sábado, 2 de julho de 2016

SAYAT NOVA (1969) de Sergei Paradjanov


A Cor da Romã Sayat Nova


É muito fácil acusar um filme de ser um objeto pretensioso. Uma obra apenas valiosa para pessoas com ideias de se mostrarem intelectuais e portadoras de gostos sofisticados. Basta olharmos para inúmeras paródias que se estendem desde os Monty Python até aos últimos episódios de Saturday Night Live para ver como muitos veem o cinema de autor como um absurdo de manias estilísticas vácuas ou montanhas de inescrutáveis símbolos, verdadeiros puzzles feitos para deliberadamente confundir uma audiência comum e para deliciar aqueles que os conseguirem, por meios de rebuscados academismos, decifrá-los. Confesso que existirão poucas críticas a que eu dê menos valor em cinema do que pretensioso, mas mesmo eu já vi filmes cuja melhor descrição é mesmo essa infeliz expressão. E já admirei e gostei de filmes a que eu mesmo chamaria de pretensiosos, filmes que se regozijam na pressuposta e arrogante superioridade intelectual de seus cineastas e fãs.

Falo desse cliché da crítica cinematográfica, tanto a nível erudito como coloquial, pois é a principal fragilidade apontada por quem viu e detestou aquele que é, para mim, um dos mais singulares e importantes filmes na história do cinema, A Cor da Romã ou Sayat Nova de Sergei Paradjanov. E eu posso até aceitar que muitos vejam este exercício cinematográfico como um monumental soporífero, mas penso que chamá-lo de pretensioso ou “artsy-fartsy” é um absoluto crime, para além de ser uma imerecida calúnia.

A Cor da Romã Sayat Nova

Sim, este é um filme que se poderia chamar de um poema filmado, onde praticamente não há diálogo, e o pouco que há provém de textos de um trovador arménio do séc. XVIII. Um filme onde todas as imagens são, no mínimo, crípticas, estando recheadas de simbologia e executadas com um fervor formalista que transcende o que normalmente chamaríamos de avant-garde e entra num patamar exclusivo de virtuosa experimentação cinematográfica. Uma obra tão anti naturalista e anti narrativa que praticamente propõe um novo tipo de discurso artístico pela sua mera existência. No entanto, não é, de todo, uma obra pretensiosa.

Isto porque o realizador Sergei Paradjanov não podia ser mais claro nas suas intenções, começando o filme com um texto em que o autor esclarece que o que o espetador vai ver não é um docudrama comum, mas sim uma tentativa de trazer as emoções e sensações dos poemas de Sayat Nova, o já referido poeta arménio, para o cinema. Este não é um filme que está em constante procura por confundir a audiência e requer um painel académico para dele retirar sentido. Pelo contrário, é um filme que não propõe uma única questão intelectual ao seu espetador, apenas lhe oferece uma singular experiência sensorial. Mesmo para quem estiver mais confuso ao ver estes tableaux vivants meio surreais, o realizador tem a generosidade de colocar texto antes de cada sequência ou capítulo, indicando mesmo que momentos são sonhos e seu conteúdo.

A Cor da Romã Sayat Nova

É certo que A Cor da Romã praticamente exige que olhemos para a sua grandiosidade com montanhas de conhecimento anterior, mas, mesmo para quem nada saiba sobre Sayat Nova ou sobre a cultura da Arménia, esta é uma preciosidade. Eu diria mesmo que o seu mais próximo parente cinematográfico não são filmes como os restantes produtos das vanguardas europeias dos anos 60, mas sim os filmes mais bombásticos e pirotécnicos de Hollywood. Tal como nessas criações populistas, ver a mais bela obra de Paradjanov é ser-se exposto ao cinema na sua forma mais básica e simples. Estamos a ver o filme para sermos emocionados, expostos a imagens espetaculares e impossíveis de ver na nossa realidade, e, em suma, sermos simplesmente maravilhados.

