domingo, 3 de julho de 2016

THE MUSIC MAN (1962) de Morton DaCosta



Quando falamos de adaptações de musicais ou cinema, ou mesmo quando falamos de qualquer tipo de texto teatral a ser transposto para o grande ecrã, há que fazer uma clara distinção entre dois tipos de abordagem. De um lado, temos os filmes ao estilo de Cabaret e Sweeney Todd que, para bem e mal, completamente reinventam a sua narrativa para um novo meio de expressão. Mas também temos aquelas adaptações que se ficam pela simples captura da encenação teatral com a câmara e a escala necessariamente mais opulente de uma produção cinematográfica. A primeira versão cinematográfica de The Music Man, estreada em 1962, é um perfeito exemplo desse segundo grupo de filmes.

Isso pode parecer um prelúdio para uma crítica vulcanicamente negativa, mas esse não é o caso aqui. Em parte, esta longa-metragem de Morton DaCosta deve o seu relativo sucesso ao génio presente no seu material de origem. É certo que isto pode ser uma opinião mais ou menos rara, mas The Music Man é um maravilhoso trabalho de comédia musical para o palco. O seu uso de trocadilhos de palavras, sofisticados ritmos verbais e teia de elegantes melodias perfeitamente combinadas entre si resulta num dos melhores livros e bandas-sonoras para musicais americanos do meio do século XX, e tudo isso está presente no filme.


Também presente nesta produção está a máxima raison d’être para a existência deste específico musical, a titânica prestação de Robert Preston. Na verdade, a única justificação que o filme necessitava para existir era essa mesma prestação que antes de chegar ao cânone cinematográfico já havia sido aclamada nos palcos da Broadway e galardoada com um Tony. Esta encarnação de Harold Hill, um vendedor ambulante que ludibria as pequenas cidades do interior dos EUA e convence a sua população a financiar bandas juvenis, é um soberbo trabalho de vibrante energia performativa, assim como um dos maiores triunfos nos cânones da comédia musical.

Veja-se a eletrizante rendição de “Trouble”, número em que Hill despoleta a histeria coletiva na comunidade ao realçar a decadência virulenta que está para vir devido à recente chegada de uma mesa de pool a River CIty, para se verificar a genialidade de Preston, sua ensandecida mistura da energia de um sermão religioso com o oleoso oportunismo manipulador de um fervoroso vendedor em ação.

Para além de Preston, o restante elenco não chega a nenhum nível de estratosférico génio, mas são, na sua maioria, imensamente eficazes nas suas prestações. A energia cómica de Buddy Hackett, por exemplo, é um maravilhoso complemento ao trabalho de Preston, sendo que a responsabilidade do sucesso de muitos dos números mais teatrais e exuberantes fica exclusivamente nas capazes mãos de Hackett e não do protagonista. Paul Ford e Hermione Gingold, deuses do slapstick cantado, mostram aqui o seu virtuosismo cómico como o presidente da câmara e sua mulher obcecada com as novas tendências da dança moderna do início do século XX. Shirley Jones e sua voz angélica dão vida a Marian, a bibliotecária da cidade e principal interesse romântico do filme, e podem não transmitir grande interioridade, mas a sua pureza virginal com um toque de saudável sagacidade é o perfeito contraponto para a energia híper verbosa de Robert Preston.


Mas é evidente que nem tudo é perfeito. Primeiro, temos o guião cuja estrutura resulta num filme demasiado longo e cheio de dispensáveis enredos secundários que, sem a necessidade técnica de mudanças de cenário e figurinos nos bastidores, não têm razão de existir. E em segundo, temos o maior e mais pernicioso problema desta produção, o trabalho de Morton DaCosta cujos triunfos de encenação teatral nunca se traduziram em satisfatórios sucessos do cinema.

Um dos principais elementos problemáticos do seu trabalho é uma encenação que privilegia a perspetiva frontal de uma audiência num teatro, assim como o uso de planos gerais de modo constante. Isto não é ajudado por uma fotografia imensamente desinspirada e que tem a triste tendência para iluminar em demasia os cenários, que nunca parecem algo mais real que cenários de estúdio, e lhes retira toda a profundidade.

Visualmente, os elementos de maior apreço são, sem dúvida, a coreografia germinada nos palcos da Broadway e aqui re-imaginada para uma câmara sem grandes ambições pictóricas e os figurinos, cujos toques de estilização estão em surpreendente harmonia com os pastéis esbatidos da sua reprodução histórica. O píncaro de ambos estes aspetos é “Shipoopi”, o grande showstopper de The Music Man, em que, mesmo assim, a direção trai o frenesim energético que a letra e a música sugerem.


Por muito desinspirada, enfaticamente ilustrativa ou cronicamente literal que seja a direção, há que admirar a já mencionada e sublime tradução dos números musicais originados em palco. A complexidade sinfónica, rítmica e verbal das canções é de particular louvor, começando, pois claro, pelo genial número de abertura em que a repetição mecânica de falas e uso de ritmos anti naturalistas e anti melódicos resulta num grupo de enfurecidos vendedores ambulantes a cantarem o som de uma locomotiva em movimento. Isto repete-se pelo filme, cujos maiores triunfos, que também incluem “Trouble”, quase todos os momentos de coro e os duetos de Shirley Jones, são sempre um resultado da obsessiva fidelidade do filme às suas origens teatrais.


No final, The Music Man revela-se como um jogo de maravilhosas contradições cinematográficos. A sua teatralidade limita o seu apelo e tem o triste efeito de tornar o filme numa espécie de cadáver embalsamado de um espetáculo da Broadway, mas também permite que toda a produção mantenha e apresente de modo descomplicado os maiores triunfos musicais e performativos do musical em si. Para uma audiência contemporânea, este será certamente um filme capaz de testar muitas generosas paciências, mas para grandes fãs de musicais, teatrais e cinematográficos, há que aceitar que para podermos ver os seus maravilhosos triunfos como a supernova de inspiração de Robert Preston, temos de aguentar uma desinspirada encenação, quase anti cinemática.


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