinema de 2015, são os quatro restantes elementos do elenco. Russell não tem muito que fazer para além de espancar a sua prisioneira, mas há um carisma grosseiro na sua presença, como se ele tivesse sido transplantado de um filme de género de outros tempos. Dern é um poço de sinceridade na sua criação de um odioso racista e herói de guerra. Goggins é uma revelação de maneirismos e tiques perfeitamente calibrados e combinados com algumas curiosas contradições morais, que fazem da sua prestação a mais complexa de todo o filme. Apesar da qualidade do trabalho de Goggins, tenho de conceder a Samuel L. Jackson o título de MVP deste filme. Há muito que o ator se provou como o incontornável mestre da barroca verbosidade dos textos de Tarantino, mas neste filme, com o pior material que o realizador alguma vez lhe ofereceu, Jackson é o perfeito exemplo de um ator que pela cataclísmica magnificência do seu trabalho consegue elevar toda a obra em que se encontra.

Com filosofia, política, moralidade e até o elenco já examinados, há que apontar o olhar aos aspetos mais técnicos de Os Oito Odiados.




Em termos de forma e técnica, a estrutura deste filme é certamente o seu mais ousado e interessante aspeto. Basicamente, Tarantino dividiu a sua obra numa narrativa bifurcada, onde a primeira metade move-se a um ritmo impossivelmente vagaroso em contraste com a explosão de carnificina energética da segunda. Tendo em conta que o filme tem 187 minutos, isto é tanto uma prova de inegável hubris como de espantosa ambição. Como fã de Apichatpong Weerasethakul, eu sou um admitido admirador de tais brincadeiras estruturais, mas, ao mesmo tempo, exijo que tais riscos sejam bem concretizados.

É nesse exato ponto que Tarantino revela mais uma fragilidade. Django Libertado já o tinha mostrado na sua estrutura repetitiva e desnecessária duração, mas Os Oito Odiados é a completa confirmação que sem Sally Menke, Tarantino não tem a capacidade de criar a mesma energia, dinamismo e tensão que outrora caracterizava o seu cinema. A sua editora predileta pode ter falecido, mas, sinceramente, isso não é desculpa para a completa catástrofe de montagem rítmica que este filme se revela. A ausência de ação da primeira parte apenas pode resultar se servir como construção de tensão, mas infelizmente isso não acontece. Podemos saber que há uma explosão violenta no horizonte da narrativa, mas, durante os primeiros 90 minutos, Tarantino parece estar a fazer o seu melhor para adormecer o seu público, apenas se salvando pelo modo como os seus diálogos são tão confortavelmente característicos da sua oeuvre que irão desleixadamente captar a atenção do observador.




Uma terrível montagem e uma estrutura ousada não fazem um filme, ou pelo menos, não este filme. Um dos elementos mais formalmente relevantes é, sem dúvida, a fotografia de Robert Richardson em película de 70mm. Nesta escolha Tarantino está claramente a homenagear Sergio Leone, mas, curiosamente, o épico tamanho deste registo cinematográfico é maioritariamente usado para filmar um interior supostamente claustrofóbico. A escolha de 70mm para o que é, essencialmente, um drama de câmara sangrento, é deliciosamente contraintuitiva, mas, pelo final da sua terceira hora, é difícil valorizar este risco. Há ainda que referir o modo como Robert Richardson ilumina os interiores, abusando de contraluzes e dramáticos esquemas de iluminação mais teatrais que cinemáticos. Este filme é muito teatral, mas há uma camada de incomodativo artificialismo conferido pela iluminação que vão contra todos os restantes impulsos formais do filme.

A cenografia, maquilhagem e figurinos são, por exemplo, exemplos de luxuosa recriação de época, rica em detalhes e opulência grosseira, e a música, composta por Ennio Morricone, é uma completa homenagem ao trabalho do lendário compositor para o mestre do spaghetti western. Infelizmente, como já disse bastantes vezes, Tarantino não é Sergio Leone, mas há que valorizar a mestria técnica de alguns dos membros da sua equipa criativa.




No final, Os Oito Odiados é uma obra tragicamente aborrecida, devido à sua épica duração e medíocre montagem, e repugnantemente construída em termos políticos, ideológicos e morais. Há quem vá encontrar neste filme o valor de uma obra-prima, mas essa pessoa não sou certamente eu. Para uma obra sobre ódio, cujo tema central é abertamente revelado pelo seu título, é apropriado que a reação em mim despertada seja correspondente. Uma nojenta montra de hipocrisia e podridão ideológica, um espetáculo de hubris autoral e imaturidade, em resumo, um filme odioso.



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