O que este filme precisa é de uma audiência generosa que esteja disposta a ver para além da sua abjeta recusa de classicismos e convenções e esteja disposta a ver A Cor da Romã como o esplendor de imagem, ritmo e som que é. De certa forma, este é um dos melhores exemplos de um cinema puro, um cinema apoiado somente nesses jogo imagético, sonoro e temporal e em praticamente mais nada. Aliás, é exatamente devido a essa pureza que eu estou para aqui a encher esta análise com considerações sobre crítica cinematográfica na sua generalidade, porque, no final, tentar explicar, dissecar ou analisar A Cor da Romã é um exercício em futilidade. Afinal, se alguém conseguisse expressar em texto o que Paradjanov aqui alcança, isso sim, seria uma prova do pretensiosismo e falta de valor do filme. Posso, no entanto, tentar explorar algumas das escolhas formais desse mestre do cinema soviético que, devido à sua homossexualidade e revolucionária recusa dos padrões de realismo social impostos pelas autoridades do regime, acabou por ser preso e banido de realizar filmes.

A Cor da Romã Sayat Nova

As imagens que ele constrói aqui são o que poderíamos obter se alguém conseguisse dar vida a uma iluminura medieval. Os cenários e figurinos ajudam muito a este encontro entre pintura e cinema, mas há que louvar a fotografia também. Com o seu uso de luz branca frontal e composições estáticas e definidas pela geometria dessa mesma arte antiga, Paradjanov retira profundidade à imagem, salienta suas cores e constrói um sólido discurso visual que raramente é quebrado ao longo de A Cor da Romã.

O som, por sua vez retira qualquer espécie de literalidade física que as imagens possam conjurar. É óbvio que todos os ruídos ouvidos no filme foram criados em pós-produção tal como é óbvio que Paradjanov tinha muito pouco interesse em usar a sonoplastia como mero instrumento ilustrativo. Se a imagem é uma pintura medieval, o som é um espetáculo de abstração modernista, usando excessos anti naturalistas para revelar as dimensões mais poéticas das imagens. Por exemplo, num funeral, vemos músicos a tocar, mas o som que ouvimos é canto coral meio distorcido, noutra ocasião vemos água a escorrer e a formar pequenas cascatas ao longo de um castelo, mas o que ouvimos é algo estranho que tanto parece água como algo mais irreal e indefinido.

A Cor da Romã Sayat Nova

Finalmente, temos o tempo e o ritmo ou, por outras palavras, a montagem. É aqui que, para mim, Paradjanov realmente se afirma como uma das poucas vozes na história do cinema que realmente propôs uma linguagem revolucionária e inovadora. Ele usa inúmera repetições, saltos rítmicos entre imagens semelhantes, mudanças bruscas que salientam a teatralidade da posição dos corpos codificados em cena, e quebra qualquer linha de lógica espacial ou temporal. O modo como imagens intrinsecamente viscerais como sangue, água ou nuvens de vapor são emparelhadas com cuidadas recriações pictóricas é de particular destaque, especialmente perto do fim do filme, onde as relações e imagem e som se vão tornando peculiarmente primitivas, puxando pela emoção da audiência e seu espanto de um modo inesperado para este tipo de exploração estética.


No final, A Cor da Romã é uma obra de sublime importância e um dos mais curiosos paradoxos na história do cinema. Por um lado, este é o derradeiro exemplo de um filme avant-garde, por outro é uma obra de magnânima simplicidade e anti pretensiosismo. Na mesma medida que é um dos melhores filmes a traduzir linguagens da pintura para o grande ecrã, é também uma obra de puro cinema, onde tais imagens são apenas uma parte da sua inovação. E, para além de tudo isto, é um filme que tão facilmente é adorado, como é odiado, muitas vezes por quem insiste em passar a sua duração a tentar encontrar explicações. Por vezes, o melhor que temos a fazer quando vemos obras assim é simplesmente parar de pensar, desligar o cérebro por 80 minutos e apreciar o espetáculo que, neste caso, Sergei Paradjanov nos ofereceu.


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